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Impeachment à Brasileira e o Complexo de Vira-latas

ANO 2016 NUM 215
Ana Paula Oliveira Ávila (RS)
Mestre (2001) e Doutora (2007) em Direito pela UFRGS. Professora Titular de Direito Constitucional dos cursos de Graduação e do Programa de Mestrado em Direitos Humanos do UniRitter.


19/07/2016 | 4547 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

Talvez Nelson Rodrigues pudesse explicar o motivo de o STF seguir adotando os paradigmas norte-americanos sobre o instituto do impeachment após a edição da Lei n. 1.079, de 1950 e da Constituição de 1988. Sim, porque é dele o diagnóstico do “complexo de vira-latas” que caracteriza o brasileiro. A expressão surgiu em uma de suas crônicas de futebol, às vésperas da Copa do Mundo de 1958, como uma forma de explicar o descrédito do time em si mesmo. Dizia o talentoso cronista: “por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”. (RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p.51- 52)

Recentemente me pus a observar melhor a doutrina e a jurisprudência sobre o assunto do momento, o impeachment, e para mim o complexo de vira-latas neste tema ficou muito claro. Só para início de conversa, tamanha é a deferência ao sistema anglo-saxão, que até hoje não nos prestamos a utilizar a tradução do termo impeachment para o português – e arrisco dizer que se alguém se propuser a falar sobre o “impedimento”, imediatamente terá de esclarecer que está falando de impeachment presidencial e não da regra que tanto frustra o torcedor de futebol ao decretar a nulidade de gols geralmente milagrosos.

Paulo Brossard, autor de um clássico no tema, intitulado “O Impeachment”, utiliza-se de opulenta bibliografia norte-americana, com base na qual ele sustenta aquilo que até hoje ecoa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (onde Brossard fez história também como ministro): “os mais autorizados constitucionalistas americanos têm doutrinado que o ‘impeachment’ é instituto político, e não tem feito senão desdobrar o pensamento dos constituintes de Filadélfia” (BROSSARD, Paulo. O Impeachment. Porto Alegre: Ed. Livraria do Globo, 1965, p. 72). A natureza política do instituto prevalece até hoje - vide o MS 21.623/DF, julgado pelo Pleno do STF, Rel Min. Carlos Velloso, em 17/12/1992.

Essa natureza eminentemente política que o impeachment incorporou no sistema estadunidense levou a uma relevante consequência chancelada pela Suprema Corte daquele país: a impossibilidade de controle judicial em face dos atos políticos, fazendo com que as deliberações do Congresso Norte-Americano na matéria sejam soberanas e absolutas: “once pronounced, they become absolute and irreversible” (Finley and Sanderson, apud BROSSARD, p. 152). Essa noção foi desde logo assimilada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal durante a Primeira República, pela qual firmou-se a orientação de que o Tribunal não deve envolver-se nas questões políticas situadas no âmbito dos outros Poderes. Em decisão de 1892 (HC 300 – STF,  Pleno, Rel. Juiz Joaquim da Costa Barradas), restou asseverado:

Considerando, portanto, que, antes do juízo político do Congresso, não pode o Poder Judicial apreciar o uso que fez o Presidente da República daquela atribuição constitucional, e que, também, não é da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo

Considerando que, ainda quando na situação criada pelo estado de sítio, estejam ou possam estar envolvidos alguns direitos individuais, esta circunstância não habilita o Poder Judicial a intervir para nulificar as medidas de segurança decretadas pelo Presidente da República, visto ser impossível isolar esses direitos da questão política, que os envolve e compreende, salvo se unicamente tratar-se de punir os abusos dos agentes subalternos na execução das mesmas medidas, porque a esses agentes não se estende a necessidade do voto político do Congresso; (grifei)

Anos mais tarde, o Constituinte de 1934 entrou no clima e previu, no art. 68, que “é vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas”. É pertinente, desde logo, lembrar que nenhuma vedação deste porte se encontra na Constituição Federal de 1988, já bem distante da de 1934 – temporal e ideologicamente falando. Muito ao contrário, o texto de 1988 prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5o, inc. XXXV), sem qualquer ressalva quanto à origem da lesão ou ameaça, se perpetradas por particulares ou pelo próprio Poder Público, se decorrente de ato político, administrativo ou jurídico ou mesmo de omissão. Lesão é lesão, sendo a causa indiferente à Constituição.

Nada obstante, mesmo com a Constituição vigente e após a detalhada regulamentação do impeachment em nosso sistema pela Lei n. 1.079/50, a jurisprudência se manteve na linha de autocontenção judicial diante dos atos políticos, seguindo a tradição do primeiro período republicano brasileiro, quando se sentiu de modo intenso a influência norte-americana. Evidências dessa influência se identificam de modo recorrente nas decisões do STF sobre a matéria, em soníferas citações de doutrina e de excertos da Suprema Corte dos Estados Unidos – inclusive sem o mínimo obséquio da tradução em vernáculo, que seria devida já que a decisão do Supremo é um documento público e nacional (apenas como exemplo, veja-se o MS 21.689, referente ao impeachment de Collor – Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 16/12/93, particularmente as pp. 233, 235-8, 312).

Quem se dispõe a examinar o desenvolvimento do impeachment no direito norte-americano com lupa, logo concluirá que as premissas da decretação da medida por lá não encontram qualquer correspondência na conformação que o legislador brasileiro conferiu ao instituto. Nos Estados Unidos não existe a previsão específica de tipos que motivem a decretação do impeachment. Lá, o impedimento pode ser decretado em razão de qualquer ato que “revele incapacidade para a função pública” (MAXIMILIANO, Carlos. Commentarios à Constituição Brasileira. 3a ed. Porto Alegre: Ed. Globo, 1929, p. 643.), pois a cláusula constitucional que prevê a medida é descrita em linguagem ambígua e aberta.

Com efeito, a Constituição estadunidense estabelece que o Presidente shall be removed from Office on Impeachment for, and Conviction of, Treason, Bribery, or other high Crimes and Misdemeanors.  Os dois primeiros casos (traição e suborno) são tipos penais bem definidos e já suficientemente conhecidos naquele sistema. Porém, o mesmo não se pode dizer do significado de “high crimes and misdemeanors” (expressão genérica para crimes e contravenções) porque, segundo a Suprema Corte norte-americana, “high crimes and misdemeanors” designam um conceito mais amplo que o de tipos penais (GOLDBERG, Arthur. The Question of Impeachment. In Hastings Constitutional Law Quarterly, Vol. 1, 1974, p.5-7).

Consultando os registros sobre a Convenção norte-americana da qual resultou o texto constitucional até hoje vigente, verifiquei que existiu intenso debate sobre quais deveriam ser as causas motivadoras do impeachment, e as mais diversas expressões foram discutidas. Aventara-se a possibilidade do afastamento presidencial por “maladministration”, “abuse of trust”, “from some corrupt motive” ou ainda por “malpractice or neglect of duty”. Na redação final, os framers optaram por uma dicção menos obscura, que seria “high crimes and misdemeanors” (crimes e contravenções) (Cf. FARRAND, Max. The Records of the Federal Convention of 1787. Versão Eletrônica. New Haven: Yale University Press, 1911). Seria uma expressão “menos obscura” mas, ainda assim, ambígua, considerando que não está vinculada aos crimes e contravenções previstos nos estatutos penais estadunidenses.

Sendo assim, ao Congresso norte-americano incumbe a tarefa de deliberar sobre o que seja uma ofensa passível de impeachment, diante de determinados fatos envolvendo o Presidente. As tentativas, pelos grandes tratadistas, de esclarecer abstratamente a expressão “high crimes and misdemeanors” são tão ambíguas quanto a dicção original: “great offenses”; “acts of great injury to the community”; “abuse or violation of some public trust”  (Hamilton); “attempts to subvert the Constitution (Mason); ou [se o Presidente] estiver “connected, in any suspicious manner with any person, and there to be grounds to believe that he will shelter him” (Madison) (cf. GOLDBERG, op. cit. p. 7-8.).

Então parece natural a autocontenção da Suprema Corte estadunidense em examinar o mérito da deliberação do Congresso nesta matéria, à medida que tamanha indeterminação nas causas de impeachment praticamente inviabiliza o reconhecimento de um parâmetro adequado e seguro de controle quanto ao enquadramento dos fatos concretos naquelas expressões tão ambíguas. Esta razão fundamenta a natureza exclusivamente política do instituto naquele sistema e a conclusão lógica do julgamento exclusivo pelo Congresso. Lá, os fatos serão debatidos e interpretados pelos legítimos representantes do povo porque a matéria é aberta e, portanto, se presta amplamente à deliberação. Daí a explicação de Goldberg: “the President can only be impeached by one institution – the Congress – which is directly accountable to the people” (grifei); porém, o mesmo autor compreende que o Presidente até poderia contestar o impeachment perante a Suprema Corte, apenas porém, se foi violado o devido processo legal ou se a medida fundou-se na prática de ato que não justifica o impeachment (e como visto, só aí tem-se ampla margem de discussão) (op.cit., p. 9).

Isso tudo destoa totalmente do nosso sistema no que diz respeito à previsão dos “crimes de responsabilidade”, pois cada vez que se forma uma Comissão de impeachment no Congresso, os parlamentares não irão deliberar e nem recriar os tipos que já estão, de antemão, previstos na lei. Eles terão é de fazer cumprir a lei, em vez de debatê-la. Para auxiliar a missão, a Constituição definiu de modo genérico, no art. 85, os crimes de responsabilidade, e determinou, no parágrafo único, que lei ordinária definisse os tipos de conduta que motivam o impeachment bem como as normas para seu processo e julgamento. Disso deu conta a Lei n. 1.079 de 1950, promulgada à luz da Constituição de 1946, e alterada no ano 2000 pela Lei 10.028, para acrescentar ao art. 10 novos tipos de crime contra a lei orçamentária. São “tipos”, ou seja, a descrição normativa, objetiva e abstrata de uma ação, cuja verificação concreta é necessária à imposição de uma sanção (REALE JR., Miguel. Teoria do Delito. São Paulo: RT, 1998, p. 38-39).

A Lei 1.079/50 especificou, taxativamente, os tipos nos quais as condutas passíveis de impeachment devem ser enquadradas e, sem entrar em maiores detalhes, são pelo menos 69 incisos descrevendo condutas motivadoras do impeachment do presidente e/ou de seus ministros. O dado meramente quantitativo já sugere que no Brasil estamos muito além da concepção obscura e fluida de “high crimes and misdemeanors” da Constituição Norte-Americana. Não podemos nos amparar em discricionariedade ou liberdade para discussão autorizada por cláusulas abertas, pois são muitos os parâmetros de comparação entre a descrição normativa da conduta e os fatos efetivamente ocorridos. Seria um equívoco acreditar que, por aqui, o impeachment é um ato exclusivamente político e que existe ampla margem de deliberação congressual sobre a questão. O Ministro Sepúlveda Pertence apreendeu essas diferenças com perspicácia quando observou, por ocasião do MS 21.689 (referente ao impeachment de Collor – Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 16/12/93, p. 360), que

no caso, de pouca ou nenhuma valia é a busca de subsídios da doutrina e da prática americanas do impeachment: a existência, no direito brasileiro, da imposição constitucional, de uma lei, destinada à exaustiva definição dos crimes de responsabilidade e do seu processo, faz com que (...) o sítio da busca de suas premissas normativas, entre nós, deva descer do altiplano dos princípios gerais – em que situa, na América, a mínima densidade da única fonte positiva disponível, a própria Constituição – para a planície dogmática da interpretação de preceitos legais minudentes e mais ou menos inequívocos.

 

Seria algo “vira-lata”, então, imputar uma natureza exclusivamente política ao impeachment brasileiro porque, e apenas porque, nos Estados Unidos, onde o instituto desenvolveu-se de modo precedente, funciona assim. Seria conceder ao “argumento de autoridade geográfica” – ilustrando o complexo descrito por Nelson Rodrigues – a capacidade de suplantar a conformação legislativa empreendida pelo poder legislativo brasileiro.

Se são muitos os aspectos jurídicos relativos ao impeachment, tudo isso deveria facilitar o trabalho da Comissão no Congresso e a avaliação que nós, observadores atentos, podemos empreender sobre a adequação dos trabalhos, certo? Errado. O que estamos vendo, no caso Dilma, é que tudo pode ser complicado nessa tarefa, que deveria ser mais simples, de enquadramento dos fatos nos tipos já objetivamente descritos em lei – o chamado juízo de tipicidade. Nada obstante o Supremo ter se pronunciado a respeito da legalidade dos procedimentos, observo alguma esquizofrenia quando ouço alguém defender que este episódio entrará para a história como o “Golpe de 16”. Não lembro de alguém ter falado em “golpe” quando o mandato de Collor foi atropelado por uma Fiat Elba (sem metáfora). Alguns consideram “criações oposicionistas absurdas” as imputações que se fazem à Presidente, de ter causado um déficit de bilhões de reais ao despender valores inexistentes nos cofres do tesouro. E assim, no afã de iluminar a tarefa (neste caso jurisdicional, e não política) das Comissões, comparecem os experts tentando auxiliar os parlamentares na compreensão jurídica dos tipos referentes aos tipos que tutelam a proteção das finanças públicas (crimes contra a lei orçamentária, art. 10, incs. 1 a 12; e contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos, art. 11, incs. 1 a 5).

Muitas teses diversionistas são defendidas, sobretudo em matéria financeira e criminal, para desviar a atenção daquilo que realmente interessa: apurar o gritante desequilíbrio nas contas públicas, quando o equilíbrio é o princípio basilar do direito financeiro. E como o tamanho da crise decorrente é do tipo que não cabe mais debaixo do tapete, teses inovadoras entram em cena, como por exemplo a que exige a comprovação de dolo para os crimes de responsabilidade – como se a lei tivesse de supor o que ninguém supõe: que um presidente democraticamente eleito pelo povo desejasse intencionalmente (sem redundância) demolir a economia da nação, aumentando a miséria e o desemprego. A tese vem coroada pela realização de uma perícia que, noutras palavras, concluiu que nos documentos examinados não se encontra a participação intencional da Presidenta Dilma, mas os peritos não sabem se foram analisados todos os documentos existentes concernentes aos fatos. A perícia atesta, de resto, a cegueira presidencial, cabendo lembrar que esse tipo de atestado já foi bastante eficaz para manter o Presidente Lula incólume em face da Ação Penal 470. Parêntesis: onde foram parar as aulas sobre “culpa in vigilando” e “culpa in eligendo”, do primeiro ano do curso de Bacharelado em Direito?

Faço essas observações porque esse tipo de argumentação “vale-tudo” é muito útil quando se pensa que o impeachment está inteiramente ao sabor das conveniências subjetivas e que não há parâmetros objetivos e predeterminados a serem seguidos. Como se o impeachment não fosse um instituto minimamente regrado e se a conveniência e a ideologia político-partidária dos parlamentares pudessem suplantar a regulamentação legal do instituto. Pois não podem. Há muitas regras materiais e formais minudentes, e ninguém será privado de direitos sem o devido processo legal. Resta-nos saber quem fiscalizará o cumprimento de todas essas regras.

Isso nos leva de volta ao nosso ponto de partida, em que investigamos a formação da orientação pacificada no Supremo Tribunal Federal, de que o impeachment é essencialmente político, influenciada pela doutrina e jurisprudência norte-americanas. Firme nessa tradição, o Supremo se vê impedido de se manifestar sobre o mérito do impeachment, algo que pode envolver, para além de infrações às garantias inerentes ao devido processo legal (que a Corte assumidamente controla), o uso dessas teses diversionistas quanto à interpretação dos tipos normativos. Na orientação vigente, nem mesmo erros mais grosseiros de interpretação, ou conclusões manifestamente contrárias à prova, presentes nos relatórios das comissões poderiam ser revistos, já que tudo no mérito seria “questão política”.

No entanto, está demonstrado que o impeachment à brasileira possui forte regulação normativa e parâmetros suficientemente seguros de controle sobre o enquadramento dos fatos à luz dos tipos objetivamente previstos na legislação. Se o controle desses parâmetros pode ser judicial, ou se será exclusivamente social, revelado nas urnas, é algo ainda aberto a debate. Mas o Supremo estará, aqui, diante de um dilema: ou continua servo da doutrina estadunidense, apesar de não corresponder à realidade normativa brasileira; ou faz o que lhe compete, na defesa da Constituição e do ordenamento jurídico pátrio, pronunciando-se em face da correção ou não do julgamento pelo Senado, pelo menos nos casos de evidente abuso interpretativo ou erros grosseiros manifestamente contrários à prova apresentada. Talentos na Corte não faltam para reconhecer e afirmar essa brasilidade normativa ao impedimento presidencial. O Supremo não pode, isso é fato, substituir a votação dos senadores, pois a Constituição prevê que a deliberação é privativa do Senado; mas pode, quero crer, garantir que o documento posto à votação esteja de acordo com o bom Direito que rege a matéria. Isso apenas garante que a discussão política ocorra segundo as premissas adequadas, o que já é alguma coisa.

Em tempo: como se sabe, a Copa de 1958 foi a primeira vencida pela seleção brasileira. Daí ser considerada visionária a crônica de Nelson Rodrigues que, às vésperas da estreia da Seleção na competição, asseverou:

O problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.

Insisto: – para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.

Então insisto eu: – para o Supremo, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.



Por Ana Paula Oliveira Ávila (RS)

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