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As Massas na Contemporaneidade: complexidade das manifestações e o direito público

ANO 2016 NUM 106
Irene Patrícia Nohara (SP)
Livre-docente, Doutora e Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogada Parecerista. Autora de obras de Direito Administrativo. Professora de Fundamentos de Direito Público da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


12/03/2016 | 5790 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

O fenômeno das massas sempre desperta polêmicas. Há visões ambivalentes da mobilização de massas, pois, não obstante o fato de o exercício do direito de manifestação ser a mais lídima expressão da democracia, também a agregação das massas pode provocar um descontrole pela canalização de insatisfações que podem gerar comportamentos irracionais dos indivíduos imersos na multidão.

Um dos fenômenos de massas mais analisados ao longo do século passado foi a irrupção do nazismo. Por meio da liderança de Hitler, houve a condução das massas, num contexto de crise econômica e de declínio do prestígio da classe média, no emprego de métodos de manipulação de opiniões, dada capacidade de agregar as insatisfações das multidões.

Há, no entanto, tanto fenômenos de massa que se relacionam com reivindicações políticas, como também aglomerações sem motivações políticas, como acontecem nos encontros entre torcidas de futebol, chamadas de “massas esportivas”.

Elias Canetti, Nobel da Literatura, possui uma obra clássica que reflete tal fenômeno, sendo intitulada “Massa e Poder”, publicada pela Companhia das Letras. A massa, para Canetti, representa uma liberação do temor individual do contato (1995, p. 14). Individualmente, os homens estariam sempre conscientes das diferenças que pesam sobre seus ombros e a massa representa um momento de grande descarga, pois se trata de um momento “em que todos os que a compõem desvencilham-se de suas diferenças e passam a sentir-se iguais”.

No fundo, as pessoas sentem um enorme alívio quando imersas nas massas. Imagine-se a catarse que não é, para aquele que adora futebol, vivenciar um gol a ponto de abraçar num estádio o desconhecido que se encontra ao lado.

É também no momento em que ninguém é mais ou melhor do que os outros que surge o perigo relacionado com a “sede de destruição”. A massa destrói preferencialmente objetos e edifícios, sendo, nas palavras de Canetti: o ruído do espatifar das louças e vidraças, sons vitais de uma nova criatura que surge. No caso da atuação das massas pelas técnicas utilizadas pelos Black Blocs, ainda, essa destruição de vidraças e prédios, quando ocorre, é direcionada geralmente aos bancos e símbolos de organizações multinacionais, num ativismo caracterizado pela ideologia da antiglobalização financeira.

Outro aspecto apontado por Canetti é a existência nas massas de um sentimento de perseguição, uma particular suscetibilidade e irritabilidade contra os que caracteriza como inimigos.

Ora, exatamente esta peculiaridade que faz com que os encontros de torcidas organizadas sejam momentos de grande potencial de violência. Trata-se de uma manifestação de atitudes em que os indivíduos sequer raciocinam sobre a falta de sentido de um comportamento bélico direcionado a pessoas desconhecidas.

São características básicas das massas apontadas por Canetti: (1) a massa quer crescer sempre; (2) no interior das massas reina a igualdade, sendo justamente por ela que as massas transformam-se em massas; (3) a massa ama a densidade; e (4) a massa necessita de uma direção, sendo, portanto, o direcionamento imprescindível para a sua durabilidade: “o medo da desagregação, sempre vivo nela, torna possível guiá-la rumo a quaisquer metas.” (1995, p. 28).

Esta última característica nos faz recordar as manifestações pela redução da tarifa do transporte urbano ocorridas em maio de 2013. Esses movimentos de massa provocaram uma reação nos agentes políticos, pois, mesmo diante das primeiras declarações de que não iriam ceder, quando as manifestações tomaram grandes proporções e despertaram o receio de descontrole por parte do Estado, daí houve a redução desejada pelo povo. Segundo frase do saudoso Ulisses Guimarães: “a única coisa que mete medo em político é o povo nas ruas”.

Todavia, assim que as manifestações lideradas pelo Movimento Passe Livre conseguiram o intento, surgiram outras manifestações que perderam esse direcionamento e da desagregação das pautas de reivindicações o movimento foi perdendo a força.

Do ponto de vista jurídico, o direito de reunião está previsto no art. 5◦, XVI, da Constituição de 1988, segundo o qual: “todos podem reunir pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

Trata-se de norma constitucional de eficácia plena e de aplicabilidade imediata, na classificação da José Afonso da Silva, sendo os parâmetros delimitados pela Constituição: (a) reunião pacífica, ou seja, sem armas; e (b) prévio aviso à autoridade competente, não, porém, como uma autorização, mas só para não frustrar outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local.

Note-se que o fato de alguém aparecer individualmente armado não é suficiente para acabar com toda a reunião. Assim, as autoridades policiais podem abordar essa pessoa, impedindo-a de estar armada, mas não inviabilizar o movimento de manifestação em si.

Ademais, não se admite que haja prisões para averiguação ou conduções coercitivas ilegais, que eram práticas próprias da época da ditadura militar. Se houver suspeita de prática de atos criminosos, deve a polícia solicitar identificação dos indivíduos, mas, como regra geral, não pode levá-los presos sem que haja flagrante da prática de crime ou mandado judicial.

Do ponto de vista internacional, não se pode deixar de associar, mais recentemente, a reflexão acerca das massas aos protestos da Primavera Árabe, ocorridos no Oriente Médio e no Norte da África. Inicialmente tais movimentos foram legitimados no questionamento de governos autoritários, sendo a pauta de reivindicação alicerçada na exigência por democracia e liberdade.

Os movimentos da Primavera Árabe provocaram um efeito dominó, derrubando diversos governos. Entre os primeiros protestos destaca-se o da Tunísia, denominado de Revolução de Jasmim, cujo estopim envolveu o jovem Mohamed Bouazizi, vendedor de frutas que teve seus produtos apreendidos pela polícia por se recusar a pagar propina. Revoltado com a extorsão, em dezembro de 2010, Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo, como forma de protesto, o que comoveu a população e estimulou a ação política.

Uma característica do efeito cascata do movimento foi o uso das redes sociais pela população jovem, o que estimulou países em situação semelhante a congregarem os insatisfeitos, dentro das mesmas pautas de reivindicação.

O movimento espalhou-se pela região, atingindo o Egito, tendo sido responsável pela queda do ditador Hosni Mubarak; a Líbia, com Kadafi; e o Iêmen. Note-se que quando as reivindicações populares atingiram a Síria, daí a emergiram na discussão geopolítica inúmeros questionamentos.

Por trás da fachada de um levante popular contra um regime autoritário, o estímulo ao questionamento popular, por meio do apoio de outras nações, inclusive, na Síria revelou-se uma discussão de complexidades étnico-religiosas, o que levou um posicionamento diverso dos Estados Unidos, de um lado, em relação à China e à Rússia, de outro, no Conselho de Segurança da ONU, porque, ao que se argumentou, nada levaria a crer que os grupos que contestavam a presença de Al Assad, compostos de sunitas e jihadistas, por exemplo, seriam mais legítimos em suas pretensões do que os que ocupavam o poder.

Portanto, os desdobramentos da Primavera Árabe, ainda em curso, revelam contraditoriedades e complexidades da realidade vivenciada, dada emergência de conflitos religiosos e étnicos que ganharam proporções bélicas e que afastam o movimento, já transformado em guerra civil, do sonho (complexo) de conquista da democracia, espalhando-se na região a barbárie e as intolerâncias. Isso sem contar que muitos dos países que apoiaram o movimento são hoje aqueles que fecham as fronteiras para os refugiados evadidos da violência ocasionada pelos efeitos das transformações da Primavera Árabe, que ninguém mais deseja festejar tão abertamente.

Daí porque o Brasil se manteve neutro em tal seara, que se mostrou ter mais repercussões de influência de domínio do que se supõe. Note-se que, segundo expõe Guilherme Leite Gonçalves, professor de Sociologia do Direito da UERJ (Carta Capital, 11/11/2015), existem recomendações que são feitas pelo Grupo de Ação Financeira (GAFI) a diversos países que buscam intervir em padrões institucionais com efeitos negativos sobre a “integridade” do sistema financeiro, e que estimulam a aprovação de algumas regulações de organismos sem fins lucrativos, introduzindo regras que reduzem o espaço político de ONGs e de atores da sociedade civil.

Cinco países receberam o selo de recomendação, que são: Bélgica, Egito, Itália, Tunísia e Estados Unidos, sendo que no Egito e na Tunísia a recomendação representou uma reação à Primavera Árabe.

O Brasil, com receio de entrar na “lista negra” do GAFI, pela falta de legislação que criminalizasse o financiamento ao terrorismo, se ocupou de criar o projeto de lei antiterrorismo, assinado inclusive pelo à época Ministro da Fazenda (Joaquim Levy), que tramitou em regime de urgência, dada proximidade das Olimpíadas.

A ‘lei’ antiterrorismo, cujo projeto já foi aprovado em âmbito legislativo, ameaça a livre manifestação e o direito de reunião, pois possui tipificações abertas e perigo de subjetivismos nas interpretações da Justiça. A ONG Anistia Internacional divulgou nota pedindo à Chefe do Executivo que rejeite o projeto (sendo que, quando da elaboração do presente artigo, ainda não havia acontecido a sanção ou o veto presidencial).

Como se pode ver o fenômeno das manifestações de massas é de complexa análise no direito público contemporâneo, mas, apesar dos riscos que concentra, ainda assim não se pode deixar de considerá-lo como a expressão da democracia, logo, nos posicionamos contra a criminalização, mesmo que indireta, da manifestação dos movimentos sociais.



Por Irene Patrícia Nohara (SP)

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