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Contradições da cidade real e transformações pela "colcha de retalhos" do Estatuto da Cidade

ANO 2015 NUM 27
Irene Patrícia Nohara (SP)
Livre-docente, Doutora e Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogada Parecerista. Autora de obras de Direito Administrativo. Professora de Fundamentos de Direito Público da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


29/11/2015 | 5335 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

“a cidade não pára,

a cidade só cresce,

o de cima sobe

e o de baixo desce”.

Chico Science – “a cidade”

 

A vida urbana é uma realidade no Brasil, sendo que, de cada cinco brasileiros, quatro habitam cidades. O Estatuto da Cidade, Lei nᵒ 10.257/2001, representou um marco no tratamento jurídico do direito urbanístico brasileiro, tendo sido aprovado depois de mais de uma década de trâmite e discussões acaloradas, com inúmeros interesses conflitantes: de evangélicos, do setor imobiliário, do Movimento Nacional de Reforma Urbana etc.

Um ponto consensual do Estatuto da Cidade, autodenominação empregada pela lei, foi que ele definitivamente passou a reconhecer a “cidade real”, com suas contradições. A partir dos anos oitenta, no Brasil, o crescimento da população favelada passou a ser maior e, portanto, a multiplicação das habitações irregulares demonstrou-se incontornável por meio de programas de construção de habitação planejados pelos governos.

Foi derrotada a visão de que os assentamentos e as habitações irregulares eram, no nosso contexto socioeconômico, provisórios, e que seriam, por conseguinte, suficientemente substituídos pelo modelo de produção de moradia financiada pelo Estado.

Assim, trazer a cidade informal ao cálculo dos gestores públicos, considerando-a como fato concreto, significou um alento para diversas pessoas das camadas mais pobres da população, as quais se pensou finalmente em estender também bens e serviços, ainda que em face de uma situação precária de habitação, o que promoveria maior inclusão social.

Deixou-se de lado essa invisibilidade ou rejeição em relação às áreas ocupadas por população de baixa renda, tendo sido incluída no Estatuto da Cidade, para lidar com tal situação, a diretriz de simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução de custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais.

O alto custo da vida nas cidades, aliado à retenção imobiliária para especulação, com vazios urbanos (que em nada contribuíam com o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana), foram fatores que provocaram a necessidade de se engendrar mecanismos para combater a retenção especulativa de imóveis, evitando-se assim o domínio privado de bens imóveis sem aproveitamento social.

Outro aspecto de relevo foi o crescimento da visão “descriminalizadora dos movimentos sociais”, conforme a ambiência democrática, inaugurada pela Constituição, foi progressivamente legitimando algumas pautas de reivindicações de grupos excluídos dos direitos sociais.

As manifestações em prol de tal reivindicação, tal qual um “direito achado na rua”, movimento encabeçado por expoentes da UnB, demonstravam que o direito também se constroi pela cidadania ativa, ou seja, que as inúmeras reivindicações não satisfeitas de direitos sociais, como a moradia, provocam deslocamentos semânticos relevantes, com efeitos (pragmáticos) jurídicos: do emprego indiscriminado da expressão ‘invasão’ passou-se à utilização mais intensiva do correlato e mais legítimo conceito da ‘ocupação’, sobretudo em circunstâncias enquadráveis em posse mansa e pacífica de locais abandonados, sendo corrente que nas intervenções artísticas atuais se aponte a seguinte indagação: “se morar é um direito, ocupar não seria um dever?”

Daí o Estatuto deu um dos passos mais significativos nesse sentido: estruturou o regime jurídico da usucapião coletiva para cortiços ocupados por população de baixa renda, para moradia, por cinco anos ininterruptos e sem oposição, sendo que a sentença judicial atribui, em regra, igual fração para cada possuidor, independentemente da dimensão ocupada.

Nota-se, pois, que parte do Estatuto da Cidade veio imbuído de inquestionável espírito publicístico, pois engendrou diretrizes que conduziriam a cidades mais sustentáveis, o que englobaria o direito à terra urbana, à moradia (que somente foi incluída entre o rol dos direitos sociais contido no caput do art. 6ᵒ da Constituição, a partir da Emenda Constitucional nᵒ 26, em 2000, logo, na mesma época de discussão do estatuto), ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, voltados não apenas para as presentes, mas também para as futuras gerações, privilegiando, em tese, investimentos geradores de bem-estar geral e da fruição dos bens por diferentes segmentos sociais, conforme expressa determinação legal.

Ocorre que, não obstante esses aspectos mais ‘progressistas’ do ponto de vista social, o Estatuto não deixa de ser, como todo produto obtido pelo consenso de inúmeros interesses conflitantes, que nem sempre dialogaram em pé de igualdade, uma verdadeira “colcha de retalhos”, ou seja, um diploma normativo que não é totalmente harmônico em suas pretensões.

Uma das mais fortes ambiguidades que podem ser identificadas é que ao mesmo tempo em que houve o combate à especulação imobiliária, por um lado, o Estatuto da Cidade não deixou de atender aos interesses de um mercado imobiliário especulativo, trazendo sofisticados mecanismos, como, por exemplo, a outorga onerosa. Esta foi proposta pelas entidades imobiliárias no relatório da Comissão de Economia (Assuntos Econômicos), compreendendo a possibilidade de o proprietário do imóvel ‘pagar’ para construir além do coeficiente básico de aproveitamento.

Ainda, outro mecanismo que não deixa de ser intrinsecamente especulativo é a possibilidade de emissão de CEPAC em Operações Urbanas Consorciadas, que são conversíveis em direito de construir na área objeto da operação. As Operações Consorciadas foram tidas por urbanistas mais críticos como um instrumento que tem o potencial de intensificar a exclusão social, dada plasticidade em relação aos megaempreendimentos imobiliários.

Um exemplo que corrobora com tal crítica é a Operação Urbana Faria Lima, em São Paulo, que envolveu um custo de mais de uma centena de milhões de dólares, mas, apesar de toda promessa feita, pouco se verificou em termos de efetiva ‘democratização’ do espaço público, que sofreu uma 'gentrificação', ou seja, os habitantes próximos à operação, que não sofreram desapropriação, foram afetados pela transformação do local com edifícios modernos e a valorização da região provocou exclusão da população de baixa renda, produzindo, no final das contas, um deslocamento do tecido social para a periferia, dado aumento do custo de serviços e bens na região após a intervenção, que produziu, indiscutivelmente, acentuada modernização, mas não promoveu os objetivos do estatuto de bem-estar ‘geral’ e fruição dos bens ‘por diferentes segmentos sociais’.

Em suma, o teor do Estatuto de procurar abraçar as pautas de reivindicações dos mais variados grupos bem espelha as contradições do Brasil, que é um país em que as leis apontam para uma suposta prioridade ao bem-estar coletivo, como acontece, por exemplo, com a Lei de Mobilidade, em que se intenta priorizar o transporte público coletivo em vez do privado motorizado, procurando inverter uma lógica arraigada historicamente, mas que contrasta com as opções de vida de parcela não desprezível das classes ascendentes, que ainda preferem, quase sempre escoradas no argumento (também não desprezível) da segurança, isolar-se cada vez mais em “loteamentos fechados” ou em construções imobiliárias com ‘serviços intramuros’ na tentativa de encontrar uma realidade sociocultural diferente, o que, no fundo, pela ausência de convívio, em condições de igualdade, com outras classes sociais, parece engrossar o caldo de lama que gera insensibilidade e caos ao incessante movimento de exclusão social nas cidades, tal qual interpretava magistralmente Chico Science em sua inspirada música “a cidade”. 



Por Irene Patrícia Nohara (SP)

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