Colunistas

"Pé na porta" e desrespeito aos limites constitucionais: posicionamento contrário ao "vale tudo" na interpretação jurídica

ANO 2016 NUM 79
Irene Patrícia Nohara (SP)
Livre-docente, Doutora e Mestre em Direito do Estado pela USP. Advogada Parecerista. Autora de obras de Direito Administrativo. Professora de Fundamentos de Direito Público da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


15/02/2016 | 6027 pessoas já leram esta coluna. | 8 usuário(s) ON-line nesta página

Estamos vivenciando, com o surto do zika vírus, a situação relatada no livro sociedade de risco de Ulrich Beck. Risikogesellschaft é uma obra clássica alemã dos anos oitenta, traduzida no Brasil pela Editora 34, por Sebastião Nascimento, em que são problematizadas as catástrofes, crises e tragédias que se sucedem em âmbito global, com o retorno de doenças, o desemprego estrutural e o desequilíbrio ecológico que infiltram na vida cotidiana uma sensação generalizada de mal-estar.

Os perigos da sociedade atual são de tal escala que suprimem grande parte das zonas de proteção, deixando todos suscetíveis aos riscos que ameaçam difusamente a sociedade em escala global. Isso se dá também no terrorismo, dada incapacidade de articular estratégias eficientes para combater um fenômeno de acentuada complexidade e de dispersão territorial.

O problema desse estado de coisas é que o foco obsessivo no risco, não obstante ser corrente nos dias atuais, também pode provocar uma reação equiparável a uma espécie de “release the Kraken”. Soltar o Kraken, monstro mítico que ameaçava a vida dos navegantes no folclore nórdico, simboliza aqui, neste contexto, dar asas ao ‘medo’ que emerge das profundezas do inconsciente coletivo e que, então, apoia medidas mais duras por parte da sociedade e, principalmente, do Estado.

A reação social ao medo é tão atual, que é retratada inclusive na indústria cinematográfica norte-americana em filmes que giram em torno de medidas absurdas, do ponto de vista coletivo, como, por exemplo, The Purge (2013), que inicia seu roteiro dizendo que a segurança e tranquilidade sociais foram alcançadas porque em uma noite de 12 horas as pessoas teriam o direito de praticar crimes, inclusive matar os demais.

Trata-se de um filme que normalmente não é agradável ao público mais maduro, pela matança direcionada aos vulneráveis, causando incômodo pela violência gratuita, impossível de não estimular, entretanto, certas reflexões, como, por exemplo, se essa “paranoia da segurança” não provoca uma situação limite em que as pessoas no fundo desejam que a sociedade se descole dos freios jurídicos, isto é, das amarras legais que limitam a conduta social, o que nos Estados Unidos tem, ainda, relação com o desejo inconsciente de uso das armas que a sociedade já possui, pois, não foi à toa que Barack Obama ‘chorou’ ao tocar num tema tabu para a sociedade norte-americana: que é a necessidade de medidas, ainda que limitadas, de desarmamento.

O medo, inclusive dos outros, é uma temática universal da análise de Hobbes, para quem, para garantir segurança, o Estado estaria supostamente legitimado a suprimir a liberdade de todos em nome do cessar das ameaças da guerra generalizada. É como se o Estado tivesse um “cheque em branco” para buscar, com o máximo de eficácia e sem maiores limitações de meios, supostamente proteger as pessoas, às custas da construção de um monstro denominado de Leviatã.

Ocorre que a humanidade evoluiu, ao conquistar a primeira geração ou, para Ingo W. Sarlet, dimensão (pois as dimensões não se suplantam) de direitos, no sentido de fixar algumas amarras jurídicas ao poder do Estado, conhecidas como liberdades públicas, sendo muitas delas asseguradas nas Constituições.

Uma delas, foco do presente ensaio, é a inviolabilidade domiciliar, prevista no art. 5◦, XI, da Constituição, da seguinte forma: “a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Ora, as exceções são claras: (1) flagrante delito; (2) desastre; (3) prestar socorro, ou, (4) durante o dia, se houver determinação judicial.

O mencionado texto normativo constitucional engloba, na classificação conhecida de José Afonso da Silva, uma norma constitucional de eficácia plena. Segundo trecho da obra de Alexandre de Moraes, citada por decisão do STF no RE 251.445-4/GO – Rel. Min. Celso de Mello: “nem a Polícia Judiciária, nem o Ministério Público, nem a administração tributária, nem quaisquer outros agentes públicos podem, a não ser afrontando direitos assegurados na Constituição da República, ingressar em domicílio alheio, sem ordem judicial ou sem o consentimento do seu titular”.

Ocorre que, mais recentemente, a pretexto de dar efetividade às políticas púbicas de combate às doenças transmitidas pelo mosquito Aedes Aegypti, algumas prefeituras, como a de São Paulo, estão sancionando leis que autorizam o ingresso forçado em imóveis particulares, em caso de recusa inclusive, autorizando o agente sanitário a ingressar no imóvel e lavrar auto de infração.

Conforme reportagem (Globo.com, de 04.10.15), a prefeitura ainda não se manifestou sobre “qual será a punição ao morador que tentar impedir a entrada do agente”, sendo que, na sua ausência, o uso da força deve ser acompanhado por um técnico habilitado em abertura de portas, que “deverá recolocar as fechaduras após realizada a ação da vigilância sanitária e epidemiológica”.

Imagine-se que, por exercitar uma recusa assegurada constitucionalmente, já se cogite de ‘punição’ de um cidadão. Ainda, se o morador não estiver, se estiver de férias etc., corre o risco de chegar em casa e ver uma fechadura nova na sua residência, mesmo diante da garantia constitucional de que a casa é o asilo “inviolável”.

Claro que os direitos fundamentais não são absolutos, como defendem muitos, favoráveis à novel regulamentação, até porque a finalidade de controle epidemiológico é da mais acentuada relevância social. Todavia, não se deve esquecer que há como suprir uma eventual ausência de consentimento do morador pelo mandado judicial, sendo inclusive possível a expedição de mandados de forma coletiva (para dadas localidades), o que significa que a recusa pode ocorrer, mas que é claramente extraível do texto constitucional que, fora o caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, para ingressar na casa de alguém, o que deve ser feito durante o dia, há a necessidade de uma autorização feita por determinação do Sistema de Justiça, como uma garantia desejada para que haja maior controle da atuação do Poder Executivo.

Dito em outros termos: é possível conciliar as exigências constitucionais e garantir a atuação do controle epidemiológico mesmo na ausência do consentimento do morador, desde que se recorra ao Poder Judiciário, até porque assim exige a Constituição!

Mesmo que se vislumbre a necessidade de ponderação entre direitos fundamentais, ainda assim não se pode ir contra os limites claros extraídos da análise do texto constitucional, afinal, por mais convincente que seja a argumentação, é perigoso que sejam relativizados por lei os limites da Constituição.

Por isso, data venia discordar de alguns respeitáveis entendimentos, se a flexibilização proporcionada pela nova hermenêutica for além dos limites claros extraídos do texto constitucional, não teremos mais garantias contra o arbítrio do Estado.

Em suma, passar por cima da Constituição e de seus claros limites, a pretexto de ponderação, onde o texto normativo não permite a abertura, conforme se vê no tratamento da inviolabilidade domiciliar, é uma atitude bastante perigosa.

Note-se que se fosse uma interpretação do texto anterior, presente no § 10 do art. 153 da Carta de 1969: “a casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer”, as leis de ingresso forçado poderiam até ser reputadas constitucionais.

Mas o argumento da relatividade dos direitos fundamentais não pode suplantar uma interpretação inequívoca do texto, porque se “a moda pega”, não teremos mais garantias, nem a mínima segurança na interpretação da Lei Maior, abrindo-se flanco para que amanhã o Poder Público crie outras leis que passem por cima de direitos constitucionais.

Aliás, como criou recentemente, só para demonstrar que é realmente banalizada, em muitos aspectos, a inviolabilidade domiciliar, pois, no fim do ano de 2015, a Medida Provisória 700, que alterou o tratamento jurídico da desapropriação, deu nova redação ao art. 7◦ do Decreto-lei 3365/41, estabelecendo que: “declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas do expropriante ou seus representantes autorizados a ingressar nas áreas compreendidas na declaração, inclusive para realizar inspeções e levantamentos de campo, podendo recorrer, em caso de resistência, ao auxílio policial”. Se na conversão da medida provisória essa redação não for corrigida, será outra modificação legal contrária ao direito constitucional da inviolabilidade domiciliar.

Percebe-se, pois, que a prática do “pé na porta” é mesmo estimulada pela novel legislação. Todavia, gostaria de deixar bem claro meu entendimento: não compactuo, pelos motivos acima expostos, com interpretações que deem ao Estado “cheques em branco” para agir além dos limites da Constituição. Se assim fosse, teríamos de nos contentar com interpretações neohobbesianas que dão ao Estado poderes ilimitados... 



Por Irene Patrícia Nohara (SP)

Veja também