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A Transferência de Recursos em Ajustes de Parceria com o Terceiro Setor e a Adoção da Classificação de Risco (rating) pelo Poder Público

ANO 2016 NUM 138
Rafael Arruda (GO)
Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Procurador do Estado de Goiás. Diretor de Relações Institucionais do Instituto de Direito Administrativo de Goiás – IDAG. Advogado – sócio em Lara Martins Advogados


10/04/2016 | 4586 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Dispositivos legais oriundos dos mais diversos atos normativos de distintos entes da Federação, de maneira transversal, conferem aos recursos manejados por parceiros privados que atuam sem finalidade lucrativa, em razão de repasses realizados pela Administração em ajustes de cooperação, a natureza de bem público, que, portanto, não se desnatura a partir do seu ingresso na órbita de disponibilidade do privado.

Previsões como as de que os recursos transferidos deverão ser movimentados em instituições financeiras públicas determinadas pelo Poder Público, como a que se encontra no art. 51 da Lei federal nº 13.019/14, com redação dada pela Lei nº 13.204/15, dão o preciso tom para qualificar de públicos tais recursos, mesmo depois de repassados pelo parceiro público ao parceiro privado. É que há aqui uma destinação de interesse público a dever ser satisfeita com aquela verba, a fazer com que seja preservada a sua natureza originária: de dinheiro público se trata!

Nesse sentido, a indicação, pelo Poder Público, de instituição financeira onde deverão ser movimentados e, eventualmente, aplicados os recursos transferidos a parceiros privados (organizações sociais [OSs], organizações da sociedade civil de interesse público [OSCIPs] e organizações da sociedade civil em geral [OSCs]) constituem uma forte manifestação do princípio do controle e da fiscalização da atuação dos entes privados, com o que acaba a Administração por estabelecer mínimos standards de comportamento.

Como, no entanto, elencar de uma maneira ótima, com a mínima produção de externalidades negativas e, ao mesmo tempo, sem criar favoritismos ou privilégios a determinadas bancas – numa situação em que ato normativo, por hipótese, não estabeleça vinculação a bancos públicos –, as instituições financeiras aptas ao recebimento dos recursos públicos que ali serão movimentados por sujeitos que atuam em colaboração com a Administração? De que maneira, sem inviabilizar a possibilidade de obtenção de fontes extras de financiamento, pode a Administração, preservando a liberdade de atuação flexibilizada do parceiro privado, permitir que este alcance vantagens na escolha de uma determinada instituição financeira com a qual manterá relacionamento bancário, dessa relação extraindo benefícios a serem usufruídos pela coletividade?

O que aqui se propõe é que, sem a fixação genérica de que os recursos públicos deverão ser movimentados e aplicados em instituições financeiras oficiais – e, no ponto, andou mal a Lei federal nº 13.019/14 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil [MROSC]) –, o Poder Público, por meio de mecanismo equiparável à regulação bancária, proporcione aos parceiros privados relativa liberdade na escolha das instituições financeiras com as quais poderão se relacionar, com a finalidade de que essa liberdade de negociação, que os privados sabem muito bem explorar, aliás, possa permitir o alcance de vantagens que reflitam economicamente na execução do objeto dos ajustes de parceria.

Não se trata, porém, apenas de obtenção de vantagens financeiras, que, por certo, devem reverter para a execução do ajuste de colaboração. Mais que isso, a intervenção do Poder Público deve, sobretudo, garantir a imprescindível segurança de que os recursos, nas mãos dos privados, servirão a uma destinação pública, designadamente aquela respeitante à idoneidade e reputação de confiabilidade das instituições financeiras tomadoras dos recursos ativos transferidos aos parceiros privados pelo Poder Público.

Isso porque não é de nenhuma aspereza afirmar que há instituições financeiras de duvidosa credibilidade atuando no país, sendo os mecanismos de supervisão bancária ainda relativamente frágeis e incipientes (veja-se o caso, apontado por Maurício Portugal, de emissoras de seguro-garantia em contratos de obras públicas que, ordinariamente, não têm condições de fazer face às garantias emitidas [RIBEIRO, Maurício Portugal. Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 128]), exceção feita à União Europeia, onde a regulação bancária tem merecido maior atenção da sociedade, da academia e das autoridades reguladoras.  

A propósito, o recurso a temas econômicos e, por vezes, relacionados à supervisão bancária, mediante o alargamento da análise, em alguma medida, econômica a domínios antes unicamente reservados a juristas – nomeadamente a administrativistas –, longe de representar um malfadado imperialismo da Economia, apenas tem o condão de fornecer aos juristas novos instrumentos. Nas palavras de J. L. Saldanha Sanches, tal intromissão, se é que pode como tal ser vista, tem de ser considerada como uma provocatio ad agendum (SANCHES, J. L. Saldanha. Direito Económico: um projecto de reconstrução. Coimbra: Coimbra, 2008, p. 56), conduzindo não a um enquistamento ofendido, mas a um trabalho de recepção e construção jurídica de novos conceitos e instrumentos analíticos, com a finalidade, enfim, de promover uma escorreita custódia dos recursos públicos manuseados por terceiros, como a que ora se propõe.

Assim, a partir de notas de classificação de risco atribuídas por agências internacionais de rating, pode o Poder Público, por meio de critério puramente objetivo, determinar balizamentos para a escolha, pelos parceiros privados, das instituições financeiras que receberão os recursos de origem pública. Ao assim agir, a Administração Pública, tendo por base a erosão – desencanto mesmo – de sua capacidade em exercer efetivos controle e fiscalização das tarefas realizadas por parceiros privados, dá um importante passo rumo à sistematização, sem amadorismos ou improviso, no delineamento das instituições financeiras que, gozando de credibilidade e segurança no mercado, poderão vir a ser destinatárias dos recursos de natureza pública manuseados por parceiros privados.

E assim deve ser mesmo!

Primeiro, porque também os princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, não se restringindo ao âmbito puramente estatal, informam também a atuação dos parceiros privados no bojo de ajustes de colaboração celebrados com a Administração Pública.

Segundo, porque, nos termos do que já assentado, os recursos do erário, embora transferidos a pessoas jurídicas de direito privado que em colaboração atuam com o Poder Público, não perdem a sua essência de recurso público, pelo que os controles públicos, em atendimento ao interesse coletivo geral, não devem ser afastados em situações da espécie.

Em terceiro lugar, porque há uma imperiosa necessidade de serem adotadas medidas de cautela relativamente aos repasses e movimentações financeiras de importantes quantias de recursos públicos a entidades do Terceiro Setor, designadamente no que diz respeito à idoneidade e reputação de confiabilidade de instituições bancárias nacionais como tomadoras de recursos ativos transferidos aos parceiros privados pelo Poder Público. É, nesse particular, que contribuição pode ser extraída do papel de suporte e orientação ofertado por agências de classificação de risco do crédito, também conhecidas como agências de rating, que adquiriram expressão máxima em tempos recentes, no período de financeirização das economias, quando fundos de montantes muito elevados se tornaram intervenientes na concessão do crédito, à procura de rendimentos por meio de operações sistemáticas realizadas à escala global.

É bem verdade que os riscos integram a narrativa da modernidade, produzindo virtudes e também malefícios. Riscos, porém, envolvendo recursos públicos tendem a provocar no senso comum uma séria sensação de desconfiança. Riscos em períodos de crise e de contestação social, por sua vez, tendem a conduzir a processos de desestabilização e de afetação de uma coesão social imaginada, agravada pelo quadro, sempre presente, de escassez de recursos públicos. Não por acaso, há um certo descrédito geral nos modelos de gestão que têm nas parcerias sociais a sua gênese, vez que nem sempre, tanto sob o prisma do público quanto sob a perspectiva do privado, produziram elas (as parcerias) os prometidos resultados que daquele relacionamento eram legitimamente esperados, em cujo catálogo da nefasta etiologia poderiam ser apontados os desvios de finalidade, a corrupção, a traficância, os atos de improbidade, enfim, a malversação de recursos da coletividade em tempos de pouca generosidade.  

Daí, pois, emergir a importância do papel das agências de classificação de risco, como instrumento auxiliar para, objetivamente, o Poder Público estabelecer distinções entre aquelas instituição financeiras que poderão e as que, na sua contraface, ficarão impedidas de recepcionar, na condição de tomadoras, recursos públicos repassados pelas Administrações aos parceiros privados.

Os ratings de crédito, portanto, são uma opinião sobre a qualidade de crédito de um devedor ou sobre a capacidade em geral para honrar obrigações financeiras específicas, por meio de análises prospectivas sobre a qualidade de crédito de um devedor com relação a uma dívida específica, bônus, arrendamentos (leasings), programa de commercial paper, certificados de depósitos ou outro instrumento financeiro (obrigação). Assim, aproveitar o rating atribuído às instituições financeiras nacionais tomadoras de recursos públicos, por força de movimentação operada por parceiros privados, importa sejam considerados (i) a probabilidade relativa de pagamento, já que o rating avalia a capacidade e a disposição do devedor para honrar os seus compromissos financeiros; (ii) a natureza e as provisões da obrigação e (iii) a proteção dada a, e a posição relativa da, obrigação em caso de quebra, reorganização ou outros acordos mediante leis de falência e outras leis que possam afetar os direitos dos credores. Numa palavra, deve o Poder Público, por meio da intervenção regulatória das atividades dos parceiros privados, exigir os melhores padrões de mercado.

Embora se admita, contudo, que as classificações de risco podem também incorrer em falhas, razoável é reconhecer o contributo que delas pode ser extraído para a tutela dos dinheiros públicos, sendo positiva, no geral, a estandardização promovida pelas agências de rating e sua utilização como parâmetro pela Administração Pública para delimitar as instituições financeiras minimamente credíveis para a movimentação e aplicação de recursos públicos transferidos às entidades privadas filantrópicas.

  Assim, por meio de notas que vão do AAA (ou triplo A), que é a classificação máxima usualmente atribuída pelas principais agências de notação de risco de crédito a obrigações ou títulos de débito e às entidades que os emitem nos mercados de capitais, podendo chegar à classificação D, a indicar default (inadimplente em seus compromissos financeiros), pode o Poder Público adotar um objetivo parâmetro para determinar a linha acima da qual instituições financeiras poderão ser tomadoras de recursos públicos transferidos a parceiros privados.

As escalas usadas pelas agências são, em geral, combinatórias de símbolos e representam os sucessivos níveis em que classificam os títulos de dívida. O nível de confiança máximo (prime) das três principais agências de rating (Standard & Poor’s, Fitch e Moody’s) é, no essencial, o mesmo: AAA. Mede-se o risco envolvido na aquisição de títulos, desde os que merecem inteira confiança (“investimento”) até aos que se consideram “especulativos”, arriscados ou em default, isto é, emitidos por uma entidade incapaz de saldar compromissos (D = pior classificação). A notação refere-se, pois, à solvência do emitente e à qualidade do instrumento financeiro emitido, tendo em conta a informação sobre ativos e passivos, receitas, nível de endividamento e comportamentos financeiros.

Enfim, a ausência de intervenção do Poder Público para influenciar a escolha, pelos parceiros privados, das instituições financeiras que receberão recursos públicos àqueles transferidos denota uma qualquer indeterminação incompatível com o interesse público, pelos potenciais riscos envolvidos na contratação levada a cabo pelo parceiro privado com a banca tomadora de recursos públicos. Probidade e ética na gestão pública, temas centrais em períodos de grande conturbação política e social, são, por certo, caracteres exigíveis também daqueles que se dispõem a atuar em parceria com o Poder Público.

Assim, adequar a Administração Pública aos desafios do desenvolvimento e aprofundamento dos vínculos colaboração público-privada, preservando a legitimidade da utilização do dinheiro público na realização de tarefas de interesse coletivo, nos limites adequados à eficiência e à equidade do aparato administrativo, tornam-se desafios de relevo a serem enfrentados pelas Administrações e seus agentes, desde que se assuma e se reconheça que a participação do setor privado apresenta-se hoje como incontornável tendência mundial. O que se almeja, enfim, é um amadurecimento consistente e progressivo das incontáveis vicissitudes em torno dos vínculos de colaboração que o Poder Público e o Terceiro Setor ordinariamente celebram.



Por Rafael Arruda (GO)

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