Rafael Arruda (GO)
O Estatuto Nacional das Empresas Estatais – Lei federal nº 13.303/16 –, pese, embora, a mora legislativa com que editado, esforça-se por promover uma importante mudança de paradigma no histórico tratamento conferido pelas chefias dos Executivos às empresas estatais, gênero do qual fazem parte as empresas públicas e sociedades de economia mista, nelas incluídas as suas subsidiárias. Desde 1998, por força da Emenda Constitucional nº 19, a Constituição Federal exigia a edição de lei que, dispondo sobre o estatuto jurídico das estatais, disciplinasse, dentre outros aspectos, a forma de sua fiscalização pela sociedade e a constituição e o funcionamento dos seus conselhos de administração e fiscal. Quase duas décadas depois, a interposição legislativa teve lugar e o tão esperado diploma normativo, que é notável em muitos aspectos, veio à luz, ofertando uma solução compromissória entre diversas inspirações, concepções e irracionalidades na gestão administrativa do setor empresarial do Estado.
Num país acostumado a maltratar as suas instituições, estigmatizado pela corrupção, afeito às relações de compadrio e fortemente marcado pelo patrimonialismo, a edição de um estatuto jurídico da empresa estatal que assente regras de governança corporativa, a prestigiar a transparência, o profissionalismo e as boas práticas de gestão no âmbito das empresas estatais, tudo com vistas à cura da tão decantada, quanto surrada, ideia de interesse público, é reveladora, antes de mais, de um estágio civilizacional ainda não alcançado. É que os predicados de profissionalização, atuação técnica e eficiência, desde que levada a sério a coisa pública, já haveriam de, naturalmente, compor o repertório de ação dos gestores públicos que, personificando o acionista controlador em empresas estatais, têm de indicar membros aos conselhos de administração, fiscal e diretorias, num quadro em que a racionalidade administrativa sempre se apresentou como artigo escasso nesses processos de escolha e designação de agentes.
Seja como for, apreciável é que o novo marco normativo das estatais consagra uma política de indicação, pelo controlador, dos administradores, considerados como tais os membros do conselho de administração e diretores das empresas públicas e sociedades de economia mista (art. 16, parágrafo único, Lei federal nº 13.303/16). Segundo os novos condicionalismos jurídicos, estampados no art. 17 da lei de regência, os escolhidos devem ser cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento, devendo, como requisito de ordem positiva, possuir experiência profissional e formação acadêmica compatível com o cargo para o qual indicados, na forma do detalhamento traçado pela própria lei. Na contraface disso, avultam os requisitos impedientes da assunção das funções de administrador, tidos como limites negativos: não se enquadrar o indicado nas hipóteses de inelegibilidade, não possuir qualquer forma de conflito de interesse com a pessoa político-administrativa controladora da empresa estatal ou com a própria pessoa jurídica empresarial. Além disso, não podem ser membros de conselho de administração representantes do órgão regulador ao qual a estatal se encontra sujeita, tampouco ministros de Estado e secretários estadual e municipal, bem como ocupantes de cargo sem vínculo permanente com o serviço público, além de dirigentes estatutários de partido político e de titulares de mandato no Legislativo de qualquer ente da Federação, ainda que licenciados do cargo.
A sistematização contida no art. 17 da Lei federal nº 13.303/16 é longa: interdita ainda a indicação para o conselho de administração de pessoa que, nos últimos 36 meses, tenha participado de estrutura decisório de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral. O sujeito que exerce cargo em organização sindical também se encontra impedido de aceder à referida função no âmbito de um estatal.
De comum em todas essas exigências e restrições? Um claro esforço legislativo de depuração da função e da essência dessas pessoas jurídicas de direito privado que, encravadas nas Administrações Públicas, possuem, como manifestação da atuação empresarial do Estado, uma inegável missão de interesse público a satisfazer. É que a observação da realidade com base no que ordinariamente acontece sempre permitiu a constatação de grandes distorções no setor público empresarial, sendo impressivos o amadorismo, o improviso, um acentuado corporativismo, aparelhamentos político-partidários e uma atávica falta de compromisso por eficiência econômica e administrativa na gestão e condução dos rumos de empresas públicas e sociedades de economia mista. São contumazes, aliás, os vícios forjados em indicações de diretores e conselheiros despreparados para a função, sendo inegável o desvio ímprobo em que incorrem chefes do Executivo quando, por meio de uma vontade imperfeita, procedem com malferimento às boas práticas de gestão de empresas estatais.
Para além de uma endêmica falta de espírito público e de apreço pelo que é o coletivo por parte de administradores públicos das mais diferentes matizes político-partidárias, o fato de o direito administrativo, como assevera Mário Engler Pinto Júnior, nunca ter dado grande importância ao potencial do controle acionário e ao papel da estrutura interna de governança das empresas estatais (PINTO JÚNIOR, Mario Engler. Empresa estatal: função econômica e dilemas societários. São Paulo: Atlas, 2010, p. 103) talvez constitua também razão para a institucionalizada pouca seriedade com que, historicamente, foram tratadas as empresas estatais, sempre reféns das veleidades do acionista controlador.
Ora, se o conselho de administração é o órgão que, numa estatal, define os rumos de sua atuação, o que esperar dela (da empresa) quando naquele colegiado encontram-se parentes de autoridades, apadrinhados, correligionários políticos e afins, todos sem mínima qualificação, capacidade técnica e independência para tomar decisões que vão determinar o sentido e a direção da atuação empresarial do Estado? Que eficiência técnica, administrativa e econômica há de vir pela mão de quem naquela posição se encontra apenas pela percepção, na imensa maioria dos casos, dos chamados jetons? Como poderá um conselho de administração fixar a orientação geral das atividades sociais das empresas estatais, quando os conselheiros, despidos de qualquer aptidão profissional, guardam maior reverência a quem os indicou e não ao interesse público primário que inspira a atuação empresarial do Estado?
Seja para explorar atividade econômica com rentabilidade (produção ou comercialização de bens e serviços), seja para a prestação de serviços públicos, espera-se que as empresas estatais atuem eficientemente sob as perspectivas operacional e financeira e com um nível de administração técnica minimamente estável. O que não é mais de ser tolerado é a transformação de empresas estatais em instrumento de política partidária, a partir de sua feudalização, voltada aos projetos de poder e aos desvios de finalidade institucional, disso resultando um setor público empresarial ineficiente por falta de competitividade, baixa capacidade de inovação tecnológica, desprofissionalizado e fortemente marcado pelas influências políticas. Não pode mais ser aceitável o demérito das escolhas desviantes feitas pelo acionista controlador das estatais, sob pena de a adoção do figurino de empresas no âmbito do Poder Público perder todo o sentido para a Administração, ante o comprometimento da racionalidade e da mais-valia do formato empresarial (a considerar a relação custo-benefício e a relação custo-eficácia).
Volta-se, portanto, à pergunta anteriormente feita: como esperar bons resultados do setor empresarial público, quando o conselho de administração e as diretorias de uma estatal, cujos agentes costumam ser reverentemente dóceis às autoridades do Executivo, são povoados, ademais, por sujeitos sem mínima qualificação técnica e profissional? Ora, já dizia o Barão de Itararé que “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”.
No entanto, do tão aguardado Estatuto das Empresas Estatais (Lei federal nº 13.303/16), espera-se possa ele ser o móvel da revolução na capacidade gerencial das empresas estatais nacionais. Expecta-se que os recentes escândalos no interior de grandes e importantes estatais brasileiras, e que conferem especiais atualidade e pertinência ao tema em causa, sejam a chave da mudança de comportamento administrativo do acionista controlador, que não deve incorporar padrões de desperdício, mandonismo, descaso com a administração da atividade empresarial pública, letargia, voluntarismos, improvisação e clientelismo, com domesticação, em certo sentido, da arbitrariedade política e individual dos decisores políticos. Conselhos de administração passivos no cumprimento de sua missão institucional, orientados por interesses fisiológicos, subalternos e miúdos da política partidária, desprovidos de adequada capacidade técnica e profissional, com insuficiente reputação de credibilidade no setor público e sem efetivo poder para escolher e demitir a diretoria, são, em verdade, arremedos de conselho e, logo, incapazes de modular a ação empresarial pública.
Ao assumir a condição de acionista prevalecente para eleger a maioria dos conselheiros, o Estado, como assevera o já referido Mario Engler, deve fazer-se representar naquela instância societária por pessoas comprometidas com a causa pública e identificadas com as diretrizes da gestão em vigor (op. cit., p. 174), sendo o conselho de administração, por sua relevância, o órgão que, no recôncavo de uma empresa estatal, assume o papel de principal responsável pela formação de uma vontade social, sendo, por isso mesmo, a instância essencialmente privilegiada para o debate, e para onde devem convergir os interesses tanto de natureza patrimonial quanto coletiva.
Enfim, não se trata aqui de retórica discursiva, fruto de um rígido academicismo e, sim, de simplesmente analisar a realidade com visão crítica. A propósito, saberia alguém dizer quantos membros de conselhos de administração de estatais que, lhe sendo conhecidos, não teriam a menor chance de desempenhar função equivalente em empresas de porte assemelhado, com atuação no mercado concorrencial puramente privado e fortemente orientada pelo ânimo de lucro? Aliás, sabe algum leitor quem são os membros dos conselhos de administração das empresas estatais do seu município e de seu Estado? Ora, se o real dono da empresa estatal desconhece tais elementos, parece consensual reconhecer que os negócios não tendem a prosperar mesmo... Nessa complexa conjuntura, a falta de exercício qualificado para o controle acionário, somadas à ausência de governança corporativa e a uma dose escandalosa de desvario administrativo constituem a combinação perfeita para que as empresas estatais possam ser tudo, menos verdadeiras empresas.