Colunistas

Lei federal nº 13.655/18: um convite ao exercício da alteridade

ANO 2018 NUM 405
Rafael Arruda (GO)
Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Procurador do Estado de Goiás. Diretor de Relações Institucionais do Instituto de Direito Administrativo de Goiás – IDAG. Advogado – sócio em Lara Martins Advogados


30/07/2018 | 5452 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

A Lei federal nº 13.655, de 25 de abril de 2018, apelidada nos meios acadêmicos de lei da segurança para a inovação pública, ao acrescer dispositivos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB – Decreto-Lei nº 4.657/42), merece, por seu expressivo e vanguardista conteúdo normativo, análise que não se circunscreva ao limitado recôncavo do Direito.

E por quê? Porque a Lei federal nº 13.655/18, forte, embora, em seu conteúdo jurídico, apresenta-se como a mais decantada expressão hermenêutica do “respeito pela diferença”, a partir da consideração do lugar de fala dos sujeitos a que ela (a lei) se destina. Isso fica claro, à partida, já no art. 20 da LINDB, ao assentar que nas esferas administrativa, controladora e judicial não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos, sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Ora, ao exigir o legislador nacional que o agente da sindicabilidade sopese a repercussão de seu agir, outra coisa não faz a lei, senão remarcar que existem diferentes lugares a partir do qual se pode articular, linguajar, interpelar o outro, e o efeito que se vislumbrar aí será diferente em cada um desses lugares.

Mais precisamente no que atina ao Direito Público, tal aspecto – o do lugar da fala – é reforçado pelo art. 21 da LINDB, segundo o qual a decisão que decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso as suas consequências jurídicas e administrativas, dispositivo este que patenteia um apreciável comando de sensibilização do controlador, seja ele de que instância ou quadrante for.

Em tal contexto, sendo o laço social estruturado a partir dos discursos, o sujeito que toma o ato, ocupando ali um determinado lugar, produz no outro, por conseguinte, uma determinada posição. Na verdade, e isso não é nenhuma novidade para o rico universo da psicanálise, todo discurso é, ao cabo e ao resto, um aparelho de gozo. Inclusive este texto, bien sûr! E o que isso tudo vem a significar para os estreitos limites do presente ensaio? Que todo aquele que, em sentido amplo e em determinada medida, exerce atividade revisora, seja o membro do Ministério Público, o Conselheiro das Cortes de Contas, os agentes das Controladorias/Auditorias dos entes públicos, os membros das Advocacias Públicas e os juízes deverão, antes de interferir no agir da Administração Pública, esforçar-se para, colocando-se no lugar do administrador público, apreciar as consequências jurídicas e administrativas de sua decisão, o que vale também para os atos de caráter opinativo que, porventura, posicionem-se por determinada invalidação ou irregularidade no ecossistema do Poder Público.

Longe de querer que a discricionariedade do administrador seja substituída pela discricionariedade do controlador, o intuito da Lei federal nº 13.655/18, nesse particular, é o de encorpar o senso de responsabilidade do agente da sindicabilidade – judicial ou administrativa – quando, no exercício de seu mister, tenha de promover interferências ou injunções na Administração. Daí, não por acaso, estabelecer o art. 22 da LINDB que, na interpretação de normas sobre gestão pública, deverão ser considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. Conforme, aliás, anota Juliana Bonacorsi de Palma, a competência administrativa até pode se deslocar para a esfera controladora quando o revisor (pretender indevidamente) se colocar na posição de administrador, de modo tal que, decidindo decidir no lugar do gestor, deve assumir a competência por inteiro, e não pela metade que mais lhe favorece, que é aquela correspondente às prerrogativas e formação do conteúdo decisório. Isso porque, ainda nas palavras daquela jurista, “(...) a tomada de decisão é marcadamente afetada por uma série de variáveis que caracterizam o funcionamento institucional em que se coloca a autoridade competente”, pelo que as circunstâncias fáticas da gestão pública que influenciam a interpretação administrativa devem também ser consideradas pelo controlador (PALMA, Juliana Bonacorsi de. A proposta de lei da segurança jurídica na gestão e do controle públicos e as pesquisas acadêmicas, disponível em http://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2018/04/PALMA-Juliana-A-proposta-de-lei-da-seguran%C3%A7a-jur%C3%ADdica.pdf).

Por outras palavras, os discursos manejados pelos órgãos de controle, num ambiente destinado a arranjar os destinos da coisa pública, devem ser escrupulosamente públicos, jurídicos, objetivos, racionais, parametrizados, sérios e baseados em evidências (críticas e científicas), sem abstracionismos retóricos que, no geral, assumem pouca utilidade. É dizer, a nenhum agente público, em nome do postulado fundamental da segurança jurídica, deve ser dado ignorar o lugar a partir do qual toma a palavra: o recinto do administrador, com efeito, é deveras distinto do plano em que se situa o agente do controle. Este, ao falar àquele, deve saber exatamente a quem dirige o seu discurso, porque a palavra endereçada ao outro, como produto da intersubjetividade, produz inúmeros efeitos, dentre eles o de cortar, interferir, julgar e, não raro, o de menoscabar, o que mais se agrava quando a atividade controladora é contaminada pelas impressões pessoais, pelos pré-conceitos e estereótipos de quem a encarna.

Daí, como dito inicialmente, ser a Lei federal nº 13.655/18 uma verdadeira ode ao respeito pela diferença, reivindicação de prestígio à ética da alteridade e que corresponde, no limite, a um apelo à preservação do direito administrativo das legítimas escolhas realizadas por aquele que se encontra constitucionalmente investido na posição de governar e administrar. É que essa falta de respeito para com o outro – ou pelo discurso do outro –, quando perpetrada pelos agentes de controle, sobretudo quando o repertório é marcado pela vaguidão e por anseios personalistas de base subjetiva, é, à evidência, bem revelador de um modo-de-ser narcisístico. E quem foi Narciso na mitologia grega? Foi aquele personagem de extrema beleza que, ao se mirar pela primeira vez em um espelho (d’água), encantou-se com a própria imagem e ali permaneceu até morrer paralisado de paixão por si mesmo diante da fonte...

Assim que, nos termos do § 1º do art. 22 da LINDB, em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, devem ser consideradas (pela autoridade controladora em sentido amplo) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente (é dizer, do administrador público), como que a exigir daquele um sair da corporeidade em que está enraizado (ou encastelado), para vivenciar uma experiência de descentramento na ambiência administrativa, com todos os seus obstáculos e as suas burocracias e dificuldades.

Mais que nunca, uma maior deferência às decisões administrativas é de ser levada em conta pelas autoridades do controle, que, aliás, deve sempre ser robustecido, sem ignorar a busca de suplência aos seus limites e de conformação dos seus excessos. De lado a lado, o Direito Público merece o mais devotado e reverente respeito por seus aplicadores – administradores e controladores –, a partir de uma lógica que busque superar as preconceituosas desconfianças quanto às possibilidades do sujeito que administra e cujo sentimento, não raro, anima a atuação de órgãos de controle externo, nomeadamente Ministério Público e Tribunais de Contas, numa espécie de arrogância que se considera inatacável, invulnerável, blindada e que necessita, portanto, ser contida, acomodada, sem jamais secundarizar o seu papel, porque ninguém com espírito público haverá de sustentar o apequenamento, enfim, das instâncias de controle interno e externo das Administrações Públicas. Não é disso que trata a lei da segurança para a inovação pública.

O que é, portanto, a Lei federal nº 13.655/18? É ela o mais genuíno convite ao exercício da alteridade, um chamamento aos agentes do controle público das instâncias judicial e administrativa para a criação e experimentação de novas dimensões de si próprio, do outro e do mundo. Um Direito Público para novos tempos!



Por Rafael Arruda (GO)

Veja também