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Vacinas, convicções individuais e imposições estatais – um breve ensaio

ANO 2020 NUM 471
Rafael Arruda (GO)
Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Procurador do Estado de Goiás. Diretor de Relações Institucionais do Instituto de Direito Administrativo de Goiás – IDAG. Advogado – sócio em Lara Martins Advogados


28/10/2020 22:35:36 | 4893 pessoas já leram esta coluna. | 9 usuário(s) ON-line nesta página

Obrigatoriedade ou não de submissão às vacinas? Realização compulsória de vacinação massiva e outras medidas profiláticas? Quais os limites da autonomia privada contra imposições estatais? O tema é controvertido e ganha crescente atenção, na mesma proporção em que avançam as chances de vacinas para o enfrentamento à pandemia de Covid-19 (SARS-CoV-2) serem disponibilizadas em breve à população. É que pelo menos 6 delas já se encontram na 3ª e última fase de testes (https://www.bbc.com/portuguese/geral-53760433), com destaque, no recôncavo doméstico, para a Coronavac, vacina produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac (https://noticias.uol.com.br/videos/2020/10/19/a-vacina-do-instituto-butanta-e-mais-avancada-entre-as-testadas-no-brasil-diz-doria.htm). Como pano de fundo disso tudo, a polarização política que tem lugar a partir da atuação de atores de relevo no cenário nacional, Chefes do Executivo de entes federados diversos, conforme evidencia o noticiário político (https://oglobo.globo.com/sociedade/bolsonaro-rebate-doria-diz-que-governo-federal-nao-vai-obrigar-vacinacao-contra-covid-19-24697597).

Num ambiente assim conturbado, a judicialização sobe ao palco. No momento em que este ensaio é escrito, tem-se a notícia de que ao menos três diretórios nacionais de organizações partidárias (PDT, PTB e Rede Sustentabilidade) ajuizaram ações no Supremo Tribunal Federal (STF), cujos objetos são respeitantes a aspectos relacionados à vacinação contra a Covid-19. Na ADI 6586, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) requer seja reconhecido que Estados e municípios possam determinar a realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas (http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=453741&ori=1). Já na ADI 6587, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) pede seja declarada inconstitucional a regra constante da Lei federal nº 13.979/2020 (art. 3º, III, “d”) que permite a realização compulsória de vacinação. Por sua vez, a Rede Sustentabilidade, na ADPF 754, requer que o governo federal apresente um plano de vacinação, em prestígio aos direitos fundamentais à saúde e à vida (http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=453867&ori=1). Ao adotar o rito abreviado de tramitação das ações de fiscalização normativa abstrata de constitucionalidade, com remessa direta ao plenário, é de se conjecturar que nas próximas semanas ocorram os correlatos julgamentos, sendo relator das três ações acima referidas o Min. Ricardo Lewandowski (http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=453974&ori=1). 

Pertinente ao tema, dentro em pouco o Supremo Tribunal Federal deverá também decidir, em sede de repercussão geral, se os pais podem deixar de vacinar os seus filhos menores de idade, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais. O tema será debatido no ARE 1267879, sob a relatoria do Min. Luís Roberto Barroso. A controvérsia teve início em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) contra os pais de uma criança, atualmente com 5 anos de idade, a fim de obrigá-los a regularizar a vacinação do filho. É que, por serem adeptos da filosofia vegana e contrários a intervenções médicas invasivas, eles deixaram de cumprir o calendário vacinal determinado pelas autoridades sanitárias brasileiras (http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=451552&ori=1).

Consulta ao sítio eletrônico do STF revela que em 28/8/2020, o Tribunal, por unanimidade, reputou constitucional a questão que envolve a vacinação, ou não, de crianças, tendo reconhecido a existência de repercussão geral da matéria (http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5909870). Tramitando em segredo de justiça, por envolver interesses de menor de idade, acessíveis são apenas os elementos noticiados, em caráter informativo, pela Corte Suprema, segundo a qual, para o relator, “(...) de um lado, tem-se o direito dos pais de dirigirem a criação dos seus filhos e a liberdade de defenderem as bandeiras ideológicas, políticas e religiosas de sua escolha. De outro lado, encontra-se o dever do Estado de proteger a saúde das crianças e da coletividade, por meio de políticas sanitárias preventivas de doenças infecciosas, como é o caso da vacinação infantil”. Ainda segundo o Min. Roberto Barroso, o tema tem relevância social, em razão da natureza do direito requerido e da importância das políticas de vacinação infantil determinadas pelo Ministério da Saúde. Para ele, “(...) a relevância política diz respeito ao crescimento e à visibilidade do movimento antivacina no Brasil, especialmente após a pandemia da Covid-19. Do ponto de vista jurídico, o caso está relacionado à interpretação e ao alcance das normas constitucionais que garantem o direito à saúde das crianças e da coletividade e à liberdade de consciência e de crença”.

Outro caso análogo, e que pode auxiliar na construção de um repertório de entendimento acerca dos limites da autonomia privada contra imposições estatais, é o relativo à Repercussão Geral no RE 1212272, que tem como relator o Min. Gilmar Mendes. Na espécie, discute-se o direito de autodeterminação de pacientes testemunhas de Jeová submeterem-se, ou não, a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa. Em ambos os casos – não vacinação de menores por convicção pessoal dos pais e não submissão a transfusões de sangue por parte daqueles que professam determinada crença religiosa –, reconhecida a existência de repercussão geral da questão constitucional, cabe aguardar o STF realizar os correspondentes julgamentos de mérito, com enfrentamento de relevantes questões que ultrapassam os interesses subjetivos do processo (art. 1035, § 1º, CPC).

Enquanto, porém, não sobrevém o deslinde de tais controvérsias pelo Supremo Tribunal Federal, possível é especular que, no caso envolvendo a transfusão, ou não, de sangue, por parte de testemunha de Jeová, a Corte Suprema se incline a reconhecer que um paciente, pessoa maior de idade, capaz e lúcida, em razão de sua consciência religiosa, possa validamente se recusar a receber transfusão de sangue alogênico (sangue de terceiros), de modo a ter resguardado o seu direito de autodeterminação, com a assunção dos possíveis riscos de um tratamento médico assim conduzido. É expectável que o STF, com base nos subsídios já revelados pelo relator, o Min. Gilmar Mendes, reconheça deva o Estado abster-se de interferir em tal escolha existencial legítima, baseada em convicções e valores muito caros, que definem uma testemunha de Jeová enquanto ser humano, sujeito de direitos e merecedor de respeito à sua dignidade.

A propósito, em sua manifestação a favor da repercussão geral, o Min. Gilmar Mendes pontuou que enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face do Estado ou de particulares, sendo exemplos disso a liberdade de confessar ou não uma fé e o direito contra qualquer forma de agressão a sua crença, pelo que, no tocante à liberdade religiosa, a manutenção deste quadro de democracia é garantida pela neutralidade religiosa e ideológica do Estado. Nesse sentido, arrematou que “(...) a possibilidade de (o) paciente submeter-se a procedimento cirúrgico com a opção de não receber transfusão de sangue, em respeito a sua autodeterminação confessional, é questão diretamente vinculada ao direito fundamental à liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), além de outros princípios e garantias constitucionais, como os insculpidos no art. 1º, II e III; art. 3º, I e IV; art. 5º, caput, da CF” (http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5703626&numeroProcesso=1212272&classeProcesso=RE&numeroTema=1069). Questão semelhante é também objeto da ADPF 618, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, que até então estava sob a relatoria do Min. Celso de Mello (http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5006128).

O caso, vale anotar, não se confunde com o que é discutido no RE 979742, conduzido pelo Min. Roberto Barroso e com repercussão geral reconhecida pelo Plenário Virtual em 30/6/2017 (http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5006128). Neste, o STF decidirá se convicções religiosas podem autorizar o custeio, pelo Estado, de tratamento médico indisponível no sistema público, de modo a garantir o direito à saúde de maneira compatível com a convicção religiosa, ainda que isso possa representar custos acrescidos ao erário. Em tal circunstância, a particularidade de o Poder Público ter de suportar custos elevados com determinado tratamento ou terapia, em razão de convicções pessoais – filosóficas, religiosas e outras mais – pode conduzir, em certa medida, a situação diversa, num cenário em que, por certo, determinado bem escasso (verbas públicas) não permita a satisfação plena do direito vindicado. Tal circunstância é, em certo sentido, análoga àquela em que o STF decidiu (RE 566471, com repercussão geral) não ser o Estado obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, do Sistema Único de Saúde (SUS) (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439095&caixaBusca=N#:~:text=O%20Plen%C3%A1rio%20do%20Supremo%20Tribunal,%C3%9Anico%20de%20Sa%C3%BAde%20(SUS)), com as exceções que ainda estão sendo discutidas pelo colegiado, previamente à fixação da tese. A ver, enfim, a que resultado chegará a Corte Suprema nos hard cases referidos no presente articulado.

Enquanto, porém, tais julgamentos não ocorrem, pertinente é que a comunidade jurídica, atenta às questões do cotidiano, ofereça algum contributo à superação de divergências e disputas das questões relacionadas ao direito público, nomeadamente no que diz respeito à obrigatoriedade e, até mesmo, compulsoriedade de vacinação contra a Covid-19 (o novo Coronavírus). É o objetivo a que se propõe este ensaio, construído a partir de insights de seu autor. E é no confronto que o tema suscita – encontros e desencontros –, em cruzamentos multiformes que envolvem democracia, política, liberdades de crença e de convicção, polícia sanitária, economia e autodeterminação, que o direito, a economia, a ciência política, a psicologia e outras ciências hão de apresentar soluções, muitas das quais ainda não vieram à tona.

Todos vão reconhecer que a ciência, a política, a filosofia, a economia e a própria moral regem-se pelo princípio da autonomia, com reflexos pessoais na mundividência da vida e dos seus propósitos, predicativos, aliás, prezáveis em sociedades liberais democráticas, marcadas, sobretudo, pela variedade e abertura do catálogo de direitos fundamentais, que é sempre obra da civilização jurídica, consoante a expectativa fundamental de construção da felicidade das pessoas a partir de uma ideia de liberdade individual.

Os aspectos relativos à liberdade de crença e de convicção restaram bastante remarcados na ADI 4439 (STF-Pleno, j. 27/9/2017), que versava sobre ensino religioso em escolas públicas, tendo o relator do acórdão, Min. Alexandre de Moraes, reconhecido que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também as que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a democracia somente existe baseada na consagração do pluralismo de ideias e pensamentos políticos, filosóficos, religiosos e da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo.

Dúvidas sérias não restam de que as vacinas, como clássico instrumento de saúde pública, são uma proteção coletiva, não individual, na medida em que elas garantem uma imunidade de grupo (ou efeito rebanho).

Programas de imunização nunca atingiram 100% de uma determinada sociedade, e isso nem é necessário. Segundo publicação especializada, se a distribuição de vacinas em programa de imunização for aleatória e abrangente, não é imprescindível que a vacinação alcance a totalidade da população para o controle de dada doença (http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/livro_30_anos_pni.pdf). Seja como for, várias podem ser as razões para que alguém não seja submetido a uma vacina: (i) absenteísmo, (ii) locais de difícil acesso, (iii) comunidades distantes; (iv) recurso a soluções paralelas (alternativas e naturais), como as chamadas vacinas homeopáticas, (v) relutância quanto ao consumo dos compostos que integram o conteúdo de vacinas, como os sais de alumínio, formaldeído e phenoxyethanol (https://www.news-medical.net/health/Vaccine-Excipients.aspx), substâncias estas alegadamente cancerígenas, (vi) receio a reações adversas, (vii) temor quanto à sua eficácia e por aí afora. A lista aqui apresentada é meramente exemplificativa, com ilustrações que buscam tornar mais reais alguns fatores que, no fundo, orientam escolhas de vida.

À vista da atual ordem constitucional brasileira, parece difícil reconhecer o cabimento da obrigatoriedade de vacinação e, com muito maior razão, a sua compulsoriedade, a partir de atos administrativos ou normativos mandatórios editados pelo Poder Público, tal como as normas constantes do art. 3º, parágrafo único, da Lei federal nº 6.259/1975, que estabelece competir ao Ministério da Saúde a definição das vacinas de caráter obrigatório, com regulamentação pelo Decreto nº 78.231/1976, ou como a que se vê estampada na alínea “d” do inciso III do art. 3º da Lei federal nº 13.979/2020, cujo modal deôntico confere uma prerrogativa de comando à Administração Pública (para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas).

A se admitir distinção jurídica entre obrigatoriedade e compulsoriedade, cuja hipótese não é cerebrina, parece certo que esta (a compulsoriedade), com muito maior razão, denota inegável agressão à garantia de liberdade individual, no sentido de o sujeito não ser compelido, por meio da força física, a se vacinar contra a sua vontade. Nem mesmo a dita internação involuntária (ou compulsória) de dependentes de drogas, em procedimento cercado de garantias legais, vai tão longe, como deixa a ver a Lei federal nº 11.343/2006, com as modificações introduzidas pela Lei nº 13.840/2019.

 Convicção pessoal, é certo, não é e nunca foi princípio absoluto. Tanto que, em nome de outros valores, ministros da mais alta Corte do país a ela já renunciaram em prestígio ao princípio da colegialidade, num pragmatismo que é favorável à ordem jurídica (por todos, veja-se o RE 1151652 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, 2ª Turma, j. 12/3/2019). A convicção vencida num julgamento colegiado talvez não tenha grande repercussão na vida pessoal do julgador, que, dado aos debates e forjado na dialética discursiva, pode, sem grandes assombros, desfrutar de um decantado sono dos justos. O magistrado, em específica circunstância, não viverá angustiado, pela singela, quanto ineliminável, razão de que tal contingência é própria do serviço público em causa – a prestação da Justiça.

Poderia, no entanto, a convicção pessoal de uma pessoa maior e capaz, relativamente a aspectos de saúde (e, de resto, filosóficos e existenciais), como submeter-se, ou não, a determinado programa de vacinação, ser colocada em segundo plano? Nos termos do art. 5º, VI, da Constituição Federal, que preceitua ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, quer parecer que convicção pessoal, designadamente as de caráter filosófico, religioso, moral, existencial e outras, não pode, por cogência de outrem – e mesmo do Estado –, ser derrotada. Daí que, conforme sustenta Gomes Canotilho, as liberdades (liberdade de expressão, liberdade de informação, liberdade de consciência, religião e culto, liberdade de criação cultural, liberdade de associação) costumam ser caracterizadas como posições fundamentais subjetivas de natureza defensiva e que conferem ao seu titular a possibilidade de escolha de um comportamento (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7 ed. Almedina: Coimbra, 2003, p. 1260): tomar ou não uma determinada vacina, quando em causa pessoas maiores e capazes, é uma dessas escolhas possíveis, a denotar, enfim, crenças ou descrenças, a confiança ou a falta dela, com as consequências negativas que desse comportamento possam advir, tais como o não usufruto ou a restrição de acesso a determinadas posições de vantagem: percepção de benefícios sociais ou governamentais, utilização de transportes coletivos, matrículas em creches, pré-escola, ensino fundamental, médio e ensino superior etc.

Pela facilidade do exemplo, vale nova referência às testemunhas de Jeová, que são reconhecidas, dentre outras características marcantes, pela recusa em aceitar transfusões de sangue. Submeter-se a esse tipo de tratamento, segundo a religião, torna o seguidor impuro e indigno do reino de Deus. A recusa, nestes casos, não significa propriamente desejo de morte ou desprezo pela saúde e pela vida, pois as pessoas que integram essa comunidade religiosa aceitam se submeter a métodos alternativos à transfusão sanguínea. Mas, na sua impossibilidade, preferem se resignar à possibilidade de morte a violar as suas convicções religiosas, que, como traço marcante da autonomia e da liberdade do indivíduo, são protegidas contra a intervenção do Estado. Em tal sentido, as outras convicções – de cariz filosófico, moral e existencial, podem validamente figurar no mesmo plano, não havendo aí qualquer gradação, diminuição ou rebaixamento de nível.

Ora, se mesmo para a defesa da Pátria e garantia dos poderes constitucionais (art. 142, caput, CF) a ordem jurídica admite a prestação de serviço alternativo aos que alegarem imperativo de consciência, como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política (§ 1º do art. 143 da CF – STF, HC 96526, Rel. Min. Ayres Britto, 2ª Turma, j. 26/10/2010), por identidade de razões é de se reconhecer a viabilidade de escusa de consciência ou de convicção para que determinado sujeito não seja forçadamente submetido a um dado programa vacinal, desde que, como já alinhado, o autor da vontade seja maior e capaz. Para os menores de idade, aplicável é, com efeito, um estatuto diverso, cabendo ao Estado, em paralelo à família e à sociedade, defender o superior interesse de crianças e adolescentes, assegurando-se-lhes, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde (art. 227, caput, CF). Em tal conjuntura, a envolver menores de idade, incidente parece ser a obrigatoriedade de vacinação.

É o que, para exemplificar, se passa em França, o país da revolução e da liberté, que a partir de 2018 promoveu uma extensão das obrigações vacinais, saltando de 3 para 11 vacinas (difteria, tétano, poliomielite, coqueluche, infecção à Haemophilus Influenzae de tipo b, infecção pneumocócica, infecções meningocócicas C, hepatite B, sarampo, caxumba e rubéola), tendo como destinatários os bebês entre 2 e 18 meses, conforme Synthèse du premier bilan annuel des obligations vaccinales du nourrisson, de dezembro de 2019 (https://solidarites-sante.gouv.fr/IMG/pdf/synthese_du_rapport_2019.pdf). Segundo a Lei francesa nº 2017-1836, de 30 de dezembro de 2017, a vacinação obrigatória de menores condiciona a sua entrada ou permanência em todas as creches, escolas, colônias de férias e outras atividades coletivas infantis (https://professionnels.vaccination-info-service.fr/Aspects-juridiques/Infractions-et-sanctions/Non-respect-des-obligations-vaccinales).

Assim, admitindo-se que o conhecimento científico que se tinha na época de Louis Pasteur (século XIX) é muito menor em relação ao conhecimento atual de imunologia e vírus, aceitável – recomendável mesmo – é que os Poderes Públicos influam no comportamento dos particulares, de modo a induzi-los a adotar supostos modos de agir e de vida tidos como relevantes ao interesse da coletividade, como remarcada manifestação de uma ética de responsabilidade comunitária, em paralelo, para ilustrar, à extrafiscalidade tributária (por meio dos chamados impostos do pecado) sobre certos produtos que podem ser nocivos à saúde, tais como bebidas alcoólicas e adoçadas, cigarro, tabaco, alimentos ultraprocessados e por aí afora. Seja como for, mesmo no caso brasileiro, desde a 1ª vacinação aqui realizada, em 1804, extraordinário foi e tem sido o progresso da ciência. Basta ter em conta que nas primeiras vacinações contra a varíola, introduzidas pelo Marquês de Barbacena, que trouxe o vírus vacínico de Portugal nos braços de escravos e o espalhou no País, colhia-se o material da pústula (linfa) de um indivíduo e inoculava-se, em seguida, em outro (http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2004/prt0597_08_04_2004.html).

 Com efeito, a evidência científica e a realidade histórica fornecem argumentos claros e seguros para recomendar a vacinação, com o intento não apenas de proteger o indivíduo, mas a comunidade. Torna-se ônus do Poder Público exercer o necessário convencimento e apresentar os incentivos comportamentais corretos para a indução de providências e medidas que logrem realizar interesses da sociedade, designadamente no que diz respeito à redução de agravos e óbitos por doenças que são imunopreveníveis. A difusão de informações e a publicidade de caráter educativo, informativo e de orientação social (art. 37, § 1º, CF) buscam cumprir o papel de influir positivamente no comportamento dos indivíduos, em benefício de quem a Constituição Federal garante liberdade de crença em sentido amplo para resguardar, inclusive, as convicções heterodoxas, é dizer, as convicções não convencionais.

Daí que, se, ao tomar uma decisão baseada em padrões de crença limitantes, mitos, fake news ou inadequações científicas, as pessoas não o fazem de forma livre e esclarecida, toca ao Estado atuar positivamente para que a melhor informação – credível, de qualidade e confiável – seja ofertada aos cidadãos, com vistas, vale uma vez mais repetir, a influir nas decisões e nos modos de vida dos indivíduos. As campanhas nacionais de vacinação, a propósito, são um importante exemplo de ação pública tendente a proporcionar o crescimento da conscientização social a respeito da cultura em saúde. Ilustrativo, aliás, é o Zé Gotinha, símbolo de campanha contra a poliomielite e que marcou uma geração (a da década de 1980) pelas ações de difusão veiculadas no rádio e na TV. Trocando em miúdos, massivas campanhas de vacinação podem ser utilizadas como poderosa estratégia governamental para controlar mais rapidamente certa doença.

Para tanto, o Poder Público tem ao seu dispor modernos conhecimentos que a psicologia comportamental e a neurociência oferecem, a partir de testes, experimentos e inputs oriundos da abordagem comportamental, em especial os nudges, conhecidos como “cutucões” ou “empurrões” comportamentais: a liberdade de escolha e de atuação dos cidadãos não é suprimida, mas sim induzida (persuasão) a determinada opção, fenômeno este que produz importantes repercussões na construção e execução de políticas públicas.

Dificuldades, aliás, não haverá para que a população seja convencida acerca da importância da vacinação. Conforme revela recente estudo da revista Nature, o Brasil figura como o segundo país mais disposto a se vacinar contra a Covid-19, com 85,3% da população a aguardar um “imunizante seguro e eficaz”. Segundo aquela publicação científica especializada, foram apurados dados de 19 países mais atingidos pela pandemia. O Brasil ficou apenas atrás da China, onde 88,6% das pessoas estão dispostas a se submeter à vacinação (https://saude.ig.com.br/coronavirus/2020-10-22/brasileiros-sao-a-segunda-populacao-mais-disposta-a-se-vacinar-contra-covid-19.html).

Tem-se aqui, portanto, a revelação de mudanças de paradigma do direito administrativo, não pela ideia de relativização da noção de supremacia do interesse público, mas, sim, como já há certo tempo sustenta José Vicente Santos de Mendonça, pela ascensão dogmática e prática de um novo estilo de direito administrativo, que é, como mínimo, mais pragmatista e empiricista (MENDONÇA, José Vicente Santos de. A verdadeira mudança de paradigmas do direito administrativo brasileiro: do estilo tradicional ao novo estilo in Revista de Direito Administrativo – RDA, v. 265, jan/abr 2014, Rio de Janeiro, p. 179-198) e, logo, mais leve, menos mandatório, menos autoritário, mais persuasivo e, na medida do possível, de pendor tendencialmente consensual.  

Em jeito de conclusão, perante o atual quadro constitucional brasileiro, está nas mãos do Estado defender a vacinação, incutir segurança à população quanto à eficiência do imunizante, bem como promover induções eficientes e eficazes a influenciar escolhas individuais, com a finalidade de reduzir opções eventualmente ruins ou pouco apreciáveis, sem, porém, supressão da liberdade do cidadão. Na afirmação dos direitos individuais em uma sociedade livre, o modelo de “interesses” deve resistir às tentações totalitárias de um modelo de “virtudes”, conforme já pontificava Vieira de Andrade (ANDRANDE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 4 ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 52).

Ao cabo e ao resto, cada um é razoavelmente livre para escolher o que convém ou não à sua saúde, em conformação às liberdades fundamentais, desde que, como limite negativo, não se encontre em causa o direito à saúde de menores de idade – crianças e adolescentes. A ciência, enfim, numa República democrática e de direito, e num momento em que todas as construções iluministas ameaçam desabar, é sempre digna das maiores reverências e é em torno dela – da ciência – que a sociedade deve estar unida, havendo uma edificante razão para isso: não voltar a viver no passado. A ideia dos direitos fundamentais, por paradoxal que pareça ao atual cenário brasileiro, se apresenta como a mais importante narrativa de um país que almeja vir-a-ser... (complete a frase)! Construções coletivas e concertadas nunca foram tão fundamentais como agora.



Por Rafael Arruda (GO)

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