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Medida Provisória nº 1.026/21: o regime excepcional no âmbito das contratações emergenciais

ANO 2021 NUM 475
Alberto Higa (SP)
Doutorando em Direito do Estado - USP. Mestre em Direito do Estado e Especialista em Direito Tributário – PUC/SP. Especialista em Direito Empresarial e Bacharel em Direito – MACKENZIE/SP. Ex-Assessor de Subprocuradora-Geral da República (PGR/DF – MPF) Procurador do Município de Jundiaí/SP. Membro Fundador Associado do IBEDAFT. Membro do Conselho Editorial da Editora Thoth.


20/01/2021 03:07:27 | 1785 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

A pandemia do COVID-19, de proporção mundial, explicitou a insuficiência da legislação brasileira no âmbito das contratações públicas para fazer frente às necessidades da Administração Pública, notadamente nas situações de emergência.

Com efeito, o procedimento previsto na Lei nº 8.666/93 para além de não atender, muitas vezes, as demandas do Poder Público, em especial as de natureza excepcional, como a do coronavírus, não tem se mostrado suficiente para coibir atos de corrupção também nessa seara.

É verdade que a partir do advento da Constituição Federal de 1988, com destaque para as duas últimas décadas, houve significativo avanço na atuação dos Controles Interno e Externo, além do argumento sempre lembrado no sentido de que seria muito pior sem tal burocracia exigida nos certames. Logo, não se pretende aqui avaliar a pertinência ou não da exigência de um procedimento licitatório mais ou menos flexível, ou ainda, com predominância de normas voltadas ao meio ou aos resultados.

Pretende-se apenas colocar para a reflexão a seguinte indagação: há necessidade de se criar uma legislação de regência das contratações públicas para disciplinar, de modo permanente, um regime excepcional de contratações em situações emergenciais? É dizer, um capítulo instituindo um regime excepcional de contratações na Lei Geral de Licitações e Contratos.

Não há dúvidas de que para tratar de situações emergenciais pontuais, a exemplo da reparação emergencial de telhado de escola pública danificado pelas fortes chuvas, com risco de desabamento, há a previsão da contratação direta, por dispensa de licitação, nos termos do art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/93. No entanto, será que tal dispositivo legal é suficiente para responder às necessidades das Administrações Públicas em situações de grave emergência como a do coronavírus?

Essa reflexão para o alcance de uma resposta positiva ou negativa se mantém pertinente, na medida em que mesmo o Projeto de Lei nº 4.253/2020, encaminhado para a sanção presidencial, a rigor, com inovações bastante pertinentes, seguiu a lógica da Lei nº 8.666/93 (dispensa de licitação em situação de emergência).

Com efeito, diante da ausência de um regime excepcional para o combate ao COVID-19, cujo regime ordinário não foi capaz de conferir uma resposta efetiva e útil (art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/93), necessário se fez a edição, pela União Federal, da Lei nº 13.979/20, e, depois, das Medidas Provisórias nº 926/20, 961/20 e 1.026/21.

Acerca do referido regime excepcional de contratação, em 26 de março de 2020, em artigo publicado no prestigiado site Direito do Estado (www.direitodoestado.com.br), já havíamos tecido as impressões iniciais acerca dos mecanismos trazidos pela Lei nº 13.979, de 6/2/20, já com os acréscimos advindos da Medida Provisória nº 926, de 20/3/20, para o enfrentamento à Covid-19 no âmbito das contratações públicas.

Naquela oportunidade destacamos que a única medida instituída na redação original da Lei nº 13.979/20 era bastante tímida e de pouca efetividade, posto que contemplava apenas a possibilidade de dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento do novo vírus (artigo 4º), medida essa que, a princípio, já possuía amparo no nosso ordenamento jurídico: a hipótese genérica de contratação direta nos casos de emergência ou de calamidade pública (artigo 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/93).

Daí porque, como assinalamos à época, apenas com o advento da citada Medida Provisória nº 926/20, convertida na Lei nº 14.035/20, houve, de fato, um reforço mais robusto no âmbito da legislação de contratações públicas, por meio de uma série de medidas visando a conferir flexibilidade e agilidade aos processos licitatórios necessários ao enfrentamento da pandemia da Covid-19.

No entanto, a par da louvável e importante iniciativa no tocante ao regramento das licitações, visando a contribuir com o debate, rogamos, naquele momento, atenção para a urgente necessidade de aprimoramento da disciplina da execução contratual, considerando a competência da União para editar normas gerais de licitação e contratação (artigo 22, inciso XXVII, da CF/88) e as limitações da Lei nº 8.666/93 para fazer frente aos inúmeros desafios impostos pela pandemia.

Sob tal perspectiva, haja vista as inúmeras dificuldades que vinham sendo enfrentadas por diversos entes da federação para a aquisição dos insumos para o combate à Covid-19 (notadamente máscaras e álcool em gel), em boa hora foi editada a Medida Provisória nº 961, de 6 de maio, para, no que toca à disciplina da execução contratual, permitir o pagamento antecipado pela Administração nas licitações e contratos, exceto na hipótese de prestação de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra.

Com o agravamento da pandemia e o início dos programas de vacinação contra o coronavírus ao redor do mundo, foi editada a Medida Provisória nº 1.026, de 6 de janeiro de 2021, que regula as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas, insumos, bens e serviços de logística, tecnologia da informação e comunicação, comunicação social e publicitária e treinamentos destinados à vacinação contra a Covid-19 e o Plano Nacional de Operacionalização de Vacinação contra a Covid-19.

O modelo adotado para flexibilizar e conferir agilidade aos processos de aquisição de vacinas e demais insumos ou serviços para o combate à Covid-19 é bastante similar àquele trazido pela Lei nº 13.979/20, embora tenha contemplado outras importantes inovações legislativas. Esse regramento excepcional ou específico pode ser assim dividido:

1) Normas específicas de dispensa de licitação para a Administração Pública direta e indireta celebrar contratos ou outros instrumentos congêneres visando à aquisição de vacinas e de insumos destinados a vacinação contra a Covid-19, inclusive antes do registro sanitário ou da autorização temporária de uso emergencial; bem como para contratar bens e serviços de logística, tecnologia da informação e comunicação, comunicação social e publicitária, treinamentos e outros bens e serviços necessários a implementação da vacinação contra a Covid-19 (artigos 2º e 3º da MP);

2) Normas específicas de simplificação dos procedimentos como a dispensa de elaboração de estudos preliminares, quando se tratar de bens e de serviços comuns (artigo 4º MP); a admissão de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado, observadas as exigências mínimas contidas no artigo 6º da referida Medida Provisória; a presunção de comprovação, para fins de dispensa de licitação decorrente do disposto na MP nº 1.026/20, da ocorrência de situação de emergência em saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus e da necessidade de pronto atendimento (artigo 3º da MP); a redução dos prazos, pela metade, nos casos de licitação na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, cujo objeto seja a aquisição ou contratação de que trata a citada medida provisória, além da dispensa de realização de audiência pública referida no artigo 39 da Lei nº 8.666/93 no tocante aos mencionados pregões e a atribuição de efeito apenas devolutivo aos recursos nos procedimentos licitatórios (artigo 8º da MP); a adoção da figura do “carona” e o uso do regulamento federal ao sistema de registro de preços, caso o ente federativo não tenha editado regulamento próprio, bem como de adesão, por órgão ou entidade da Administração Pública federal, de ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade estadual, distrital ou municipal em procedimentos realizados nos termos da citada medida provisória (artigo 2º, §§ 5º, 6º, 7º, 8º e artigo 10 da MP).

3) Normas específicas de flexibilização dos procedimentos como a dispensa de cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, na hipótese de haver restrição de fornecedores ou de prestadores de serviço, exceto a exigência de apresentação de prova de regularidade trabalhista e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do artigo 7º e do §3º do artigo 195 da Constituição Federal (artigo 7º da MP); permissão, em situação excepcional, comprovadamente, de haver um único fornecedor do bem ou prestador do serviço, de contratar, independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o poder público (artigo 2º, §§ 3º e 4º da MP); dispensa de estimativa de preços, excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, (artigo 6º, §2º, da MP) ou ainda a contratação pelo poder público por valores superiores àqueles obtidos por estimativa de preços, decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços (artigo 6º, §3º, incisos I e II da MP).

4) Normais específicas acauteladoras como a exigência de transparência ativa a todas as aquisições ou contratações realizadas nos termos da citada medida provisória (artigo 2º da MP); a obrigatoriedade de previsão de matriz de alocação de risco entre o contratante e o contratado, na hipótese de aquisições e contratos acima de R$ 200 milhões e gerenciamento de riscos da contratação somente durante a gestão do contrato nos contratos com valor inferior (artigo 5º da MP); a priorização, pelos órgãos de controle interno e externo, da análise e a manifestação quanto à legalidade, à legitimidade e à economicidade das despesas decorrentes dos contratos ou das aquisições realizadas com fundamento no citado instrumento legal.

5) Normas específicas atinentes à execução contratual como o aumento do percentual dos acréscimos ou supressões, podendo a Administração Pública direta e indireta prever que os contratados sejam obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado de até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato; a previsão de "cláusulas especiais" nos contratos ou nos instrumentos congêneres para aquisição ou fornecimento de vacinas contra a Covid-19, firmados antes ou após o registro ou a autorização de uso emergencial concedida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), desde que representem condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço, como: o eventual pagamento antecipado, inclusive com a possibilidade de perda do valor antecipado; as hipóteses de não penalização da contratada; e outras condições indispensáveis para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço, observado o regramento trazido no artigo 12, §§1º ao 6º.

Trata-se, como visto, de regime excepcional e transitório de contratações públicas que será aplicado aos atos praticados e aos contratos ou instrumentos congêneres firmados até 31 de julho de 2021, independentemente do seu prazo de execução ou de suas prorrogações (artigo 20 da MP).

No entanto, renova-se a indagação lançada no início desse artigo: esse “regime excepcional” poderia ser inserido em um Capítulo da Lei Geral de Licitações, com as devidas adaptações, a fim de estabelecer algumas medidas mínimas que possam agilizar os procedimentos licitatórios em situações emergenciais de natureza grave e prolongada (diminuição de prazos, dispensa de cumprimento de alguns requisitos de habilitação, simplificação do procedimento etc)?

A nosso juízo, há bons motivos para defender que um regime excepcional mínimo esteja previsto no âmbito das normas gerais de licitação e contratação. Rapidamente, citamos dois deles: a situação de emergência pode não ter reflexos de caráter nacional, mas, apenas regional ou local, o que, em tese, poderia afastar o interesse da União em editar medidas provisórias para atender tal situação; na hipótese de previsão de tal regime na Lei Geral de Licitações e Contratos, os Estados e os Municípios poderão adotá-lo, desde logo, para combater a situação de emergência de caráter, nacional, regional ou local, desde que preenchidos os requisitos previstos em lei.



Por Alberto Higa (SP)

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