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O Brexit e o direito administrativo

ANO 2020 NUM 439
André Rodrigues Cyrino (RJ)
Professor Adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor e Mestre em Direito Público pela UERJ. LL.M. pela Yale Law School. Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro


11/02/2020 | 3252 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Há algo que chama a atenção do estudioso do direito administrativo na crise da União Europeia (UE). Refere-se ao discurso de que os britânicos podem prescindir das impressionantes estruturas burocráticas comandadas desde Bruxelas. Após consulta popular, o Reino Unido repeliu as inúmeras entidades administrativas profissionalizadas que, povoadas por milhares de especialistas (em 2016, havia mais de 45 mil agentes), decidem sobre incontáveis aspectos da vida dos europeus, que se veem inaptos ao exercício de maiores controles democráticos. O projeto de integração não parece ter sido capaz de superar essa ideia, e, no último dia 31 de janeiro, consumou-se o Brexit. Nas palavras de Nigel Farage, membro britânico do Parlamento Europeu e líder do Brexit Party: “a cooperação entre nações não depende da criação de uma burocracia excepcionalmente grande e irresponsiva que governa um continente inteiro”.

Existe um paralelo interessante desse contexto de ruptura com o direito administrativo, o qual remonta ao pioneiro livro de Peter Lindseth. Com efeito, é aspecto central no direito administrativo o esforço de compreender a constante expansão de novos aparatos institucionais aos quais se delegam parcelas de autoridade. Tem-se que os organismos políticos não conseguem, sozinhos, corresponder aos anseios e necessidades coletivas. Por exemplo: os poderes eleitos são incapazes de, per se, ordenar atividades econômicas complexas (e.g. serviços de telecomunicações), ou, ainda, fiscalizar os riscos sanitários de medicamentos e alimentos. Por isso, uma vez escolhidos, os representantes do povo concedem partes importantes de suas funções à burocracia (mais ou menos independente). Criam-se agências das mais variadas, as quais, na prática, interferem significativamente no cotidiano das pessoas. Dos serviços de eletricidade e de transporte, passando por normas sobre saúde pública e meio ambiente, a Administração é quase onipresente.

A saída da Grã-Bretanha da UE, dentre outras coisas, reflete a rejeição da autoridade sem voto, a qual se propagou dentro e fora dos Estados europeus. Os britânicos disseram não ao modelo proposto, o que, pode-se dizer, também incorpora um não à expertise como algo bastante para conduzir decisões relevantes. Tal negativa é prova de que é insuficiente ao burocrata apresentar resultados positivos. Não basta, por exemplo, dizer que houve fortalecimento do comércio, ou incremento da qualidade de serviços públicos. É preciso autocrítica, a ser seguida por trabalho de reengenharia do sistema de legitimidade colocado em xeque.

A reflexão cabe também ao direito administrativo. No âmbito interno dos Estados contemporâneos convive-se com as mais diversas autoridades sem voto. Boa parte da vida em sociedade depende de direcionamento de tais organizações, as quais amplamente ordenam, autorizam, fiscalizam e sancionam. O processo é tão intenso que há quem sustente, como Philip Hamburger, que esse modelo é simplesmente incompatível com o Estado de Direito, o que implicaria a própria inconstitucionalidade do direito administrativo.

Discordo dessa perspectiva. O direito administrativo é constitucional. Mais: ele é, justamente, o ramo do direito público que visa a estabelecer a interface entre a demanda por burocracia profissional e a legitimidade democrático-constitucional. Não basta ser funcional; como também não basta ser responsiva. A legitimidade burocrática – missão do direito administrativo – só se constrói a partir desses dois pilares. Ao norte do Canal da Mancha, prevaleceu o discurso de falta de accountability. O direito administrativo precisa estar atento a isso. Ignorar tal contingência o deslegitima, e, em tempos de crise, favorece radicalizações, populismo e ruptura.   



Por André Rodrigues Cyrino (RJ)

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