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Novos paradigmas jurídicos para o Século 21: estratégia, pragmatismo e empiria. Ou: a sobrevivência dos mais aptos.

ANO 2016 NUM 128
Cristiano Carvalho (RS)
Livre-Docente em Direito Tributário pela USP. Pós-Doutor em Direito e Economia pela Berkeley Law, University of California. Advogado.


03/04/2016 | 6239 pessoas já leram esta coluna. | 6 usuário(s) ON-line nesta página

Tanto para os que atuam no mundo acadêmico jurídico, bem para aqueles que militam como operadores do Direito (advogados, procuradores, juízes) está se percebendo uma mudança significativa. O antigo paradigma do Direito de “toga”, pernóstico, que via o mundo do alto de uma torre de marfim firmada por alicerces beletristas está rompido. O problema é que muitos profissionais, sejam juristas ou advogados não parecem ter percebido tal ruptura a tempo e, como em toda mudança brusca, irão sofrer. E talvez, alguns deles, perecer.

A doutrina jurídica tradicional, assim como os currículos das faculdades de Direito e o estilo de prática de muitos advogados ainda reflete essa realidade, que vai ficando cada vez mais como lembrança de outros tempos, aqueles em que a informação era privilegiada, acessível apenas para poucos, onde as bibliotecas de escritórios precisavam conter grossos e caros volumes de jurisprudência. Com a era da Internet e da informação em tempo real, esse mundo ficou para trás.

Na academia, a resistência à mudança é maior. Na prática jurídica, o mercado acaba se impondo, soberano como sempre. Comecemos falando sobre a Academia.

Os cursos de graduação, mestrado e doutorado seguem basicamente o mesmo padrão. Na graduação, o estudante passa por um currículo com ênfase em direito processual e é exposto a um apanhado geral do sistema jurídico. É treinado para se tornar um advogado “guerreiro”, sendo que o êxito é identificado como vitória em um litígio, e, por consequência lógica, a derrota do oponente. Esse racional funciona também para advogados do estado (promotores, procuradores) e para os juízes, que decidem tendo essa mentalidade em sua formação e prática.  Já na pós-graduação, os mestrandos e doutorandos se concentram em uma área específica, com leituras extensas, seminários, produção de artigos, cujo objetivo final é a defesa de uma dissertação ou tese sobre algum tema de sua predileção, invariavelmente com centenas de páginas e inúmeras citações bibliográficas. Cada ano, centenas, até milhares de dissertações e teses são defendidas e muitas delas publicadas. Pergunta-se: alguma contribuição efetiva para o Direito? Ou, indo ainda mais longe: produziu-se Ciência?

Percebe-se que a dogmática jurídica, ainda reinante na Academia, limita-se a basicamente ao terreno da Hermenêutica Jurídica e à Teoria da Norma. É que se pode denominar de “ estruturalismo”, ou seja, estudo do Direito concentrado em suas estruturas, a saber a relação vertical e horizontal das normas, e a interpretação dos textos normativos. O problema, óbvio para quem conhece método científico, é a falta de objetividade (mesmo resultado para todos os operadores) e falta de teste empírico. Em outras palavras, ausência de ciência no Direito.

Por uma influência antiga, que já se percebe em Max Weber e, posteriormente em escritos de Hans Kelsen, o campo de estudo do direito seria limitado à norma jurídica, sendo que o comportamento dos agentes envolvidos (legislador, juízes, cidadãos, i.e, emissores e destinatários dos comandos normativos) pertenceria ao campo da Sociologia ou Política do Direito. O problema dessa visão reducionista, que em muitas situações é própria da Ciência, é que nesse caso ela acaba por esfacelar o real objeto de estudo de uma ciência do direito. Lembrando da clássica definição de Direito, cunhada pelo primeiro juspositivista por excelência, o inglês John Austin (1832), “comandos apoiados por ameaças”, resta claro que o Direito, se quiser ter pretensões cientificas necessita tanto analisar a estrutura desse comando, como os efeitos reais que ele causa em seus destinatários. Trata-se de uma visão “ funcionalista”, tão bem trazida por Norberto Bobbio, em seu clássico “ Da Estrutura à Função”.

A vantagem é que, assim como o método econômico e suas “ preferências reveladas”, o estudo empírico quanto a inobservância ou não dos destinatários em relação aos comandos normativos é objetivamente verificável. Por exemplo, posso medir a eficiência da legislação penal pela quantidade de crimes cometidos, ou seja, quanto mais crimes, menos dissuasão a lei produz. É claro que pode haver diversas causas, e é necessário encontrar a devida correlação entre elas os dados (crimes). Porém, trata-se de um avanço significativo maior em direção a um projeto científico que o atual estado de coisas, pelos quais os juristas se limitam a analisar a constitucionalidade ou legalidade de leis e a significação (semântica) de dispositivos normativos. Através de tal empreendimento, temos argumentos potentes para mover as engrenagens do Direito, seja para provocar entendimentos jurisdicionais, seja para alterar o direito posto, seja para provocar a melhoria na infraestrutura de aplicação das normas jurídicas.
Decorre disso a importância em tornar os cursos de Direito mais pragmáticos, mais voltados à realidade, e, nesse sentido, a interdisciplinaridade passa a ter papel fundamental. Considerando que o Direito afeta toda a ação humana, campos como Economia, Psicologia, Contabilidade, Finanças, dentre outros, fornecem ferramental de grande valia para a investigação e compreensão de problemas a serem solucionados pelos operadores jurídicos. Além disso, a importância de estudo de casos é dramática, uma vez que os institutos, conceitos e formas jurídicas são consolidados na sua aplicação prática, consoante as vicissitudes da vida real. Sai-se das limitações do “law in books” para a dinâmica do “law in action”.

Além disso, deve-se abandonar a separação radical entre lege data e lege ferenda. É importante, por certo, distinguir entre o direito “como ele é” e o direito “como ele deveria ser”, todavia, uma boa análise positiva, i.e., empírica do sistema jurídico não só permite, como muitas vezes impele o jurista a propor alterações no ordenamento.

Passando para a análise da prática jurídica, percebe-se as limitações que os cursos e a doutrina/dogmática/literatura tradicionais causam na formação dos profissionais contemporâneos. Em um mercado global, onde as transações econômicas são complexas, muitas vezes envolvendo múltiplos players e ultrapassando fronteiras, o profissional “ guerreiro”, treinado levando em conta apenas os limites jurisdicionais e territoriais de seu país, vai encontrar sérias dificuldades.

Além disso, a interdisciplinaridade ajuda o advogado, procurador ou juiz a entender melhor o caso. No caso específico da advocacia, o profissional que contar com conhecimento de outras áreas poderá compreender mais eficientemente o negócio de seu cliente e, portanto, prestar um serviço melhor. Em outras palavras, saindo do plano estritamente jurídico (p.ex, analisar a licitude de uma clausula contratual) e conhecendo a operação da empresa que atende, acabará por ampliar o seu próprio “know-how” jurídico, sendo capaz de encontrar novas soluções e caminhos, tornando-se alguém que viabiliza o “como fazer”, em vez de apenas responder se pode ou se não pode fazer.

O advogado deve ser “ guerreiro” em determinadas situações, mas deve dar espaço também ao advogado “ negociador”. Nos Estados Unidos, apenas 5% dos processos acabam chegando a julgamento, sendo os restantes solucionados via acordo entre as partes. Como o sistema judicial impõe custos altos para os litigantes, é mais eficiente chegar a um consenso do que arriscar o resultado em uma decisão, via juiz ou júri. De forma geral, a cultura da Common Law, como certa feita disse o juiz e jurista Richard Posner, é naturalmente mais eficiente do ponto de vista econômico. Do ponto de vista de ganho social, um acordo é intrinsecamente melhor que uma decisão que beneficie apenas um dos litigantes, pois ambas as partes saem razoavelmente satisfeitas, ainda que necessitem abdicar de parcela de suas pretensões. Em Economia, chama-se esse resultado de Pareto Eficiente, ou seja, uma troca em que pelo menos uma das partes resulta em situação melhor que antes, sem que a outra seja prejudicada. 

Ora, se as transações econômicas cada vez mais são globais, com contratos envolvendo várias jurisdições, incluindo cláusulas arbitrais, não seria esperado que nossos operadores jurídicos fossem devidamente treinados na arte da negociação? Vencer a qualquer preço pode acabar saindo caro demais, não apenas para os clientes, mas também para o sistema judicial, dados os custos de oportunidade envolvidos.

Não apenas a negociação é importante, mas também ferramentas de análise custo-benefício e, sobretudo, estudo de estratégia. Novamente o campo da Economia tem muito a oferecer: a Teoria dos Jogos estuda interações estratégicas entre indivíduos racionais, considerando como tais simplesmente a concepção do homo economicus, da auto-maximização de utilidades, ou mais simplesmente, do interesse que todos nós temos em aumentar o nosso bem-estar.

Sendo assim, o modelo da racionalidade econômica considera que os indivíduos agem levando em conta o próprio benefício e, para tanto, reagem a incentivos. Poucas áreas da vida humana geram tantos incentivos, bons ou ruins, como o Direito, principalmente por meio de punições e recompensas (sanções punitivas ou premiais). No caso do comportamento estratégico, o indivíduo avalia, ao agir, como os demais reagirão ao seu comportamento. Do ponto de vista do formulador de políticas públicas, alterar as recompensas (incentivos) do jogo terá influência no comportamento dos agentes. Em síntese, leis que funcionem, que sejam cumpridas.

A fim de exemplificar com caso corrente, de grande repercussão, que é a operação “ Lava-Jato”, cabe descrever como funciona um dos jogos mais clássicos da teoria, o “ dilema do prisioneiro”.
Criado em 1950 pela Rand Corporation, entidade norte-americana sem fins lucrativos, responsável por grande parte da estratégia militar na guerra fria, o dilema ilustra uma interação “não cooperativa”, onde os incentivos mútuos (pay offs) são “pegar carona” nas escolhas do outro jogador. Em outras palavras, do jeito que as recompensas são postas, há incentivo para o oportunismo.

A ilustração mais comum é esta: dois acusados são presos como cúmplices em um crime, sendo mantidos isolados, sem nenhuma possibilidade de se comunicarem. Interrogados separadamente, ao prisioneiro Antônio e à prisioneira Beatriz são oferecidas as seguintes alternativas:

1) se ambos confessarem o crime, serão sentenciados a cinco anos de prisão;
2) se ambos negarem o crime, serão sentenciados a um ano de prisão (porque o promotor só conseguirá provar um crime de menor importância);
3) se um confessar e o outro negar, o acordo com o promotor é que aquele que tiver confessado ficará livre e o que tiver negado receberá dez anos de prisão.

As opções apresentadas a cada um dos “jogadores” são confessar ou negar a autoria do crime.

Vejamos agora a matriz do jogo:



 Na matriz acima, típica forma de ler jogos estáticos, os possíveis resultados aparecem da seguinte maneira (os pay offs de Antonio encontram-se à esquerda, os de Beatriz, à direita):

Antônio precisa decidir se confessa ou nega a autoria do crime. Como se trata de uma situação estratégica, ele escolherá levando em conta como acredita que Beatriz escolheria, dados os pay offs conhecidos.

Portanto, se Beatriz confessar, Antônio precisa decidir qual é a melhor opção para ele. Olhando a matriz, o melhor pay off (menos anos de prisão) é confessar também (cinco anos). Por outro lado, se Beatriz negar, a melhor opção para Antônio continua sendo confessar (zero ano, ou liberdade).

Beatriz, por sua vez, enfrenta as mesmas escolhas. Se Antônio confessa, é melhor confessar (cinco anos) do que negar (dez anos de prisão). Da mesma forma, se Antônio negar, a melhor opção para Beatriz continua sendo confessar (zero ano, ou liberdade).

Note-se que para ambos os jogadores a opção mais racional (portanto maximizadora, dada a possível escolha do outro) é sempre confessar. Diz-se que tal estratégia é dominante, no jargão da teoria dos jogos. O resultado é que ambos acabarão confessando e pegando cinco anos de cadeia cada um (conforme se vê nos pay offs sombreados na matriz).

Tal resultado é denominado “equilíbrio de Nash”, por conta do matemático norte-americano John Forbes Nash que o formalizou em 1951. No dilema do prisioneiro ilustrado acima, o equilíbrio de Nash encontra-se no quadrado superior esquerdo (5,5), cujo resultado é sub-ótimo se comparado ao quadrado inferior direito (1,1). Entretanto, a escolha de cada um dos prisioneiros foi a melhor possível, portanto plenamente racional, levando em conta a escolha provável (segundo o juízo de cada um deles) do outro. Em síntese, tivessem confiança mútua a ponto de cooperarem, cumpririam apenas um ano de prisão, em vez de cinco.
O leitor já deve imaginar que a relação do dilema com a Lava-Jato se dá pela utilização extremamente bem-sucedida do instituto da delação premiada. A delação é a perfeita aplicação do dilema do prisioneiro, considerando que o incentivo dos implicados é delatar, de modo a se beneficiarem à custa da punição de outros.

E o mais interessante é que o timing da delação tem dramática importância, pois quanto mais demorar para fazê-la, menos utilidade ela terá para o Ministério Público, e, portanto, menos concessão de benefícios haverá para o delator. Esse senso de urgência funciona como incentivo para todos os possíveis delatores, sendo a estratégia dominante delatar. Se para o grupo de suspeitos de crimes o resultado é subótimo (melhor seria se confiassem uns nos outros e nada revelassem) para os procuradores federais o instrumento é extremamente eficaz.

De outro lado, o que se percebe são os advogados dos reús perderem sucessivamente, recurso após recurso. Poder-se-ia arriscar a causa para isso: muitos atuam dentro do velho paradigma do advogado guerreiro, cuja estratégia é empregar uma retórica garantista de direitos dos acusados, ao mesmo tempo que buscam protelar o processo, talvez buscando prescrições ou outras formas que impeçam a punibilidade de seus clientes. Seja ou não esta a causa, o fato é que o time da Lava-Jato parece consideravelmente mais preparado, mais moderno e mais eficiente que os advogados dos reús. Os resultados não deixam dúvidas, trata-se, indubitavelmente, da operação anti-corrupção mais bem-sucedida da história brasileira, não só pelo deslinde de toda a teia de crimes, como pelo número de presos, alguns já condenados, além dos recursos financeiros recuperados.

A reflexão que devemos ter é simples. Seja na Academia, seja na prática, a realidade se impõe, e o mercado é implacável. Os cursos de graduação e pós não poderão resistir para sempre, sob pena de verem esvaziadas as suas salas de aula. E, no mundo da advocacia, quem não se adaptar aos novos tempos ficará sem clientes. Trata-se, em suma, de Darwin e sua seleção das espécies aplicada ao mercado jurídico, ou, na expressão de Herbert Spencer, da sobrevivência do mais apto.



Por Cristiano Carvalho (RS)

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