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Os 15 Anos do Estatuto da Cidade

ANO 2016 NUM 101
Daniela Libório (SP)
Professora de Direito Urbanístico e Ambiental da PUC-SP. Mestre e Doutora pela PUC-SP. Especialista em Políticas Ambientais pela Universidade Castilla-La Mancha. Coordenadora do Núcleo de Direito urbanístico da Pós Graduação da PUC-SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU. Advogada.


08/03/2016 | 6545 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

A lei federal nº 10.257/01, autodenominada Estatuto da Cidade, possibilitou, a partir de sua promulgação, um efeito transformador no quesito política urbana brasileira. Com a obrigatoriedade da elaboração de Plano Diretor prevista pela Constituição Federal, artigo 182, § 2º, exigível a parte significativa dos municípios brasileiros, a referida lei delineou dispositivos igualmente inéditos, tais como os contornos dos instrumentos aplicáveis para descumprimento da função social da propriedade, o direito de preempção do Poder Executivo Municipal sobre as propriedades urbanas, a transferência do direito de construir, a nova versão da operação urbana, agora consorciada, entre inúmeros outros exemplos.

Seguiu-se, à sua publicação, uma força tarefa nacional para deflagrar a elaboração dos Planos Diretores municipais, consoante a falta de expertise de nossos municípios em elaborar planos. Foi criado o Ministério das Cidades, o que pôde ser traduzido em uma política pública nacional estratégica inédita para o segmento. Um volume significativo de recursos públicos federais foram dirigidos para a capacitação dos agentes públicos que deveriam se tornar os responsáveis para elaboração e execução dos planos urbanísticos, assim como para a capacitação de um imenso contingente de consultores que foram habilitados e credenciados pelo Ministério das Cidades bem como para a elaboração e distribuição de cartilhas de orientação. O desafio, à época, era vencer o desconhecimento e a falta de experiência  em elaborar planos locais.

Durante a década passada, os Planos Diretores municipais foram elaborados e experimentados. O Estatuto da Cidade, portanto, tinha mostrado seu vigor provocando mudanças não só no mundo jurídico (a cidade e os núcleos urbanos devem ser palco de planejamento democrático prevalecendo sobre interesses privatísticos) como também sob o aspecto social (desenvolvimento de cidadania ativa nos interesses urbanos).

Outro ponto de destaque refere-se ao direito à moradia, inserido em nossa Carta Constitucional no art. 6º pela emenda constitucional 26/2.000, proveniente da assinatura da Carta final do Habitat II “Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos” – 1.996 (Conferência Mundial da ONU para assentamentos humanos que ocorre a cada 20 anos). Dali seguiu-se um número expressivo de ações públicas, houve um aumento exponencial de movimentos sociais pró-moradia além de programas de governo que buscassem um novo equilíbrio na consecução dessa finalidade social constitucional: superar o déficit habitacional do país. Não à toa, o Estatuto da Cidade possui vários instrumentos voltados para regularização fundiária urbana.

Com tantos desdobramentos, natural que houvesse demandas judiciais questionando os novos instrumentos principalmente quanto ao alcance, forma de elaboração e eficácia. Em uma síntese muito apertada, a pouca ou nenhuma participação popular na elaboração de Planos Diretores assim como Planos Diretores iniciados pela Câmara Municipal foram dois tópicos que trouxeram nulidade aos planos municipais, na interpretação dada pelos tribunais no país.

Sedimentada essa fase e já na etapa de revisão dos planos anteriormente elaborados (devem ser revistos a até cada 10 anos), temos um novo desafio a enfrentar: a efetividade dos planos. Não basta elaborá-los, não basta que a participação popular seja contabilizada quantitativamente. Faz-se necessário buscar para sua implantação a atenção aos princípios que lastreiam o direito urbanístico e trazem coerência e dinamismo para a viabilidade de seus dispositivos. Traduzir função social da propriedade em normas gerais e abstratas, concretizando-a em cada projeto solicitado é tarefa árdua e exige, do Poder Público Municipal, investimento em organização e preparo de seus agentes. Equilibrar o conteúdo do Plano Diretor para equacionar uma repartição de benefícios e ônus na cidade trazendo efetividade na melhoria da qualidade de vida em cada região na medida de sua necessidade e interesse demanda envolvimento real com a população de forma que possa ser extraído  o conteúdo mais próximo da vontade cidadã.

Toda cidade é múltipla em sua forma de manifestação, de interesses, de história. Cada lugar tem sua própria forma de traduzir o bem-estar, cuja previsão constitucional consta como objetivo da política urbana no caput do art. 182. A Constituição Federal, ao dispor que a política urbana é de interesse local, nada mais fez que identificar quem seriam os autores da detecção do bem estar coletivo: o próprio munícipe junto aos seus governantes mais próximos. O Plano Diretor tem como meta ser o documento central de ordenação do território municipal, de seu crescimento e desenvolvimento, com respeito às diversas formas de viver de seus habitantes e buscando a plena satisfação dos elementos necessários para uma condição de vida digna.

Por fim, trazemos aqui um alerta sobre o processo de revisão de planos diretores municipais em curso no país. Há perigo de retrocesso na efetividade da lei 10.257/01: a participação popular ficta, contabilizada em números e não em qualidade de participação; dados e diagnósticos traduzidos em inúmeros mapas que definem os direitos da propriedade imóvel urbana em detrimento da técnica descritiva que, se se mostrava tediosamente detalhista trazia, por outro lado, elementos objetivos para o estabelecimento de direitos. Questões de alcance nacional, como o déficit habitacional, universalidade do saneamento e acesso ao transporte público estão muito aquém do planejado. Além disso, pouco se discute sobre a identidade das cidades, seu perfil e seu destino; são definidas as possibilidades edificantes sem caracterizá-las em seu contexto. Cidade sem cara, cidade sem dono.  O resultado de tal prática só será visível após alguns anos de execução do plano, quando tiver havido um denso processo de transformação de cenário urbano.

Nesse cenário, de fundamental importância que haja fiscalização de todas as etapas do planejamento urbano, desde sua elaboração à sua execução almejando que a política urbana esteja associada à melhor prática da gestão pública. Como fiscal, todos nós, cidadãos, profissionais, controladores, fiscais por definição ou por vocação.



Por Daniela Libório (SP)

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