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Por mais realismo no controle da administração pública

ANO 2016 NUM 183
Eduardo Ferreira Jordão (BA)
Professor da FGV Direito Rio e Sócio da Portugal Ribeiro Advogados. Doutor em Direito Público pelas Universidades de Paris (Panthéon-Sorbonne) e de Roma (Sapienza), com pesquisas de pós-doutorado realizadas na Harvard Law School e no MIT Economics. Master of Laws (LL.M) pela London School of Economics and Political Science (LSE). Mestre em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi pesquisador visitante na Yale Law School e em Institutos Max-Planck.


03/06/2016 | 6405 pessoas já leram esta coluna. | 8 usuário(s) ON-line nesta página

Na teoria, tudo funciona muito bem. Para evitar ilegalidades, desvios éticos e mesmo “decisões ruins” dos administradores públicos, chama-se (ou cria-se) um controlador: instituição pública que revisará as decisões iniciais e corrigirá todos os seus problemas.

Este raciocínio informa uma série de distorções do direito administrativo brasileiro. De um lado, orienta o otimismo da doutrina, que saúda inebriada toda intervenção do controlador, toda redução da discricionariedade do administrador. De outro, alimenta o discurso legitimador do próprio controlador, estimulando-o a avançar cada vez mais.

O fato é que controle nem é sempre bom, nem é de graça. Implica riscos e custos. Como outras do nosso direito público, a temática do controle da administração precisa ser encarada com maior realismo.

1 - O controle não é gratuito

Na dimensão mais evidente, o controle, em si, depende do dispêndio de valores públicos relevantes, para fazer rodar a máquina institucional respectiva, seus funcionários e o seu tempo. Mas os custos do controle da administração vão muito além disso. Incluem ainda os ônus gerados ou induzidos pelo controle.

Em primeiro lugar, há os valores incorridos pela administração pública para adequar as suas ações às determinações do controlador. Pense-se nos exemplos de liminares que ordenem o fornecimento de medicamentos específicos ou que determinem melhorias em estabelecimentos públicos. Nesta hipótese, o principal problema é que frequentemente estas imposições se farão sem que o controlador tenha uma visão integral do orçamento público. Esta circunstância é fundamental para a eleição de prioridades a serem atendidas, num mundo (real) em que há escassez de recursos para satisfazer todas as necessidades públicas. No mais, ainda que o controlador tivesse esta visão do todo, é bastante questionável que deva caber a ele, controlador, esta eleição de prioridades para uma alocação ótima dos recursos públicos.

Em segundo lugar, há os custos sociais decorrentes da postura cautelosa adotada pelo administrador, para precaver-se de eventuais contestações. Não é incomum o argumento de que exigências excessivas dos controladores frequentemente desestimulam a ação pública. Nos Estados Unidos, a doutrina denuncia a ossificação administrativa resultante das severas condições impostas pelos controladores (em fenômeno ali denominado analysis paralysis). No Brasil, já é frequente a afirmação de um administrador “assombrado pelo controlador” ou da consagração de um “direito administrativo do inimigo”, a prejudicar que o administrador público ouse adotar soluções menos ortodoxas, mas claramente conducentes à realização do interesse público.

Em terceiro lugar e enfim, há os ônus públicos decorrentes das opções determinadas pelo controlador, muitas vezes em substituição àquelas do administrador. Em especial no caso do controle realizado sobre decisões técnicas, como a das autoridades reguladoras, os riscos econômicos de uma intervenção desinformada são significativos. Alguns países registram casos de crises energéticas geradas por intervenções indevidas de tribunais na área de atuação dos reguladores. No Brasil, o mesmo setor sofreu recentemente com interferências desastradas advindas do próprio Poder Executivo.

A  atenção ao elemento dos custos exige que se adicione pragmatismo à análise do controle da administração pública. Se esta atividade é em si custosa (para o controlador) e gera custos adicionais (para o controlado e para a sociedade), então não é possível justificar a sua implementação indiscriminada e sem reservas.

Disto resultam duas consequências dolorosas para a nossa romântica tradição jurídica.

A primeira é a de que, de uma perspectiva econômica, o direito não pode e não deve colocar como meta a eliminação de toda hipótese de abuso de poder. Este objetivo não é apenas faticamente irrealizável. Ela é inconveniente mesmo a partir de uma perspectiva teórica, voltada para a maximização do bem-estar social. A partir de um certo patamar, a busca adicional de eliminação do abuso de poder é injustificável num cálculo de custos e benefícios. Dito claramente, o nível ótimo de abuso de poder numa sociedade será sempre maior do que zero e o desenho de diversas instituições parte implicitamente deste pressuposto (Cf. Vermeule, “Optimal abuse of power”).

A segunda é a de que se torna necessário discutir em quais circunstâncias, de fato, o controle da administração pública será socialmente positivo.

2 - Controle não é sempre bom

Na visão tradicional, o controle seria sempre socialmente positivo, na medida em que (i) possibilitaria a correção de erros que o administrador público tenha cometido e (ii) serviria a garantir que ele atue dentro dos limites do direito. Afinal, mesmo quando as “soluções corretas” não estivessem diretamente previstas na lei, (iii) princípios de maior ou menor abstração serviriam a apontar para o administrador (e para o controlador) a solução específica que o direito determinaria – e de que ele, licitamente, não poderia escapar.

A prática é toda uma outra coisa.

Para começar, o óbvio: assim como os controladores podem corrigir erros, eles também podem desfazer acertos. O controlador não é infalível. Enxergar apenas as possíveis consequências positivas da sua intervenção é adotar concepção idealizada e irrealista da sua atuação. É natural que esta visão seja popular no direito, já que transfere poder para os seus profissionais. Mas isto não significa que a solução que ela propõe seja socialmente desejável.

No mais, se a intensificação do controle reduz a possibilidade de abusos de poder perpetrados pelo administrador público, por outro lado ela aumenta a possibilidade de abusos cometidos pelo próprio controlador. E, assim como não há razão para crer que apenas o administrador público erra, tampouco há razão para crer que ele possui o monopólio do abuso de poder.

Finalmente, num cenário em que as determinações jurídicas são cada vez mais inexatas e abertas à interpretação, é irreal supor que há respostas corretas para cada questão que é levada ao controlador. Há espaço de liberdade em grande parte das decisões tomadas pelo administrador público. E, se é assim, há um risco de que o controle veicule não a correção de decisões tomadas pela entidade controlada, mas mera substituição de suas escolhas pelas do controlador.

O estado atual de coisas pede uma série de iniciativas renovadoras, dentre as quais este artigo destacará duas.

1) Em primeiro lugar, uma discussão realista sobre controle da administração pública precisa admitir que (i) alguém deve poder “errar por último” e que (ii) é preciso decidir sobre quem deve decidir. Se não há critérios claros para saber qual é a resposta certa, por que a resposta do controlador deveria ser automaticamente superior à do administrador?

Ao invés desta superioridade a priori, do controlador, é recomendável que se promova uma comparação de capacitações das instituições envolvidas (a autoridade administrativa controlada e a entidade de controle), para modular a intensidade do controle a ser aplicável nos casos concretos. A intensidade será tanto maior quanto mais bem posicionado estiver o controlador para solucionar a questão específica que lhe foi trazida. Em alguns casos, será natural que o controlador se limite a verificar a razoabilidade da decisão sob sua análise.

A análise institucional comparativa já é a regra em diversas jurisdições e vem ganhando a atenção também da nossa doutrina. Estes esforços iniciais, no entanto, não podem esconder a necessidade de avançar no debate a propósito dos limites deste enfoque, bem como nas dificuldades de sua operacionalidade concreta (sobre o tema, v. o nosso Controle judicial de uma administração pública complexa, São Paulo, Malheiros, 2016, capítulo 1.2). Além disso, trata-se de enfoque que ainda não tem acolhida entre os controladores – eles que, ao final, terão que tomar este passo de autorrestrição.

2) Em segundo lugar, é preciso que a doutrina do controle abandone o enfoque teórico-dogmático que hoje ainda é prevalecente.

Um primeiro passo evolutivo, no caso específico do controle operado pelos tribunais, poderia ser a acentuação de estudos de análise jurisprudencial. Tratar-se-ia aqui de privilegiar a vida concreta e efetiva do direito administrativo, em detrimento do foco em construções teóricas e dissociadas de casos concretos.

Uma segunda possibilidade seria privilegiar enfoques multidisciplinares, envolvendo nos estudos jurídicos também contribuições de áreas conexas, como a economia, a ciência política e a sociologia. Aproximações multidisciplinares já começam a se destacar no domínio das licitações ou das contratações públicas, mas há espaço para que elas vicejem também na temática do relacionamento institucional entre controladores e controlados.

Terceiro, e enfim, é inescapável investir maior atenção nas pesquisas empíricas, que revelarão aspectos concretos do controle da administração pública no direito brasileiro. Outras jurisdições têm produzido estudos muito interessantes, por exemplo, sobre a instrumentalização dos comandos legislativos por juízes de diferentes ideologias. Mas a importação de suas conclusões para o contexto brasileiro é temerária. Precisaríamos produzir e aplicar pesquisas dentro de nosso contexto, para extrair informações que nos informariam sobre a nossa realidade, circunstância essencial para pensarmos no passo seguinte de adaptar o nosso direito.



Por Eduardo Ferreira Jordão (BA)

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