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Imunidade das instituições de educação em xeque: uma crítica à decisão do STF no RE 862.852/ES

ANO 2017 NUM 327
Eduardo Pannunzio (SP)
Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP - Universidade de São Paulo (2012), Mestre (LL.M.) em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Essex, Reino Unido (2002) e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP.


14/02/2017 | 9945 pessoas já leram esta coluna. | 5 usuário(s) ON-line nesta página

1. Introdução

Desde a Constituição de 1946, o Brasil assegura imunidade a impostos às instituições de educação sem fins lucrativos – prerrogativa que, atualmente, está inscrita no art. 150, VI, “c”, do texto constitucional.

Nem a Constituição nem a legislação que regula a imunidade (Código Tributário Nacional, art. 14, e lei n. 9.532/1997, art. 12) cuidaram de delimitar, porém, o conceito de “instituição de educação”. Abrange ele apenas as instituições dedicadas ao ensino curricular (conceito restrito) ou, também, aquelas que contribuam para a educação de outras formas, com atividades correlatas, complementares ou suplementares à educação formal (conceito amplo)?

Diante do silêncio da lei, essa questão acabou sendo resolvida pelos nossos tribunais, que construíram ao longo do tempo uma significativa jurisprudência a respeito. Nela, prevalecem decisões que encampam o conceito amplo de instituição de educação, reconhecendo-se a imunidade de organizações tão diversas quanto centros de formação e treinamento, escolas de idiomas, fundações de apoio universitárias, institutos de pesquisa ou sociedades científicas – nenhuma delas voltada ao ensino curricular propriamente dito.

No entanto, no final de 2015, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu decisão (RE 862.852/ES – Ag. Reg., sob relatoria do ministro Dias Toffoli) segundo a qual a imunidade seria restrita às instituições de ensino, devidamente credenciadas pelas autoridades educacionais. A princípio, a decisão – que transitou em julgado em 1/3/2016 – tem seus efeitos limitados ao caso específico, que envolvia o Instituto Euvaldo Lodi (IEL). Seria o prenúncio de uma reviravolta jurisprudencial?

Queremos crer que não. Isso porque a decisão, embora respeitável, destoa da sistemática constitucional, da literatura jurídica especializada e da jurisprudência do próprio STF. Além disso, caso viesse a ser disseminada, prejudicaria um leque de organizações extremamente relevantes para a educação brasileira. É o que tentaremos demonstrar neste artigo.

2. O alcance do termo “educação” na Constituição

Quando a Constituição quis tratar apenas das atividades de magistério formal, valeu-se do termo “ensino” ou adjetivou o substantivo “educação” (“educação escolar”, por exemplo). Isso fica evidente já a partir da própria seção dedicada pela Constituição à educação (arts. 205-214): quando se refere, mais amplamente, às atividades voltadas ao “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205) emprega o termo “educação”, pura e simplesmente; no entanto, quando se volta especificamente às atividades na escola ou espaços congêneres (arts. 206 e 208), emprega o termo “ensino”, “educação escolar”, “educação básica”, “educação infantil”.

Para a Constituição, portanto, “educação” e “ensino” não são termos intercambiáveis entre si. O primeiro é gênero do qual o segundo é espécie – uma das mais relevantes, sem sombra de dúvidas, mas não a única. Tudo o quanto contribua para o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, para valermo-nos da redação do art. 205, pode e deve ser considerado educação.

Da mesma forma, quando buscou tratar apenas das organizações envolvidas nas atividades de educação formal, a Constituição referiu-se às instituições “de ensino”, como ocorre no inciso III do art. 206, que versa sobre os princípios do “ensino”, ou no § 1º do art. 211, que trata da colaboração entre os “sistemas de ensino” dos diversos entes federativos. Já quando se refere a um conjunto mais amplo de atividades, como as “de pesquisa, de extensão e de estímulo e fomento à inovação”, menciona as instituições “de educação” (art. 213, § 2º). Isso não é, aparentemente, mera casualidade.

Para além desse exercício semântico, é preciso ter em conta que a imunidade prevista no art. 150, VI, “c”, da Constituição busca favorecer as condições para a realização de dois direitos fundamentais: a liberdade de associação (art. 5º, XVII) e, sobretudo, o direito à educação (art. 6º). É possível afirmar, portanto, que a imunidade em tela integra o âmbito de proteção do direito fundamental à educação, constituído por todas as “ações estatais que fomentem a realização desse direito”, na lição de Virgílio Afonso da Silva (Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições, eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 77). Mais: como se trata de um direito fundamental, tudo “que tenha alguma característica que, isoladamente considerada, faça parte do ‘âmbito temático’” dessa prerrogativa deve ser considerado como abrangido pelo âmbito de proteção (ibid., p. 322).

A imunidade das instituições de educação não admite, portanto, interpretação restritiva. Pelo contrário, o fato de estar atrelada ao direito à educação impõe que se lhe empreste o sentido mais amplo possível.

Tudo milita a favor da conclusão segundo a qual, ao mencionar as “instituições de educação” como titulares da imunidade a impostos, a Constituição empregou o termo em seu conceito amplo, a abranger quaisquer instituições que desenvolvam atividades correlatas, complementares ou suplementares à educação formal.

3. O conceito de instituição de educação na literatura jurídica

O entendimento que acaba de ser exposto está longe de ser inédito na ciência jurídica brasileira. Aliomar Baleeiro, jurista brasileiro que chegou à cadeira de Presidente do STF, ao tratar da imunidade em questão ainda sob a égide da Constituição de 1946, afirmou que instituição de educação “não significa apenas a de caráter estritamente didático” mas, diversamente, “toda aquela que aproveita à cultura em geral, como o laboratório, centro de pesquisa, o museu, o ‘atelier’ de pintura ou escultura, o ginásio de desportos, as academias de letras, artes e ciências.” “O importante”, prosseguiu ele, “é que seja realmente ‘instituição’, acima e fora de espírito de lucro, e não simples ‘empresa’ econômica, sob o rótulo educacional ou de assistência social” (Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 314-315).

É com base justamente nessa leitura que Francisco de Assis Alves demonstra que as chamadas “fundações de apoio” – organizações privadas destinadas a apoiar projetos de ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento institucional etc. das instituições públicas de ensino superior – merecem ser reconhecidas como instituições de educação, contempladas com a imunidade a impostos (Fundações, organizações sociais, agências executivas, organizações da sociedade civil de interesse público e demais modalidades de prestação de serviços públicos. São Paulo: LTr, 2000, p. 70).

Lamentavelmente, porém, há pouca literatura produzida a respeito do conceito de “instituição de educação” para fins de imunidade, muito embora, como assinalado acima, essa prerrogativa remonte à Constituição de 1946. No entanto, a doutrina mais especializada já se ocupou de abordá-lo — e o fez, no mais das vezes, em linha com a conclusão defendida nesta opinião legal.

É o caso, por exemplo, de Leandro Marins de Souza:

A educação, para fins de enquadramento da instituição no conceito de imunidade previsto no artigo 150, VI, “c”, da Constituição Federal, deve ser considerada de forma ampla, em sua plena acepção.

[...]

Como instituição de educação, portanto, deve ser considerada toda aquela que volte suas atividades à promoção dos valores que engloba o conceito pleno de educação, nos termos aqui expostos. Não há, em nossa Constituição, qualquer dispositivo limitador deste conceito; ao contrário, o espírito constitucional propugna por uma acepção ampla de educação, a permitir o enquadramento de inúmeras categorias de instituições no albergue imunizante.

[...]

Desde as instituições particulares de ensino fundamental, ensino médio ou ensino superior, passando pelas instituições de ensino profissional, de difusão da cultura e do esporte, de educação ambiental, museus, teatros, entre outras, todas podem ser abarcadas pelo instituto da imunidade tributária aos impostos destinada às instituições de educação, previsto no artigo 150, VI, “c” da Constituição Federal. [Tributação do terceiro setor no Brasil. São Paulo: Dialética, 2004, p. 163-164, destaques acrescidos]

Confira-se, ainda, Maria Nazaré Lins Barbosa:

[...] entende-se que a imunidade assegurada pela Constituição às instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, tem em vista um amplo escopo de fins sociais. Parece-me, pois, que a Constituição inclui no âmbito da promoção da educação não apenas o ensino formal curricular, mas um amplo leque de atividades, a serem desenvolvidas com a colaboração da sociedade, que visam ao desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.

Logo, não se pode restringir a expressão “instituições de educação”, constante do artigo 145 [sic; leia-se 150], inciso VI, c, da Constituição federal, à “instituições de ensino formal”, ou que promovam a educação strictu sensu – por não ser esse o sentido oferecido pelo próprio texto constitucional.

[...]

Entendo desse modo que as instituições privadas sem fins lucrativos, dedicadas à promoção da cultura, à formação para a cidadania, ao ambientalismo – para dar alguns exemplos –, são alcançadas pela imunidade a impostos estabelecida no artigo 150, inciso VI, c, da Constituição Federal, posto que tais finalidade se destinam à promoção da educação. [As “instituições de educação” e a imunidade a impostos. In: SZAZI, Eduardo (org.). Terceiro setor: temas polêmicos. N. 1. São Paulo: Peirópolis, 2004, p. 109-126, destaques acrescidos]

4. Instituição de educação na legislação infraconstitucional

É certo que o legislador poderia melhor precisar o conceito de “instituição de educação”, detalhando seu campo de atuação – desde que, evidentemente, não contrariasse a disciplina constitucional da matéria. Intento desse naipe dependeria, a nosso ver, de lei complementar, quando menos porque se adentraria no campo das “finalidades essenciais” dessas instituições e, possivelmente, no “objeto material” da imunidade, na linha do entendimento vigente do STF sobre o tema (ADI 1.802-MC). Inexiste, porém, lei complementar com esse teor.

Ainda que se admita que lei ordinária possa traçar esse conceito, a legislação hoje existente apenas reforça o entendimento aqui exposto. Confira-se, a respeito, o conceito de educação contemplado pela conhecida LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei n. 9.394/1996):

Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

A toda vista, o conceito de educação da LDB é ainda mais amplo do que aquele do art. 205 da Constituição. No entanto, qualquer intento de ir além disso e buscar na lei 9.394/1996 uma conceituação expressa de “instituição de educação” é fadado ao fracasso, por uma razão muito simples: a LDB limita-se a disciplinar a “educação escolar”, e não toda a educação, conforme expressamente estabelecido no § 1º de seu art. 1º.  Coerentemente, ela apenas trata das “instituições de ensino” (arts. 19-20), espécie do gênero mais amplo das “instituições de educação”.

Algum intérprete mais apressado poderia continuar essa busca na legislação infralegal (decretos, portarias, instruções normativas etc.). No entanto, mesmo os que admitem que lei ordinária possa criar requisitos para o exercício da imunidade constitucional não chegam ao ponto de admitir que isso possa ser feito, legitimamente, por atos normativos daquela espécie. O próprio STF censura esse tipo de prática, como revela trecho de acórdão que, embora trate da imunidade às contribuições à seguridade social (art. 195, § 7º), e não da imunidade a impostos, é inteiramente pertinente para as considerações em curso:

[...] a garantia constitucional da imunidade pertinente à contribuição para a seguridade social só pode validamente sofrer limitações normativas, quando definidas estas em sede legal, como requisitos necessários ao gozo da especial prerrogativa de caráter jurídico-financeiro em questão. [STF, 1ª Turma, RMS 22.192-9, rel. min. Celso de Mello, decisão de 28/11/1995, destaques acrescidos]

Não se desconhece, porém, que a Secretaria da Receita Federal emitiu, em 1998, Instrução Normativa (n. 113) com a pretensão de dispor sobre “as obrigações de natureza tributária das instituições de educação”, regulamentando os arts. 12 a 14 da lei n. 9.532/1997.  Nela, determinou que “[c]onsidera-se imune a instituição de educação que preste os serviços, referidos no artigo anterior” – quais sejam, os “serviços de ensino pré-escolar, fundamental, médio e superior” (arts. 1º e 2º).

Pois bem. A única interpretação que assegura alguma sobrevida a essa Instrução Normativa é aquela segundo a qual o ato regulamentou a imunidade especificamente – e tão somente – para as instituições de ensino, não se aplicando às demais instituições de educação. Caso contrário, ou seja, caso se entenda que a Instrução Normativa define, de modo geral, o conceito de instituição de educação para fins da imunidade a impostos, ela seria, a um só tempo, ilegal (pois, à guisa de regulamentar a lei n. 9.532/1997, criou restrições não constantes da própria lei) e inconstitucional (pois ofenderia a reserva de lei prevista nos arts. 146, II, e 150, VI, “c”, da Constituição).

Em realidade, situação relativamente análoga a essa já teve oportunidade de ser enfrentada pelo próprio STF, há não muito tempo (2006). No caso, o Distrito Federal argumentava que cabia ao Poder Executivo a definição concreta dos critérios a serem observados para que uma instituição pudesse ser considerada “educacional” e, assim, exercesse a prerrogativa da imunidade. Inconformado com a exigência, o Conselho Cultural Thomas Jefferson – uma instituição voltada a promover o intercâmbio cultural entre Brasil e Estados Unidos que, embora ofereça ensino da língua inglesa, não desenvolve atividades de ensino infantil, básico ou superior – questionou a prática. Derrotado na instância inferior, o Distrito Federal recorreu ao STF. Pelo voto da Min. Ellen Gracie, a 2ª Turma da Corte negou provimento ao recurso. Observe-se trecho do voto vencedor que é de especial relevância para o tema discutido neste artigo:

Esse entendimento [que o Legislador teria deixado para o Poder Executivo regulamentar a expressão constitucional “instituições de educação”], entretanto, contraria a jurisprudência consolidada desta Corte no sentido de que, por se tratar de limitação constitucional ao poder de tributar, a demarcação do objeto material da imunidade das instituições de educação é matéria afeita à lei complementar. Sobre o tema: ADI 1.802-MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 13.02.2004.

Não compete, portanto, ao Poder Executivo traçar critérios a fim de definir quais entidades estão abrangidas pelo conceito de “entidade educacional” constante na alínea c do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal. [STF, 2ª Turma, RE 354.988-AgR, rel. Min. Ellen Gracie, decisão de 21/3/2006, destaques acrescidos]

Não é lícito ao Executivo e a nenhum de seus órgãos ou entidades – aí incluída, naturalmente, a Secretaria da Receita Federal – pretender definir, autonomamente, o conceito de “instituição de educação” para fins da imunidade a impostos. É o que se encontra estampado na decisão.

Mas não só. Note-se que a decisão deixa claro que esse conceito integra o “objeto material” da imunidade, não se reduzindo a mero requisito de constituição ou funcionamento que possa ser regulado por lei ordinária. Dessa forma, ainda que o STF não venha a rever o posicionamento adotado por ocasião do julgamento da ADI 1.802-MC, o conceito somente poderá ser regulado por lei complementar.

5. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Acima, já tivemos a oportunidade de ressaltar decisão de 2006 na qual o STF reconheceu a imunidade de instituição de educação em sentido amplo (Conselho Cultural Thomas Jefferson).

Em realidade, a circunstância de a instituição dedicar-se à educação por meio de atividades outras que não a educação formal ou escolar não constitui, na jurisprudência tradicional da Corte, entrave à imunidade a impostos consagrada no art. 150, VI, “c”, da Constituição. Esse aspecto não chega, nem mesmo, a ser problematizado. A título ilustrativo, confiram-se as seguintes decisões: RE 183.216-9/RJ – Ag. Reg. – 2ª Turma (1998): Sociedade Brasileira de Cultura Inglesa; AI 481.586-6/MG – Ag. Reg. – 2ª Turma (2005): Fundação Arthur Bernardes (Funarbe); RE 192.899-9/MG – Ag. Reg. – 1ª Turma (2006): Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep); AI 713.981/SP – Decisão monocrática do ministro Menezes Direito (2008): Fundação de Apoio Institucional ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FAI Ufscar; AI 688.808/SP – Decisão monocrática do ministro Marco Aurélio (2011): Instituto Eldorado; RE 543.413/DF – Ag. Reg. – 1ª Turma (2013): Conselho Cultural Thomas Jefferson; AI 748.917/SP – Decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes (2013): Fundação Richard Hugh Fisk; RE 801.394/RS – Decisão monocrática do ministro Roberto Barroso (2014): Fundação Luiz Englert; ARE 906.131/RJ – Decisão monocrática do ministro Roberto Barroso (2015): Fundação Universitária José Bonifácio (FUJB).

É preciso destacar, inclusive, que em dois desses casos um dos fundamentos explícitos do recurso era, justamente, a circunstância de as instituições não desenvolverem atividades de ensino. Isso ocorreu no AI 481.586-6/MG, em que o Estado de Minas Gerais alegou que o “texto constitucional outorga a imunidade sobre impostos apenas às instituições de ensino e não às fundações ligadas a estas instituições”; e no RE 543.413/DF, no qual o Distrito Federal teria invocado “contrariedade ao art. 150, VI, ‘c’, da Constituição Federal, sob o argumento [de que] a entidade ora recorrida [Conselho Cultural Thomas Jefferson] não se enquadra como entidade educacional de assistência social, pois inexiste registro como instituição de educação no órgão estatal competente”. Em nenhum deles, contudo, as Turmas sensibilizaram-se com a argumentação.

6. Crítica à decisão do STF no RE 862.852/ES

Em 24 de novembro de 2015, porém, a 2ª Turma do STF surpreendeu ao proferir decisão no RE 862.852/ES – Ag. Reg., segundo a qual a imunidade seria restrita às instituições de ensino, devidamente autorizadas a funcionar. Essa interpretação já havia sido adiantada pelo relator do processo, ministro Dias Toffoli, em duas decisões monocráticas proferidas anteriormente (no RE 797.325/RS e no próprio RE 862.852/ES).

O voto condutor está fundado em dois principais argumentos: (1) é da “essência” de uma instituição de educação a observância não apenas dos princípios do art. 205 da Constituição, mas também das condições previstas no art. 209, segundo orientação que teria sido firmada no julgamento da ADI 3.330/DF, em 3 de maio de 2012; e (2) “se o texto constitucional, na parte que trata da educação, estabelece condições para o exercício do ensino, não há como reconhecer a caracterização de uma instituição educacional sem o cumprimento das normas gerais de educação nacional e sem a autorização e a avaliação de qualidade pelo Poder Público”, conforme já teria concluído a Turma em 3 de abril de 2012, ao decidir o RE 378.666/DF – Ag. Reg., relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski.

Ambos argumentos, a nosso ver, são questionáveis e passam ao largo da diferenciação que a Constituição faz entre os termos “educação” e “ensino”, como procuramos demonstrar acima.

Em relação ao primeiro deles, é preciso atentar que as condições impostas pelo texto constitucional em seu art. 209 (cumprimento das normas gerais da educação nacional, e autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público) aplicam-se apenas às instituições de “ensino”, como indica o próprio caput do dispositivo, e não às que se dedicam à educação de outras formas. A referência à ADI 3.330/DF tampouco é feliz: a uma, porque ela versava sobre a lei que instituiu o Prouni – Programa Universidade para Todos, naturalmente restrito às instituições de ensino; e, a duas, porque já a ementa do acórdão, relatado pelo ministro Ayres Britto, cuidou de esclarecer que a educação formal ou escolar é uma das formas de educação, não a única.

No que se refere ao segundo argumento, a leitura que o ministro Dias Toffoli faz do acórdão no RE 378.666/DF – Ag. Reg. é igualmente passível de crítica. Naquela oportunidade, a Turma estabeleceu que “é inviável o gozo da imunidade prevista no art. 150, VI, c, da Lei Maior por instituições privadas de ensino cujo funcionamento não foi autorizado pelo Poder Público” (destaques acrescidos). Em nenhum momento, porém, afirmou que apenas instituições de ensino fazem jus ao benefício. O que ali se verifica é que, em se tratando de instituição de ensino, constitui pressuposto para o exercício da imunidade que esteja ela devidamente autorizada a funcionar”.

Tanto é assim que, mesmo após essa decisão de 2012, a circunstância de uma instituição não se dedicar ao ensino formal não foi tomada pela Corte como óbice ao exercício da imunidade, como exemplificam os já mencionados RE 543.413/DF – Ag. Reg. (2013), AI 748.917/SP (2013), RE 801.394/RS (2014) ou ARE 906.131/RJ (2015).

A constatação acima fica ainda mais evidente quando se notam os dois precedentes mencionados no RE 378.666/DF (Ag. Reg: o RMS 22.111-2/DF e MS 22.412-6/GO). Com efeito, ambos tratavam, apenas, da impossibilidade de instituições de ensino (Universidade Braz Cubas e Instituto Educacional Anapolino, mantenedor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Anápolis) funcionarem sem a devida autorização por parte do Poder Público. Nenhuma dessas decisões sugere que toda instituição de educação precise se dedicar ao ensino e, menos ainda, que uma instituição que promove a educação por outras formas precise de autorização para funcionar ou desfrutar da imunidade a impostos que a Constituição lhe assegura.

A decisão da 2ª Turma do STF do dia 24 de novembro de 2015, portanto, parece-nos claramente equivocada.

Não bastasse isso, note-se que a Turma não foi alertada para o fato de que a resolução proposta para o caso pelo ministro Dias Toffoli desviava-se da jurisprudência prevalecente na Corte. O IEL aparentemente não chamou atenção a esse aspecto em seu recurso, e tampouco o relator cuidou de fazê-lo. A decisão foi adotada, portanto, sem maiores discussões entre os (apenas) três ministros que participaram do julgamento (Celso de Mello e Carmen Lúcia, além do próprio Toffoli).

Nesse contexto, parece-nos que a recente decisão da 2ª Turma constitui um mero acorde dissonante em relação à jurisprudência dominante do STF acerca da imunidade das instituições de educação, não podendo ser tomada, ao menos por ora, como paradigmática de um novo entendimento institucional da Corte.

7. Conclusão

Procuramos evidenciar que, na prática jurídica brasileira, o termo “instituições de educação”, para fins da imunidade a impostos, denota um conceito amplo que envolve qualquer instituição sem fins lucrativos cujas atividades contribuam para o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, compreendendo tanto instituições de ensino quanto instituições que desenvolvam atividades correlatas, complementares ou suplementares à educação formal.

Nesse quadro, a decisão da 2ª Turma do STF no RE 862.852/ES – Ag. Reg., além de assentar-se em fundamentos pouco sólidos, deve ser vista mais como um ponto fora da curva jurisprudencial do que emblemática de um novo posicionamento institucional da Corte. De qualquer modo, é importante uma vigília atenta sobre os próximos passos do STF, a fim de conferir se essa avaliação irá efetivamente se confirmar.

Há um valioso conjunto de organizações no Brasil que, embora não atuem diretamente no ensino, contribuem decisivamente para a educação por meio da capacitação de professores, desenvolvimento de novas metodologias, produção de conteúdos e materiais didáticos, acompanhamento e qualificação de políticas públicas educacionais, pesquisa científica e uma infinidade de outras atividades tão relevantes quanto aquelas realizadas em sala de aula. A Constituição optou por estimulá-las, desonerando-as do pagamento de impostos, no pressuposto de que essa é uma causa em torno do qual a mobilização da sociedade civil é algo saudável e absolutamente necessário. Que nossos tribunais saibam prestigiar essa acertada escolha.



Por Eduardo Pannunzio (SP)

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