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Fundos Patrimoniais

ANO 2016 NUM 259
Eduardo Szazi (PR)
Doutor em Direito pela Universiteit Leiden (Países Baixos). Professor de Direito do Terceiro Setor. Advogado.


20/09/2016 | 4903 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

A sustentabilidade econômica é, hoje, um dos grandes desafios das organizações da sociedade civil, que, cotidianamente, deparam-se com a extenuante tarefa de ajustar amplos programas sociais a limitadas receitas, quase sempre oriundas de doações privadas e parcerias com o poder público. Para muitas, o sonho da independência baseia-se na constituição de um fundo patrimonial próprio capaz de, por si só, gerar os recursos necessários para as atividades da organização, minimizando a pressão financeira sobre os administradores e tornando os recursos externos uma alavanca de crescimento para novos programas e frentes de trabalho. Todavia, não sabem como alcança-lo e, quando o tentam, enfrentam algumas dificuldades conceituais que, regra geral, acabam por lançar a organização em algumas controvérsias jurídicas.

Pretendemos com este breve estudo, contribuir com algumas reflexões sobre os cuidados que os dirigentes de uma organização deverão adotar para a adequada formação e gestão de um fundo patrimonial. Nossa avaliação partirá da identificação da melhor forma jurídica que a entidade deverá adotar para viabilizar a constituição de tal fundo, seguindo-se uma sumária descrição do regime fiscal aplicável aos bens que o compõe e às receitas dele geradas e encerrando com uma abordagem do regime de incentivos fiscais para sua criação, comparando-o com o modelo norte-americano.

Forma jurídica

Fundos têm, em nosso sistema legal, diferentes definições. No âmbito do Direito Público, a Lei 4.320/1964, define como Fundos Especiais “o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”. Para a CVM, fundos são modalidades de investimento coletivo ou “comunhões de recursos constituídas sob a forma de condomínios, destinados à aplicação em ativos financeiros”, regidos pelas regras da Instrução CVM 555/2014 e sujeitos a registro naquele órgão. Para o Direito do Trabalho, o FGTS, um fundo, é uma conta vinculada aberta em nome de trabalhador contratado sob o regime da CLT, impenhorável, como previsto na Lei 8.036/1990. Para as pessoas em geral, fundos são recursos financeiros, guardados para finalidades específicas ou como prevenção para eventualidades.

Não há, contudo, lei que defina Fundos Patrimoniais. De certa forma, eles são um pouco de tudo o que já apontamos. Mas podem ser mais, se considerarmos as peculiaridades do setor sem fins lucrativos.

Sabe-se que, para criar uma associação, não precisamos de fundos, mas deles precisamos para criar uma fundação. Embora o Código Civil não defina objetivamente o que é uma fundação, a doutrina jurídica entende fundações como “patrimônios personificados destinados a um propósito específico”. São patrimônio porque compostos por bens de qualquer natureza; personificados porque constituem-se como pessoas jurídicas; e com propósito específico porque criados para atender a uma das causas listadas no parágrafo único do artigo 66 do Código Civil.

Portanto, contando as fundações, na sua gênese, com a afetação de um patrimônio a uma finalidade, as mesmas prestam-se à perfeição à constituição de um fundo patrimonial. Não obstante tal vocação, a realidade brasileira demonstra que pouquíssimas fundações são constituídas com dotação de bens suficientes para assegurar a execução de seus propósitos. Seria tal fato oriundo de obstáculos legais?

O Código Civil prevê que, não dispondo o instituidor de maneira diversa, e sendo os bens doados insuficientes para a constituição da fundação, os mesmos serão incorporados a outra fundação que se proponha a fim igual ou semelhante (art 63). Se, no futuro, verificar-se ilícita, impossível ou inútil a mantença da fundação, seu patrimônio será incorporado em outras fundações que se proponham a fins iguais ou semelhantes (art 69), se de outra forma não dispuser seus atos constitutivos ou seu estatuto social.

Em nosso entender, sábio foi o legislador ao não definir o valor mínimo para a constituição de uma fundação, pois, assim o fazendo, criou o primeiro incentivo para a constituição de um fundo patrimonial: a simples possibilidade de doar, ainda que um pequeno valor, sabendo-se que o mesmo será somado às dotações de outras pessoas para a mesma causa.

Por outro lado, a legislação não restringiu a natureza do patrimônio a ser destinado, apenas exigindo que o mesmo esteja livre, ou seja, que o doador não esteja impedido de doá-lo por restrições sucessórias, sonegando direitos de seus herdeiros, ou que tais bens sejam objeto de litígios, controvérsias ou ônus. Dessa forma, identifica-se o segundo incentivo legal: o fundo patrimonial poderá ser constituído por bens de qualquer natureza, situados no país ou no exterior.

Finalmente, à parte desses dois incentivos calcados na liberdade de doação, o Código Civil trouxe um terceiro incentivo, calcado no controle de gestão, qual seja, o velamento das fundações pelo Ministério Público. Como é cediço, o parquet exerce a relevante função de proteção dos interesses individuais e sociais indisponíveis. Também, como se abstrai do artigo 69 do Código Civil, já referido, o patrimônio da fundação, em última análise, não lhe pertence, mas sim ao seu propósito, pois sendo impossível a mantença da fundação, o patrimônio é transferido a outra fundação com propósito assemelhado, para que lá continue a lhe dar suporte. Assim, tendo as fundações finalidades sociais e não sendo, seus administradores, proprietários de seu patrimônio, importante se torna o controle da gestão por um órgão externo: o Ministério Público.

Tais condições, então, tornam a fundação a forma jurídica mais adequada para a constituição de um fundo patrimonial, se comparada com a associação, pois esta não conta com controle externo nem tampouco oferece aos instituidores de seu fundo patrimonial, a segurança de que tal patrimônio será sempre afetado à causa para o qual foi amealhado. Isto porque qualquer limitação que seja imposta ao propósito social ou ao destino do patrimônio decorre apenas de disposição estatutária, que poderá, a juízo da assembléia e a qualquer tempo, ser modificada.

É de se salientar que mesmo que a entidade tenha obtido algum reconhecimento governamental, como a declaração de utilidade pública ou o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social, que impõem algumas restrições à destinação do patrimônio, as mesmas somente permanecerão enquanto a entidade detiver tais títulos. Dessa forma, bastará a renúncia, um ato unilateral, para que a entidade veja-se livre dessas amarras legais. Mesmo a qualificação como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público instituída pela Lei 9790/1999 não é capaz de inteiramente circunscrever o destino do patrimônio social de uma associação, pois a renúncia ao título afastará a obrigatoriedade, salvo na hipótese de aquisição de patrimônio com recursos públicos, quando o mesmo deverá ser transferido para outra entidade também qualificada. Entretanto, como os entes governamentais determinam contratualmente a aplicação dos recursos públicos na atividade finalista, com pouco ou nenhum investimento em compra de bens, na prática, não existirá fundo patrimonial de OSCIP constituído com recursos públicos.

A legitimidade da acumulação patrimonial em fundações

As fundações cumprem um papel social importante que é a alocação, com vocação perpétua, de recursos para causas de interesse social, remontando suas origens aos primórdios do Cristianismo (piae causae).  Dessa forma, o que se pretende com a criação de uma fundação não é, simplesmente, a atenção à causa de interesse social eleita, mas sim a sua atenção de forma permanente, o que leva, necessariamente, à caracterização do fundo patrimonial como condição intrínseca à natureza da fundação e ao alcance de seus objetivos.

Relembrando SILVIO RODRIGUES (Direito Civil, Parte Geral, v 1, São Paulo: Max Limonad, 1962), fundação é uma organização que gira em torno de um patrimônio (...) Trata-se, portanto, de uma universalidade de bens, universitas bonorum, a que a lei atribui personalidade jurídica. Ora, tal asserção deve, naturalmente, provocar alguma perplexidade, porque os bens, via de regra, são objetos de direito, e não sujeitos de direito. Se o Direito tem por escopo proteger os interesses humanos, é de um certo modo ilógico imaginar-se a atribuição de personalidade a um acervo de bens. Todavia, a objeção pode ser contornada se considerarmos que, embora a fundação consista num patrimônio, a sua instituição almeja a satisfação de algum interesse humano”.

O reconhecimento do patrimônio fundacional como sujeito de direito lhe assegura as condições necessárias para seu crescimento e florescimento, sendo natural e esperado que, tal como verificado nas demais pessoas jurídicas, venha a fortalecer-se ao longo dos anos, assegurando, dessa forma, a perpetuidade do propósito de seus instituidores. Se a qualquer outro sujeito de direito é dado o direito de amealhar patrimônio, à fundação o mesmo direito não pode ser negado, não só por equidade, como também, e principalmente, porque tal patrimônio é a sua própria personificação e não há comando legal que exija que alguém negue a sua própria natureza.

Portanto, entendemos legítimo que as fundações busquem constituir e reforçar seu fundo patrimonial ao longo de sua existência, posto que este é a base para o alcance de seus objetivos institucionais – um patrimônio dedicado a uma causa - estando tal prática em estrita conformidade com a legislação, notadamente o artigo 14 II do Código Tributário Nacional, conforme adiante abordaremos.  

Tratamento fiscal do fundo patrimonial

O artigo 150 VI "c" da Constituição Federal limita o poder de tributar dos entes governamentais, vedando-lhes a instituição de impostos sobre o patrimônio, renda e serviços das instituições de educação e assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.

As três esferas de poder têm, com sua notória voracidade tributária, paulatinamente buscado restringir a fruição dessa garantia constitucional, impondo progressivas restrições, ora por exigir reconhecimento prévio ou certo título ou tempo de existência, ora por restringir a natureza da renda e patrimônio beneficiado ou o tipo de imposto considerado.

Contudo, é necessário sempre manter em mente que, de acordo com o artigo 146 II da Constituição, as limitações constitucionais ao poder de tributar são obrigatoriamente reguladas por lei complementar, no caso, o Código Tributário Nacional, o qual, a seu turno, fixa apenas três requisitos para que as entidades gozem da proteção constitucional: (i) não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio e renda, a qualquer título; (ii) aplicarem integralmente, no país, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais; e (iii) manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

Dessa forma, é inconstitucional qualquer imposição de condição adicional para que uma entidade de educação e assistência social goze de imunidade de impostos sobre os seus bens e suas rendas, pois o comando do artigo 150, VI "c" configura norma de eficácia contida e aplicabilidade imediata, tal como sustentado por JOSÉ AFONSO DA SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo. 9a. Ed., São Paulo: Malheiros, 1993), dispensando, inclusive, qualquer forma de reconhecimento prévio.

Os exemplos são vários. A segregação da natureza da renda, por exemplo, foi tentada pela Lei 9.532/1997, que em seu artigo 12, parágrafo primeiro, excluía da imunidade as rendas de aplicações financeiras, impondo distinção onde a Constituição não o fez. A controvérsia foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1802, havendo sido deferida liminar para suspender tal cobrança, beneficiando a todas as entidades.

A natureza do patrimônio imobiliário também é, reiteradamente, questionada pelas autoridades municipais que insistem em tributar com o IPTU os imóveis que constituem o fundo patrimonial para geração de renda por locação. Mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal veio em socorro das entidades para declarar seu entendimento de que todos os imóveis são abrangidos pela imunidade (Súmula Vinculante 52).

Outro foco de controvérsia sobre o tratamento fiscal dos fundos patrimoniais é saber se a imunidade em apreço abrange todos os impostos ou é restrita àqueles que são classificados, no CTN, como impostos sobre o patrimônio. O STF, em diversos casos, entendeu que a imunidade alcança o ICMS incidente nas importações de bens para compor o patrimônio de uma entidade (AI 785.459, RE 203.755, RE 311.626, AI 669.257 e AI 476.664). Já para as compras em âmbito interno, a jurisprudência é oscilante, fato que justificou o reconhecimento de repercussão geral no RE 608.872, anda não julgado.

Para as entidades que não se dedicam à educação e à assistência social, não há imunidade e a desoneração fiscal se dá por meio de isenções.

Entidades sem fins lucrativos são, regra geral, isentas de CSSL e Imposto de Renda (Lei 9.532/1997), embora essa isenção não alcance o IRRF sobre os rendimentos de aplicações financeiras, que, como apontado, foi afastado pelo STF apenas para as imunes. Também, salvo esparsas exceções, não gozam de isenções de impostos sobre o patrimônio, de forma que pagam ITR, IPTU, IPVA e ICMS sobre os bens que adquirirem, pagando, inclusive, ITBI sobre imóveis que comprarem e ITCMD sobre doações que receberem.

Disso resulta que, no longo prazo, a formação do fundo patrimonial de uma entidade de educação e assistência social tende a ser muito mais exitosa do que, por exemplo, o de uma entidade ambiental ou cultural, pois essas últimas pagariam impostos na inclusão e na mantença de bens no fundo patrimonial ao passo que aquelas, gozando de imunidade a vários impostos, teriam maior rentabilidade.

O leitor, a esta altura, deverá estar se perguntando: Se a legislação não impõe restrições ao valor e natureza dos bens que comporão o fundo patrimonial e se a Constituição assegura um tratamento fiscal extremamente benéfico para as entidades que detém tais fundos, por que eles são tão poucos e de pouca representatividade econômica no Terceiro Setor?

A resposta, em meu entender, está no pouco incentivo à doação para tais fundos, o que avaliaremos a seguir.

Tratamento fiscal das doações aos fundos patrimoniais

Quando pensamos em fundos patrimoniais, sempre nos vêm à mente os bilionários endowments de fundações, universidades e museus norte-americanos e perguntamos por que tal nível de compromisso social do cidadão norte-americano não existe em nosso país. Para que possamos compreender esta diferença, é preciso que estudemos o regime heranças em ambos os países.

A lei brasileira prevê que a posse e o domínio dos bens do falecido são transferidos aos seus herdeiros (CC, art 1784), isentos de imposto de renda (RIR, art 39, XV), se não houver testamento. Caso este exista, não poderá dispor de mais da metade dos bens do falecido, de modo a sempre assegurar os direitos de seus sucessores (CC, art 1846). O único imposto incidente será o ITCMD, com alíquota média de 4%. Assim, a transmissão de riqueza de uma geração para a outra não implica em necessária redistribuição de renda, via pagamento de impostos representativos.

O mesmo não ocorre nos Estados Unidos, onde a transmissão do patrimônio do falecido para os herdeiros deve ser disciplinada em testamento, no qual o testador poderá dispor livremente de seus bens. Também, no momento de transmissão, incidirá o imposto federal sobre heranças (estate tax) cuja alíquota máxima é de 40%. Contudo, como alternativa a este elevado imposto, a legislação americana autoriza que dele sejam abatidas, integralmente, as doações efetuadas a entidades sem fins lucrativos (ADLER, Betsy. The rules of the road: A guide to the law of charities in the United States. Washington: Council of Foundations, 1999). Dessa forma, a conjugação de um elevado tributo sobre as heranças com um extensivo incentivo fiscal para doações foi o responsável pelo florescimento dos fundos patrimoniais que hoje suportam universidades, centros de pesquisa, museus e fundações. Como, no Brasil, nenhum estado brasileiro concede qualquer incentivo fiscal sobre o imposto sobre heranças (ITCMD), o país perde uma excelente oportunidade de incentivo a um modelo re-distributivo de renda a cada sucessão hereditária.

A parte desta oportunidade perdida, o incentivo à doação para entidades sem fins lucrativos é, em nosso país, restrito apenas às pessoas jurídicas que apuram o imposto de renda pelo complexo regime de lucro real (cerca de 7%, segundo dados da Receita Federal), limitado, também, a 2% de seu lucro operacional bruto (Lei 9.249/95, art 13 par 2o. III).

Dessa forma, a inexpressividade dos incentivos fiscais a doações para entidades sem fins lucrativos impede o desenvolvimento de uma cultura em favor da constituição de fundos patrimoniais o que, como corolário, leva à situação de termos fundações sem fundos (uma contradictio in terminis) e entidades sem fins lucrativos atuando como se empresas fossem, com sérios riscos para sua identidade e status fiscal.

Conclusão

Entendemos ser extremamente importante para o desenvolvimento da sociedade civil brasileira o fortalecimento dos fundos patrimoniais dedicados a causas de interesse público, sendo as fundações os melhores instrumentos para tal, não só pela sua vocação perpétua como também pelo controle do Ministério Público.  Todavia, a constituição de tais fundos patrimoniais para o custeio de programas de organizações da sociedade civil, no Brasil, carece de uma adequada política de incentivos fiscais à doação e, também, de uma tomada de consciência dos governantes, que, reiteradamente, tentam solapar os direitos constitucionais das entidades que, agindo onde o governo não age, buscam melhorar as condições de vida da população brasileira. Mesmo assim, os fundos patrimoniais apresentam-se como a melhor solução para a perpetuidade das organizações e deverão, sempre, requerer especial atenção dos administradores de tais entidades.



Por Eduardo Szazi (PR)

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