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Justiceiros Carismáticos de Plantão no Poder Legislativo

ANO 2016 NUM 55
Emerson Gabardo (PR)
Professor Titular de Direito Administrativo da PUC/PR. Professor Adjunto de Direito Administrativo da UFPR. Pós-doutor em Direito Público Comparado pela Fordham University School of Law. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo


15/01/2016 | 5465 pessoas já leram esta coluna. | 5 usuário(s) ON-line nesta página

Max Weber sustentou a existência três tipos ideais de legitimidade da dominação: a realizada pela tradição (reiteração de costumes e padrões de comportamento), a pelo carisma (que conclama autoridade por admiração) e a pela legalidade (há uma crença na validade da competência legal, mediante regras racionais de ingresso no poder).

Segundo a teorização weberiana, a dominação legal é aquela correta quanto à forma, por meio da qual são cumpridos os procedimentos de acesso ao cargo por competência (seja um cargo de chefe ou de subordinado). Obedece-se à pessoa em razão de uma regra e não em razão de atributos pessoais. O ideal de um agente profissional é proceder sem a influência de motivos pessoais ou sentimentais. A dominação tradicional é a de caráter comunitário no sentido em que há um senhor que delibera com base no seu sentimento de equidade a respeito de seus súditos. Já a dominação carismática, também comunitária, implica a existência de um líder e um séquito.

O Poder Legislativo brasileiro têm se mostrado uma instituição cuja legitimidade é fruto do amálgama entre os três tipos ideais - uma bricolagem, para usar um termo mais afeto à precarização da legitimidade institucional atualmente vivenciada.

A vida no parlamento brasileiro tornou-se parcialmente uma “vida de corte”, na qual os sujeitos vivem na e da sedução. É uma vida que enfatiza uma paradoxal aparência de honra, muitas vezes em contraposição com o valor real do sujeito, mas que o impede, por exemplo, de exercer explicitamente o negotium (coisa típica dos burgueses).

Mas ao contrário do modelo aristocrático original, aos atuais detentores das prerrogativas típicas do cargo que ostentam, não lhes é vedado, nem simbolicamente, o negotium. Para além de lhes ser permitido pleitear cargos e pensões, ou então as festas e os prazeres (tais como um shopping center) lhes é mantido o direito à política, embora com certa leviandade em relação à coisa pública. Afinal, vivem imersos em demagogia (sendo a principal delas a fundamentação falseada das decisões, que em um número considerável de vezes são tomadas por motivos diversos dos formalmente declarados).

Os discursos são sempre racionais e objetivos. E, no mais das vezes, o procedimento é respeitado (veja-se o caso das constantes “manobras” do Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, para fazer aprovar as decisões de seu interesse sem expressamente desrespeitar o regimento da Câmara).

Formalmente legal, simbolicamente carismática e faticamente tradicional, a legitimidade do Parlamento brasileiro é reflexo de uma sociedade eclética a partir de um agente condutor: a mídia institucional (seja aquela que pretensamente presta um serviço público, seja aquela que é tomada como exploradora de atividade econômica em sentido estrito). Uma sociedade cujas demandas nem sempre favorecem a existência de um “sentimento constitucional” como algo decorrente do exercício democrático.

Ao contrário, às vezes é a própria população que age contra tal exercício, seja em sua atuação direta, mediante uma “autotutela de interesses”, seja mediante o apoio (ou não) aos seus representantes eleitos, por motivações nem sempre legítimas do ponto de vista ético-constitucional, embora certamente sustentadas pelo princípio democrático. Em que pese a doutrina não dar muita atenção à questão da incompatibilidade entre vontade popular e sentimento constitucional, procurando sempre compatibilizar os elementos, o fato é que há uma tendência prática de tensão entre democracia e direitos fundamentais no Brasil.

Recentemente nosso país passou a viver um momento de retorno de demandas sociais e manifestações de interesse que estavam ocultas (ou foram ocultadas) durante os vinte anos do período pós-ditatorial. O que esteve em voga nesse período foi a ampliação da justiça social, da participação popular, da alteridade, do solidarismo, da defesa do meio-ambiente, e da repulsa ao preconceito como ideias-força típicas de um imaginário constituído pela doutrina que se desenvolveu no entorno da Constituição de 1988. Trata-se de uma ciência do Direito valorizadora dos direitos fundamentais e que foi, aos poucos, recepcionada pela atuação dos operadores do Direito – uma teoria não só de liberdade e igualdade, mas de fraternidade.

Ocorre que tal evolução foi facilitada pelo advento de importantes conquistas em termos econômicos e institucionais. Após uma fase obscura pré-constitucional, as décadas de 1990 e de 2000 se demonstraram importantes no processo de amadurecimento do Brasil como um Estado em vias de desenvolvimento.

A segunda década deste século, contudo, parece denotar um novo momento. Um momento em que três fatores parecem conduzir a uma situação de desestabilização institucional e social: a forte presença da internet na vida quotidiana da população de classe alta e média (e, particularmente, a presença do Facebook), o recuo do país em termos de estabilidade econômica e o advento da corrupção como fenômeno midiático. Fatores estes que se inserem em um contexto de falta de senso republicano e de espírito de comunidade na sociedade, ou seja, a carência de construção de um espaço verdadeiramente público no Brasil. Uma situação que resulta na manutenção de um forte espectro patrimonialista e individualista nas relações sociais. Espectro este, por sua vez, reforçado pelo atraso no processo de desenvolvimento econômico e social (em termos de educação, saúde, saneamento e transporte).

Estes elementos têm propiciado diferentes consequências na sociedade atual. Por um lado o povo brasileiro é fortemente coeso em torno de um ideal nacionalista (no Brasil os sujeitos pertencem primeiro ao seu país, depois à sua cidade, e só por último ao seu Estado). Por outro lado há uma fragmentação oculta e que pela primeira vez na história está entrando em ebulição. As minorias estão emergindo e com elas seus conflitos de interesses subjetivistas – para o bem ou para o mal.

A classe média, que havia conquistado nos últimos vinte anos um lugar ao sol junto com os mais abastados, principalmente por intermédio do acesso às viagens ao exterior, vem perdendo seu status e com isso torna-se raivosa e inconformada. Os religiosos evangélicos, que antes faziam parte de uma pequena parcela da sociedade, viram sua comunidade crescer e assumir o poder – e com isso passaram a tentar impor sua pauta sectária às instituições. Os integrantes da comunidade LGBT, cada vez mais organizados e mais aceitos socialmente, viram na ascensão das esquerdas uma oportunidade para caminhar de um sistema de tolerância para um sistema jurídico de alteridade. Os fascistas, não se conformando com a ampliação significativa das garantias constitucionais aos direitos fundamentais, perderam o constrangimento e o medo, e colocaram suas pautas na rua (em verdade, sobretudo na internet) – o que fez com que eles vissem que não estavam sozinhos. E estes somente são alguns exemplos do destravamento da luta pelos interesses, após mais de duas décadas de certo consenso social a respeito das pautas do país.

O fenômeno midiático da corrupção, por sua vez, fomentou a única grande unanimidade nacional, fazendo com que o povo, de forma radical, passasse a bater palmas para um ambiente de caça às bruxas e realização de interesses sectários por meio dos seus representantes eleitos ou de outros agentes do Estado.

Depois de um período de forte expansão formal e material, os direitos humanos passam a assumir uma representação negativa no imaginário popular. Seja no Poder Legislativo, seja no Judiciário, seja por intermédio da polícia federal, seja pela atuação do Ministério Público, o importante é “fazer justiça”. E é aqui que se coloca o neoconstitucionalismo pós-positivista. Os agentes públicos não somente sentem-se legitimados materialmente (pela vontade popular), mas juridicamente (devido à abertura principiológica e axiológica do sistema). Afinal, são como sábios ungidos pela crença popular em sua liderança. O seu senso de justiça passa a ser o critério de validade do Direito e de interpretação constitucional.

No Legislativo, sem dúvida, o problema se agrava. Nesta seara, particularmente ilustrativos são os casos da PEC 182/2007 (Reforma Política) e da PEC 171/1993 (Redução da Maioridade Penal). As discussões retrógradas a respeito do estatuto da família, combinadas com a timidez do Código Florestal em impor avanços na seara da sustentabilidade ambiental, são casos profícuos desta realidade sustentada pelo amálgama entre a bancada evangélica e a bancada ruralista que também redundou na ampliação desmesurada do poder de seus líderes. O dilema do impeachment da Presidenta e a situação surreal de termos na presidência da Câmara um “delinquente” (utilizando-se do adjetivo da ele conferido pelo Procurador-geral da República) são outros exemplos desalentadores.

Cada vez mais a ideia de que os fins justificam os meios faz parte da mentalidade nacional. E os justiceiros carismáticos de plantão estão a postos para fazer valer a “vontade do povo”; e por que não? sua vingança – um desejo de revanche contra os políticos, contra os maus gestores, contra os bandidos, contra os pecadores, contra os pobres do bolsa-família, contra os defensores dos direitos humanos, contra os agentes de movimentos sociais; enfim contra o outro – “aquele no qual eu não me reconheço”.

Neste ambiente, a justiça com base em uma moral particularista e sectária passa a destruir qualquer perspectiva de alteridade, quando não, de puro bom senso ou razoabilidade. A tolerância em seu sentido tradicional, que é um requisito necessário, porém insuficiente, para um adequado regime republicano, torna-se um artigo de luxo – quando não um elemento paradoxal de exclusão.

No Brasil está ocorrendo uma tendência de arraigamento prático da tensão teórica entre constitucionalismo e democracia. Robert Alexy destaca que uma visão realista da vida certamente reconhecerá que direitos humanos e democracia estão em constante oposição. Os direitos fundamentais são democráticos e ao mesmo tempo não são. Afinal, muitas vezes eles privam o legislador da tomada de uma série de decisões que representariam a maioria da população ou a algumas maiorias eventuais no parlamento. Segundo o autor, o que os cidadãos consideram importante depende dos seus ideais. E, por sua vez, os seus ideais dependem de sua representação do bem (suas convicções e suas concepções de mundo). Por este motivo, em certas situações os direitos fundamentais configuram não um fruto da democracia, mas sim um espaço de resistência contra ela.

Há questões importantes sobre as quais o legislador simplesmente não pode decidir, sob pena de a decisão pública ser francamente inadmissível (ao menos do ponto de vista de certa ordem constitucional). Aliás, o princípio majoritário, seja o expresso na deliberação representativa, seja na plebiscitaria, deve ser entendido como algo sem valor substancial, prestando-se apenas a ser uma tecnologia disponível para a resolução de algumas questões, mas não todas. A mensagem que passa quando um Presidente de uma Casa Legislativa assevera que o mote de sua gestão será: “deixar que a maioria seja exercida, e não a minoria”, ao contrário do que uma visão formalista poderia sugerir, é uma “perversão da democracia”.

Infelizmente sempre teremos parlamentares de plantão ansiosos para atender às demandas mais subreptícias e egoístas que o ser humano é capaz de expressar. É por isso que o Direito deve ser um instrumento de identidade por um lado, mas de alteridade, por outro. Ele deve ser um importante meio de formação de uma “identidade coletiva”, apesar das intolerâncias decorrentes das identidades étnicas, nacionais, religiosas, estamentais e linguísticas. Mais que isso, deve ser altruísta no sentido de que não pode se curvar à vontade popular quando se trata de restrição aos direitos fundamentais ou prevalência de argumentos irracionais na condução da esfera pública.

 Quando o povo não quer ver o outro, o Direito deve obrigá-lo ao reconhecimento. Os impulsos de diferenciação e exclusão devem ser contidos por um universalismo democrático, porém plural e republicano. É o que se espera de um Direito constitucional nos termos de nossa Constituição, que é um documento fortemente garantidor de um Estado social – em que pese alguns desavisados ainda insistam em dizer o contrário.



Por Emerson Gabardo (PR)

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