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Uma jurisprudência de crise para os contratos administrativos

ANO 2020 NUM 445
Estevan Pietro (PR)
Mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Especialização em Direito Tributário pelo IBET-SP e especializando em Direito da Regulação Pública e Concorrência pelo CEDIPRE (Coimbra). Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Advogado no Escritório XVBM Advogados


02/04/2020 | 3620 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

O Covid-19 foi capaz de levar a OMS a declarar Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional e, no Brasil, medida similar foi replicada por meio da Portaria nº 188 de 03.2.2020/GM/MS. Nestes tempos incertos, convém uma breve reflexão sobre o Estado.

Ao redor do atual Estado orbitam características que não o definem, mas que são imprescindíveis ao todo. O Estado contemporâneo é de Direito, Democrático, Garantidor, Regulador e Contratante. Cada qual com sua finalidade e obrigados a conviverem em harmonia.

O Estado Contratante horizontalizou - em alguma medida - as relações entre a Administração e os particulares, atribuindo ao contrato o status de principal ferramenta para operacionalizar a distribuição de funções aos agentes econômicos que performam em conjunto. Com efeito, pelo tempo de exceção que vivemos, as adversidades no âmbito da execução do contrato administrativo voltam à tona com maior intensidade. Um dos principais casos é a mutabilidade contratual advinda da imprevisão.

No Brasil, ironicamente, a teoria da imprevisão passou a ter certa resistência dentro dos contratos atribuídos a dinâmica da Lei de Licitações - local de sua previsão legal. A razão seria por esta cuidar da elaboração de contratos com prazos exíguos - até mesmo por imposição orçamentária. Apesar de aplicação subsidiária (art. 124, L. 8666/93), a imprevisão acabou sendo migrada para os contratos administrativos de longo prazo: Concessões e PPP’s.

A despeito da duração, existe zona de congruência entre os contratos administrativos: a preservação do equilíbrio econômico-financeiro (art. 37, XXI CFRB). Percebe-se que a proteção constitucional denota a essencialidade de sua preservação e a sensibilidade ligada a complexidade das variáveis que a equalizam. Afinal, são “...custos (oportunidades e administrativos), riscos, investimentos, amortizações e lucros...”( MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das Concessões de Serviço Público, São Paulo: Ed. Malheiros, 2010. pp. 389-390)

Nestes tempos, fica claro que o reequilíbrio será necessário, até mesmo aos contratos de curto prazo. Com efeito, isto implicará o enfrentamento de alguns mitos. O primeiro seria o do conto da suspensão dos 120 dias: poderá existir ressarcimento por parte da Administração mesmo que as suspensões sejam menores do que o limite e, caso seja superior, pela forma mitigada que o estado de calamidade foi declarado – afirmação feita no âmbito federal em razão do Decreto Legislativo n. 6/2020 que reconheceu apenas para o caso da LRF (Lei Complementar n. 101/2000) – a exceção também não atua como motivação plausível a rescisão contratual (art. 78, XIV, L. 8.666/93). Ou seja, comprovado prejuízo ao particular contratado, a Administração deverá ressarcir os danos causados pelas suspensões não pensadas quando da elaboração do contrato.

Outro mito seria a impossibilidade do adimplemento contratual. Utiliza-se a teoria da imprevisão em face da existência de caso fortuito ou força maior para a rescisão sem atribuição de culpa ou indenização (art. 78, XVII, L. 8.666/93 (cf. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 18 ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 1431). Tais circunstâncias não ocorrem isoladamente. Estes tendem seguir acompanhados de atos que se enquadram como fatos da Administração ou do príncipe.  Portanto, no caso de incumprimento parcial ou total do contrato, implicará em indenizações.

O caso fortuito ou força maior não pode ser analisado isoladamente e sem o sopesamento de seus efeitos. Por exemplo, em alguns contratos - geralmente de longo prazo - existe a divisão dos efeitos do caso fortuito ou força maior entre os pactuantes, o quem nem sempre é a melhor divisão. Nos contratos de longo prazo, existem períodos de investimentos em curto espaço de tempo para receber ao longo do contrato.

Dependendo do momento, excluir o evento será prejudicial.

Mas há certeza no período incerto: em qualquer hipótese, a cessação do contrato não é a saída. A Administração terá que buscar novos parceiros ou assumir funções que não possui a imediata expertise necessária; os particulares, futuros credores, serão ressarcidos a destempo.

As dinâmicas dos contratos administrativos precisam em alguma medida serem intercambiadas. Os de longo prazo, feitos a partir de incertezas, apresentam uma alocação de risco em forma mais líquida. Nos contratos administrativos de curto prazo, a alocação é previa e fixa. No caso, em caso fortuito ou força maior, mesmo que não devidamente dimensionados, autoriza-se por certo tempo - desde que a impossibilidade do cumprimento seja temporária - a prorrogação dos contratos (art. 57,§1°, Lei 8.666/93) ou a sua alteração, condicionada a pactuação entre as partes (art. 65, II, d). Independentemente da duração do contrato, percebe-se que a contraposição alea ordinária e extraordinária é insuficiente para resolução das questões complexas.

Repactuações e reajustamentos serão sempre viáveis. Mas, é preciso pensar em outras opções como a flexibilização ou postergações das obrigações, redução de alíquotas ou isenções. As resoluções aos problemas merecem formas cada vez mais conjuntas e personalíssimas. Não basta importar exemplos para enfrentar novos dilemas. Inexiste a garantia de que o resultado satisfatório será replicado pela simples transcrição.

Em igual medida, não se pode criar solução favorável as partes que ao final seja surpreendida por interpretação contrária pelos Órgãos de Contas - os gestores e fiscais dos contratos são testemunhas da insegurança vivida na prática e que, infelizmente, será potencializada no futuro próximo. A solução precisa ser feita por negociação entre os envolvidos e com participação, quando necessário, das agências reguladoras e, sempre, Tribunais de Contas e Judiciário.

Os tempos conclamam período de parcimônia integrativa. Os vetores de solidariedade precisam ser recíprocos. Talvez seja o caso de repensar e fomentar a efetivação de jurisprudência factível aos problemas que já estão se levantando no horizonte. Daí a ideia da construção de uma jurisprudência da crise mais ampla do que o modelo Português, mas com intuito similar: construir uma jurisprudência que possa ser “... um “processo negocial” entre a interpretação normativa da Constituição e a necessidade de ceder perante as “exigências das circunstâncias”( PINHEIRO, Alexandre Sousa. A jurisprudência da crise: Tribunal Constitucional português (2011-2013). Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, Ano 7, no. 1, jan./jun. 2014. p. 170. Disponível em <https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/observatorio/article/viewFile/961/641>. Acesso em 23.3.2020.).

No âmbito da interpretação da aplicação e execução dos contratos administrativos, esse entendimento precisa ir além do Judiciário e ser levado aos Tribunais de Contas. O contexto não pode ser descartado. De qualquer sorte, algumas ferramentas irão auxiliar a interpretação dos casos: a LINDB positivou a necessidade de observância ao contexto e a empatia. Talvez este seja o começo.



Por Estevan Pietro (PR)

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