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Um Réquiem para as Prerrogativas Contratuais da Administração Pública

ANO 2016 NUM 312
Fernando Vernalha Guimarães (PR)
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Professor de Direito Administrativo de diversas Instituições. Advogado.


12/12/2016 | 4597 pessoas já leram esta coluna. | 5 usuário(s) ON-line nesta página

Em 1990, Maria João Estorninho publicava a obra Réquiem pelo Contrato Administrativo, onde buscava não apenas minimizar as diferenças entre os contratos administrativos e os contratos privados da Administração, mas afirmar a origem casuística da teoria do contrato administrativo. Ela teria surgido, em países europeus com dualidade de jurisdição como França, Espanha e Portugal, não como fruto de um evolutivo desenvolvimento dogmático, mas com um propósito bem mais pragmático: desonerar os assoberbados tribunais civis, que até então se viam encarregados de julgar as causas que envolviam quaisquer contratos da Administração Pública. A noção de contrato administrativo nascia assim como uma espécie de signo para distinguir uma classe de contratos que passariam a ser endereçados ao aos tribunais administrativos, desocupando os tribunais civis. Questionava-se ali a própria artificialidade da racionalidade fundante da noção de contrato administrativo e, portanto, das tais prerrogativas administrativas, que sempre foram a pedra de toque para a sua caracterização.

Passados mais de 25 anos, ainda convivemos no Brasil com um ambiente contratual público marcado por muitas prerrogativas. O regime jurídico dos contratos administrativos garante às Administrações o poder (e não apenas o direito) de penalizar o contratado, de alterar o contrato, rescindi-lo, anulá-lo e até descumpri-lo pelo prazo de 90 dias, sem que o contratado possa suspender suas obrigações (há uma regra vigente – completamente esdrúxula, na minha visão - que impede o contratado de suspender a execução do contrato quando os seus pagamentos sofrerem atraso de até 90 dias). Grande parte dessas prerrogativas já constava do Decreto-lei 2.300 de 1986 (artigos 48, 49, 55 etc) e foi incorporada na Lei 8.666 de 1993. De lá para cá, embora tenham surgido leis importantes vocacionadas a atualizar o modelo de licitações, pouquíssimas inovações foram introduzidas no regime dos contratos administrativos. Isso levou juristas do porte de Marçal Justen Filho a advertir a obsolescência do regime de contratos administrativos, esquecido que foi pelo legislador nas últimas duas décadas.

Fato é que chegamos até aqui com um regime de contratos administrativos que nada se harmoniza com aquilo que se espera de uma Administração eficiente. O regime especial de prerrogativas contratuais tem sido apontado historicamente como a causa fundamental não apenas de muitas ineficiências na contratação administrativa, mas também como causa de corrupção.

Não é novidade que toda a insegurança percebida pelo mercado em relação a essas prerrogativas é em alguma medida precificada nas propostas que são ofertadas nas licitações. Um regime dotado de muitas prerrogativas – e, portanto, de muita insegurança ao contratante privado – dá origem a altos custos de transação. É mais caro contratar com a Administração Pública também em função do risco de condutas oportunistas (da Administração) que podem derivar da existência de prerrogativas administrativas.

Ademais disso, a possibilidade de exercitar tais prerrogativas pode dar ensejo a comportamentos oportunistas das Administrações, alcançando práticas de corrupção. Sempre que o administrador detiver o poder de decidir discricionariamente sobre aspecto relevante da execução do contrato, subjugando a vontade do contratado, nasce o risco de que essa competência seja utilizada para fins indevidos: ora para adotar condutas oportunistas (constrangendo indiretamente o contratado a aceitar determinada solução que lhe seja desfavorável – note-se que, na prática das contratações, a mera ineficácia do regime de cobrança de crédito público, o sistema de precatórios, e a morosidade da justiça já são fatores que favorecem condutas oportunistas da Administração – por exemplo: ou o contratado aceita o conteúdo de certo termo aditivo e renuncia a créditos que lhe são devidos, ou terá de se submeter a um longo e ineficaz processo para a realização de seu direito); ora para praticar atos de corrupção, ameaçando o contratado a ser penalizado com vistas a obter sua adesão ao conluio.

Todas essas prerrogativas são muito prejudiciais ao funcionamento dos contratos. São causa de muita ineficiência na contratação pública. E não se diga que elas seriam imprescindíveis para proteger o interesse coletivo contra o risco de comportamentos oportunistas do contratado privado. Costuma-se argumentar que se o gestor do contrato tiver de adotar a via da negociação para implementar no contrato providência relevante ao interesse coletivo, estará exposto ao risco de condutas oportunistas do contratado, comprometendo também a eficácia destas providências.

No entanto, a prática das contratações administrativas tem desmentido esse argumento. É perceptível que a existência de prerrogativas não apenas tem sido ineficaz para inibir comportamentos oportunistas do contratado privado, como tem ampliado o risco de comportamentos oportunistas do lado das Administrações. Vários são os exemplos disso. Lembre-se o fenômeno do populismo tarifário, que desgraçadamente vem corroendo o ambiente de segurança jurídica tão necessário para a atração de investimento privado aos programas de longo prazo, como concessões e PPPs. Ou ainda o uso excessivo de rescisões e de penalizações administrativas originadas da recusa do contratado em renunciar direitos num cenário de modificação do objeto ou do prazo contratual. Situações desta natureza têm sido cada vez mais recorrentes no mundo dos contratos públicos, revelando abusos por parte das Administrações e agravando a crise de confiança nesse mercado.

O ponto é que há outras formas mais eficientes e simétricas de tutelar o interesse da Administração. Contratos bem elaborados, com um nível avançado de alocação de riscos e de responsabilidades, e com previsão de instâncias mais eficazes para solução de litígios e controvérsias, podem funcionar muito melhor para esse fim do que um regime marcado pela reserva de prerrogativas às Administrações. Não se trata de sustentar que as prerrogativas administrativas significam, no atual estágio de maturidade das instituições jurídicas, restrição a certos direitos fundamentais, desafiando valores que são prezados nas relações contratuais. Embora fosse plenamente possível advogar o caráter conflituoso dessas prerrogativas com direitos fundamentais e constitucionais, a questão a que se chama a atenção neste texto é outra: prerrogativas contratuais simplesmente não funcionam bem para tutelar o interesse administrativo. O enfoque que me interessa aqui é eminentemente prático e econômico: contratos bem desenhados tendem a ser muito mais eficazes para esse fim do que o uso de prerrogativas, responsáveis pelo incremento dos custos transacionais na contratação administrativa.

Chegou a hora, enfim, de encararmos com mais realismo as ineficiências do nosso sistema de contratação. A tramitação de projetos legislativos voltados à atualização do regime de licitações e contratos (como o PLS 559/2013) nos dá uma oportunidade histórica para o aprimoramento desse regime. Dependemos para isso da capacidade do legislador em diagnosticar as patologias e a obsolescência do regime de contratos públicos e de sua coragem para a fazer as atualizações importantes. Do contrário, estaremos condenados a mais um longo ciclo de contratos ineficientes.



Por Fernando Vernalha Guimarães (PR)

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