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A peneira, o sol e o Estado Democrático de Direito

ANO 2016 NUM 110
Flávio Henrique Unes Pereira (MG)
Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela UFMG. Coordenador e professor do curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo do IDP/DF. Presidente do Instituto de Direito Administrativo do DF. Advogado.


16/03/2016 | 5445 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

O Direito Administrativo e o exercício da função administrativa devem refletir as características do “pano de fundo” no qual todos estão inseridos, sob pena de violar diretamente a Constituição de 1988 que afirma o paradigma do Estado Democrático de Direito. O estudo do Direito a partir dos Paradigmas de Estado merece, portanto, nossa atenção.

O conceito de paradigma vem da filosofia da ciência de Thomas Khun, para quem paradigmas são “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 8ª e. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 13.). A percepção das pré-compreensões e das visões de mundo, alcançada por meio de uma noção paradigmática, é indispensável para tornar real decisões jurídicas coerentes. Em uma breve retrospectiva, pode-se compreender entre os paradigmas modernos, o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Democrático de Direito.

Marco do paradigma do Estado Liberal, a Revolução Francesa (1789) é inspirada pelo destaque à burguesia, mediante a extinção de privilégios da nobreza e do clero. Sustenta-se a neutralidade do Estado em relação ao capital e aos indivíduos, ambos livres para o desenvolvimento de suas potencialidades, enquanto o Direito, orientado pelos mesmos signos, estrutura-se como núcleo formal burguês de proteção da individualidade (SIMÕES PIRES, Maria Coeli. Direito Adquirido e Ordem Pública: Segurança Jurídica e Transformação Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 32.).

Regras gerais e abstratas passam a constituir a essencialidade do sistema normativo, em contraposição a “casuística” do paradigma pré-moderno. A repulsa a esse modelo é expressada pela configuração do Direito Público, o qual tem como foco o não retorno ao absolutismo. A legalidade como limitação ao Estado somada à separação dos poderes instrumentaliza essa meta.

O Direito Privado, por sua vez, observa Carvalho Neto, “corresponderia àquelas verdades matemáticas inerentes a todo e qualquer indivíduo: os direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade privada. Assim, sociedade política e sociedade civil são separadas por um profundo fosso.”

A preocupação nesse momento histórico é assegurar a existência de uma lei universal, geral e abstrata, para que se garanta a liberdade e igualdade dos indivíduos.

Nesse contexto, o juiz limita-se apenas a expressar o que a lei diz, mediante uma leitura direta dos textos normativos: reflexo da postura de intervenção mínima ou neutra do Estado. A interpretação não é bem vinda, devendo ser privilegiada a consulta ao legislador na hipótese de incompreensão dos dispositivos legais.

A exploração do homem pelo homem no curso do paradigma do Estado Liberal resultou em uma desigualdade material sem precedentes na história. A Revolução Industrial bem refletiu esse processo indicando que nova ruptura paradigmática emergia.

O Estado Social percorreu o socialismo implantado na Rússia Soviética de 1918, as sociais democracias como as da Alemanha de 1919 e da Áustria de 1920, até o nazismo e o fascismo em ascensão. Essas formas de organização política pressupunham a materialização dos direitos anteriormente formais, que não se limitou aos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de primeira (os individuais). A liberdade não era mais considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis. Houve, assim, maior preocupação com a elaboração de leis sociais e coletivas que possibilitassem, minimamente, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material, equitativa (CARVALHO NETTO, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 35.)

Naquele contexto, o Estado não mais se apresentava à sociedade como um elemento neutro, cuja função focava-se a garantir a paz e segurança públicas. Tornou-se imperiosa a intervenção estatal em setores antes timidamente regulados, como a economia. O indivíduo passou a ser tratado como cliente da Administração e não como mero proprietário.

Ao Poder Judiciário, naquela quadra, cabia aplicar o Direito material então vigente aos casos concretos submetidos à sua apreciação, tendo em vista o sentido teleológico do ordenamento jurídico.

Carvalho Netto observa que o juiz, no paradigma do Estado Social, não podia ter a sua atividade reduzida a uma mera tarefa mecânica de aplicação silogística da lei tomada como a premissa maior sob a qual se subsume automaticamente o fato. A hermenêutica jurídica reclamava métodos mais sofisticados como as análises teleológicas, sistêmica e histórica capazes de emancipar o sentido da lei da vontade objetiva da própria lei, profundamente inserida nas diretrizes de materialização do Direito que a mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das necessidades dos programas e tarefas sociais.

O trabalho do juiz, conclui o professor mineiro, era visto como algo mais complexo a garantir as dinâmicas e amplas finalidades sociais que recaiam sobre os ombros do Estado. Explicava-se assim, por exemplo, tanto a tentativa de Hans Kelsen de limitar a interpretação da lei através de uma ciência do Direito encarregada de delinear o quadro das leituras possíveis para a escolha discricionária da autoridade aplicadora, quanto o decisionismo em que o mesmo recai quando da segunda edição de sua Teoria pura do direito (CARVALHO NETTO, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 36.)

Todavia, o discurso da materialização do Direito por meio de um Estado interventor que se apresentava acima de uma sociedade carente e desigual não se sustentou. O declínio do modelo de Estado Social foi inevitável após o término da Segunda Grande Guerra. A complexidade da sociedade, na qual não é possível identificar, de per si, o interesse público que a defina, estabelece uma nova relação entre o público e o privado, anunciando um novo pano de fundo compartilhado, ou melhor, um novo paradigma.

Carvalho Netto destaca que, após a Segunda Guerra Mundial, inicia-se um processo de mudanças profundas na relação entre a sociedade civil e o Estado: associações da sociedade civil passam a representar o interesse público em face de um Estado privatizado ou omisso.

O mesmo autor afirma que os direitos ditos de primeira e segunda geração ganham novo significado: os de primeira são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação no debate público que informa e conforma a soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e seu direito participativo, pluralista e aberto.

Liberdade e igualdade não possuem apenas a face formal. Tornou-se necessária a consideração das diferenças entre os indivíduos e grupos sociais. Não é mais possível definir, a priori, qual o interesse prevalente. Existem, nesse cenário complexo, interesses diversos que, necessariamente, devem ser considerados.

O Poder Judiciário, agora, deve trabalhar com princípios e não apenas com regras, tendo em vista que o mecanismo do tudo ou nada, característico da interpretação de regras jurídicas, não atende a um contexto diversificado, cujas situações e interesses precisam ser detectados e analisados a partir de uma perspectiva democrática.

Desse modo, salienta Carvalho Netto, no paradigma do Estado Democrático de Direito é de se esperar do Judiciário a realização de decisões que, ao elaborarem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, “satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.”

A indispensável consideração das peculiaridades do caso concreto é reflexo da diversidade de interesses presentes na sociedade atual, os quais não podem ser definidos “de cima para baixo” por um Estado que se intitule como o guardião exclusivo do interesse público.

Para Cattoni de Oliveira, “O Direito, justificado no princípio democrático, assume, então, o lugar deixado pela eticidade, pelas tradições imemoriais e pelas ‘leis divinas’: além de corresponder às exigências funcionais de uma sociedade complexa, ao Direito também cumpre satisfazer as precárias condições de uma integração social que, em última análise, se dá através de aquisições de entendimento mútuo entre sujeitos comunicativamente atuantes” (CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo de. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 66.)

A pluralidade de estilos de vida e pensamento presente no paradigma do Estado Democrático de Direito também é destacada por Chamon Júnior e Augusto Canêdo. Segundo os autores, os distintos grupos, antes alijados das discussões, não mais são postos no seu “devido lugar”, mas têm a possibilidade e a capacidade de participar e conviver nos mesmos foros que os demais grupos. Não é mais possível, como ocorrera no Estado Social de Direito, o Estado “estabelecer para os outros aquilo que se julga bom para estes, mas o que importa agora é uma superação desse modelo eticizante pela ruptura significada por uma visão democrática que diz antes respeito a uma procedimentalização” (CANÊDO, Carlos Autusto e CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. Eutanásia e dogmática penal. Revista Brasileira de Ciências Penais, Ano 9, outu-dez de 2001, p. 70-71.)

A Constituição da República de 1988 consagra, exatamente, o paradigma do Estado Democrático de Direito, razão pela qual não é possível admitir uma leitura do Direito desconectada da realidade.

Diversos desdobramentos poderiam ser apontados. O interesse público, por exemplo, no Estado Social, era objeto de proteção exclusiva da esfera pública-estatal. Cabia à autoridade pública dar conta das demandas sociais em face das necessidades do indivíduo-cliente. Por isso tantas prerrogativas. O Estado era o protetor exclusivo do interesse público. No Estado Democrático de Direito, pós “guerras mundiais”, o pano de fundo muda. A sociedade civil passa a se organizar em defesa do interesse público contra o público-estatal. Por outro lado, o cenário de grandes avanços tecnológicos, a possibilitar maior integração entre diferentes culturas, interfere na formatação de uma sociedade multifacetada, em que a Administração Pública deixa de ser considerada como tutora exclusiva do interesse público, para compartilhar a tarefa com a sociedade e seus diversos atores.

O indivíduo-cliente não se convence mais. Agora é cidadania e com ela, participação, portanto, o “público” não é construído por uma esfera isolada, a pública ou a privada. A motivação no Direito Administrativo, por sua vez, vai para o centro. Junto com ela o procedimento ou procedimentalização da função administrativa. Não se fala em forma descolada de conteúdo, afinal, é por meio da forma que se estabelece a interlocução.

Os controles judicial e social ganham complexidade. Instrumentos antigos, como a ação popular e o mandado de segurança, abrem caminho para o controle judicial efetivo da função pública, à luz do Paradigma Democrático de Direito que briga por espaço, por reconhecimento. Se a autoridade pública, a pretexto de garantir o “público”, deve falar e ouvir, explicitando suas razões, o desvio, a curva, a violação indireta às normas (regras e princípios) são mais facilmente desvelados.

A lição é clara: não se pode por meio lícito alcançar finalidade ilícita. O exemplo escolar: não se pode valer da discricionariedade administrativa para remover servidor, quando, na verdade, o que se pretende é perseguir o agente público.

Percebe-se, claramente, que a interpretação do Direito Administrativo na quadra do Estado Democrático de Direito ganha em complexidade, que jamais pode ser confundida com “casuísmo”.

No paradigma democrático, fica bem mais difícil tapar o sol com a peneira.



Por Flávio Henrique Unes Pereira (MG)

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