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Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade: utilidade e viabilidade no modelo de controle brasileiro

ANO 2016 NUM 130
Gabriel Dias Marques da Cruz (BA)
Mestre e Doutor em Direito do Estado - USP. Professor de Direito Constitucional e Ciência Política da UFBA, Faculdade Baiana de Direito e Faculdade Ruy Barbosa.


04/04/2016 | 4821 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

E' por isso que na grande União Americana com razão se considera o poder judiciario como a pedra angular do edificio federal e o unico capaz de defender com efficacia a liberdade, a autonomia individual. Ao influxo da sua real soberania desfazem-se os erros legislativos e são entregues á austeridade da lei os crimes dos depositarios do poder executivo. De resto, perante a justiça federal dirimem-se não só as contendas que resultam do direito civil, como aquellas que mais possam avultar na elevada esphera do direito publico. Isto basta para assignalar o papel importantissimo que a Constituição reservou ao poder judiciario no governo da Republica. Nelle reside essencialmente o principio federal; e da sua boa organização, portanto, é que devem decorrer os fecundos resultados que se esperam do novo regimen, precisamente porque a Republica, segundo a maxima americana, deve ser o governo da lei” (Exposição de Motivos do Decreto nº 848, de 1890, pp. 1-2).

 

1.     Introdução

Este breve artigo tem por motivação tema inicialmente idealizado quando da conclusão dos meus estudos de Doutorado, e que acredito seja uma importante ferramenta em prol do aperfeiçoamento do controle de constitucionalidade brasileiro. Trata-se da criação, via Conselho Nacional de Justiça, de um Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade (CNDI), que teria por finalidade central a sistematização do modelo de controle difuso-incidental, praticado no Brasil.

Neste sentido, o artigo encontra-se desenvolvido em dois pontos centrais, envolvendo: (1) a caracterização, em linhas gerais, do modelo de controle de constitucionalidade brasileiro; (2) a apresentação da utilidade e viabilidade do Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade para o aperfeiçoamento deste modelo.

2.     Caracterização do Modelo de Controle de Constitucionalidade Brasileiro

Constitui constatação notória mencionar que o modelo de controle de constitucionalidade brasileiro é um dos mais complexos existentes no mundo. De fato, encontramos no Brasil uma convivência extremamente peculiar de diversas formas de fiscalização de leis e atos normativos que sejam contrários à Constituição Federal.

Por um lado, tendo por base a inspiração norte-americana, possuímos o modelo de controle difuso-incidental, que assegura a qualquer Juiz ou Tribunal o poder de declarar, em casos concretos sujeitos à sua apreciação, a inconstitucionalidade. A ampla liberdade de decretação de inconstitucionalidade pelo Judiciário convive, contudo, com a propagação de efeitos, de regra, apenas para as partes do processo em concreto, permanecendo válidos, na ordem jurídica nacional, a lei ou ato normativo impugnados.

Por outro lado, progressivamente tem-se verificado uma tendência de acolhimento de ações integrantes do chamado controle concentrado-principal de constitucionalidade. Na aludida modalidade de controle ocorre, por sua vez, o monopólio da fiscalização do respeito à Constituição por um Tribunal específico, acionado por ações de controle que, uma vez decididas, atingem a lei ou ato normativo em si, retirando-o do ordenamento jurídico com efeitos para todos. São exemplos de ações do modelo concentrado, previstas na Constituição de 1988, as seguintes:

(1) a ação direta de inconstitucionalidade, nas suas modalidades de ação direta genérica (artigo 102, inciso I, alínea a, parte inicial), interventiva (artigos 34, inciso VII, c/c 36, inciso III) e por omissão (artigo 103, §2º);

(2) a ação declaratória de constitucionalidade (artigo 102, inciso I, alínea a, parte final);

(3) a arguição de descumprimento de preceito fundamental (artigo 102, §1º).

Sendo assim, usualmente chama-se de misto o controle brasileiro, dada a convivência de experiências distintas de fiscalização do respeito à Constituição, embora haja doutrina contrária a respeito (neste sentido, cf. RAMOS, Elival da Silva. A evolução do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade e a Constituição de 1988. In: MORAES, Alexandre de (Coordenador). Os 20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil, p. 141).

Além dos traços centrais acima expostos – amparados, ressalte-se, em um recorte de natureza didática, e passíveis dos mais diversos questionamentos – o modelo brasileiro de controle é dotado de inúmeros outros casos de fiscalização, que também superam os limites desta pesquisa.

Desse modo, o recorte específico deste trabalho está voltado para o âmbito do controle difuso-incidental de constitucionalidade, que seria beneficiado com a adoção do Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade, alvo do próximo tópico.

3.     Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade

O controle difuso-incidental brasileiro é mais do que centenário, tendo sido pioneiramente adotado no final do século XIX, no momento de fundação da República. Tendo por base a decisiva atuação de Ruy Barbosa, passamos a contemplar institutos nitidamente transplantados dos Estados Unidos, sendo exemplo o referido modelo de controle (neste sentido, cf. BARBOSA, Ruy. Os Actos Inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal. Capital Federal: Companhia Impressora, 1893, p. 16).

No caso brasileiro, a incorporação da inspiração norte-americana ocorreu, particularmente, via Constituição de 1891, assim como pelo Decreto nº 848, de 1890, que organizou a Justiça Federal. O artigo 386 deste Decreto previa, textualmente, que “os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity, serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal”.

Nos Estados Unidos, o modelo de controle difuso foi desenvolvido a partir da decisão proferida no caso Marbury v. Madison, em 1803. A referida decisão é alvo de diversos estudos específicos, e significou o primeiro e mais celebrado caso de decisão judicial que atribuiu ao Poder Judiciário a tarefa de verificar o respeito à Constituição, afastando leis e atos normativos contrários ao seu conteúdo (neste sentido, cf. GREENHOUSE, Linda. The U.S. Supreme Court: A Very Short Introduction. Oxford, New York: Oxford University Press, 2012, pp. 10-12; HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Two Hundred Years of Marbury v. Madison. German Law Journal. Vol. 05. No. 06, 2004, pp. 685-687; no Brasil, cf. PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. O Controle Difuso de Constitucionalidade das Leis no Ordenamento Brasileiro – Aspectos Constitucionais e Processuais. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 34; BINENBOJM, Gustavo. Duzentos Anos de Jurisdição Constitucional: as Lições de Marbury v. Madison. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 28, outubro/novembro/dezembro de 2011, pp. 1-3).

No caso norte-americano, o funcionamento do controle é viabilizado por meio da incidência do princípio do stare decisis et non quieta movere, ou seja, do respeito aos precedentes em cada caso concreto, associado ao regime de common law (cf. NOGUEIRA, Gustavo Santana. “Stare decisis et non quieta movere”: A Vinculação aos Precedentes no Direito Comparado e Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, em especial p. 112, rodapé nº 20, com a menção aos casos que teriam inaugurado, na Inglaterra, a cultura de respeito aos precedentes). Existe o hábito, enraizado há muito tempo, de conhecimento e estudo das decisões proferidas pelas Cortes, assumindo papel extremamente relevante a atuação da famosa Suprema Corte.

Ocorre que, no Brasil, a importação do controle difuso-incidental ocorreu sem que houvesse maior preocupação com a sistematização das decisões proferidas por Juízes e Tribunais por todo o País. Embora seja amplamente garantido o poder que Juízes e Tribunais possuem de declarar leis inconstitucionais, em geral não sabemos quando isso ocorre, a não ser que se trate de caso de ampla disseminação midiática.

Em síntese, não temos controle sobre o exercício do controle brasileiro.

Cabe esclarecer que a demanda por controle sobre o próprio exercício do controle não deve significar qualquer espécie de ofensa ao princípio da independência judicial, um dos elementos centrais do funcionamento do Poder Judiciário. Não temos controle sobre o controle brasileiro em uma perspectiva muito mais singela: a de que sequer conhecemos, de forma sistematizada, em que casos e sob quais condições argumentativas houve o afastamento da aplicação de lei ou ato normativo.

Como medida para superar tal amplo desconhecimento defendo a criação, via Conselho Nacional de Justiça, de um Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade.

O CNJ poderia, tendo em vista o seu reconhecido poder normativo, editar uma Resolução sobre o tema, tornando obrigatório que Juízes e Tribunais passassem a comunicar ao Conselho os casos em que vierem a proferir decisões de inconstitucionalidade concretamente, enviando uma cópia da decisão para aferição dos argumentos utilizados em cada hipótese. Não se tem, com isso, qualquer menosprezo à independência judicial, mas sim, tão-somente, a obrigatoriedade de que haja a comunicação de decisão já proferida.

O Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade pode trazer inúmeros benefícios para o modelo de controle brasileiro, assunto que é alvo dos próximos tópicos.

3.1  Utilidade do CNDI

Uma vez criado, o Cadastro Nacional permitirá, ao menos, três vantagens significativas:

(1) efetiva sistematização de decisões de inconstitucionalidade proferidas por Juízes e Tribunais no âmbito do controle difuso-incidental;

(2) possibilidade de aperfeiçoamento da fundamentação das decisões judiciais envolvendo controle de constitucionalidade;

(3) viabilidade de intercâmbio entre modelos de controle difuso e concentrado de constitucionalidade, promovendo um debate público sobre os argumentos utilizados.

Examino as referidas vantagens a seguir.

 

(1)   Efetiva Sistematização de Decisões de Inconstitucionalidade

No primeiro caso, a efetiva sistematização ocorreria a partir do momento em que passamos a ter conhecimento sobre em que casos Juízes e Tribunais decidiram que leis e atos normativos são inconstitucionais.

Atualmente, tal conhecimento é limitado. Em verdade, a regra é o desconhecimento acerca de quando tais decisões são proferidas, o que conduz a uma situação absurda: simplesmente não sabemos em que situações, e com quais argumentos, leis e atos normativos deixaram de ser aplicados em casos concretos pelo Poder Judiciário no Brasil.

A adoção do Cadastro Nacional resolveria a referida lacuna. Um Cadastro organizado permitiria que um Juiz do Acre soubesse que argumentos seu colega Magistrado do Rio Grande do Sul empregou ao declarar certa lei inconstitucional. Este exemplo, já citado em publicação anterior (CRUZ, Gabriel Dias Marques da. Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade: uma nova ferramenta para o aperfeiçoamento da Jurisdição no Diálogo Brasil-Portugal. In: OLIVEIRA, Paulo Augusto de; LEAL, Gabriel Prado (organizadores). Diálogos Jurídicos Luso-Brasileiros. Salvador: JusPODIVM, 2015, p. 360), pode ser somado a outra ilustração, ainda mais grave: sequer somos capazes de dizer, com convicção, em que casos e com quais argumentos uma lei específica – fruto da atuação conjunta do Legislativo e do Executivo – foi declarada inconstitucional em qualquer de nossos Estados. Desconhecemos, portanto, a nossa própria realidade regional. Trata-se de omissão substancial, de correção necessária e urgente. 

(2)   Aperfeiçoamento da Fundamentação das Decisões Judiciais

Em segundo lugar, haveria um possível incremento da fundamentação das decisões judiciais. Caso algum Juiz ou Tribunal cogite declarar uma lei inconstitucional certamente consultará, anteriormente, o Cadastro Nacional de Decisões do CNJ, examinando que argumentos foram usados, em casos similares, por outros Magistrados no Brasil.

O conhecimento de tais argumentos – que, hoje, exige uma tarefa hercúlea de busca, caso a caso – seria assegurado por meio da concentração, em um mesmo repositório oficial, de decisões de controle de constitucionalidade. Trata-se de providência que efetiva o dever geral de fundamentação das decisões, previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, estando, ainda, alinhada às diretrizes do Novo Código de Processo Civil, em especial aos seus artigos 489 e 926 a 928. 

(3)   Intercâmbio entre Modelos no Exercício do Controle e Debate Público

Por fim, ocorreria um maior intercâmbio entre os modelos de controle difuso e concentrado, fomentando um rico compartilhamento de informações, capazes de alimentar o exercício prático de ambas as modalidades de fiscalização.

A partir do conhecimento de várias decisões de inconstitucionalidade, proferidas por todo o Brasil, surgiria um possível quadro de controvérsia judicial relevante, autorizador da propositura de uma ação declaratória de constitucionalidade, consoante as regras do artigo 102, inciso I, alínea a, da Constituição Federal, bem como do artigo 14, inciso III, da Lei nº 9.868/99.

Além disso, o quadro delineado também poderia despertar atenção de algum legitimado ativo para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, tendo por base a intenção de resolver a questão no sentido da retirada, em definitivo, da lei ou ato normativo questionados da ordem jurídica brasileira.

A criação do Cadastro Nacional também poderia ensejar a utilização de um incidente de inconstitucionalidade, capaz de fazer com que haja a análise imediata, pelo STF, a partir da provocação de específico legitimado ativo, de questão referente ao controle de constitucionalidade, discutida em algum caso concreto relevante. A arguição incidental, atualmente, encontra previsão legal no artigo 1º, parágrafo único, inciso I, da Lei nº 9.882/99, embora também seja defensável a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 406/2001, que amplia o cabimento do instituto, e que foi alvo de pesquisa específica (CRUZ, Gabriel Dias Marques da. Incidente de Inconstitucionalidade e Controle Difuso: Sistematização e Perspectivas. Tese de Doutorado em Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014).

Tem-se, com isso, o aperfeiçoamento do debate público sobre decisões de inconstitucionalidade. Uma vez presentes no portal eletrônico do CNJ, disponível na rede mundial de computadores, ocorreria fácil e amplo acesso ao seu conteúdo, em prestígio aos princípios da transparência e da publicidade, fundamentais para nosso regime republicano.

3.2  Viabilidade do CNDI

O Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade apresenta diversos benefícios, como acima mencionado, e não possui qualquer complexidade para a sua idealização. Examinemos, então, a viabilidade da adoção da ferramenta.

Inicialmente, a sua criação não exige maiores formalidades, sendo suficiente a edição de uma Resolução pelo Conselho Nacional de Justiça. O CNJ, dotado de poder normativo, integrante do Poder Judiciário e presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, conforme o artigo 103-B da CF/88, possui total legitimidade para construir regras uniformes, como tem feito em diversos casos.

Curioso reconhecer a existência de vários Cadastros Nacionais já criados pelo CNJ, justamente motivados pela necessidade de concentração de informações. A realização de pesquisa simples no portal do CNJ revela a existência dos seguintes cadastros: (1) Cadastro Nacional de Adoção (CNA); (2) Cadastro Nacional de Condenações Cíveis por Atos de Improbidade Administrativa; (3) Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos; (4) Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CSS-BACEN); (5) Cadastro Nacional de Entes Públicos (CNEP); (6) Cadastro das Serventias Extrajudiciais; (7) Cadastro de Entidades Devedoras Inadimplentes (CEDIN); (8) Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP) (Fonte: Portal do CNJ. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/busca?termo=cadastro, Acesso em: 30/03/2016).

Contudo, ainda não foi editado justamente o mais importante dos Cadastros, capaz de compilar decisões judiciais que deixaram de aplicar leis e atos normativos declarados inconstitucionais. O CNDI viria a se somar, pois, aos Cadastros mencionados, em prol da melhoria de nossa jurisdição constitucional.

Espera-se, evidentemente, que sejam desenvolvidos os aperfeiçoamentos tecnológicos no Portal do CNJ para abrigar as decisões enviadas por Juízes e Tribunais. Trata-se, por certo, de providência também de natureza simples, podendo ser desenvolvida pela equipe técnica de servidores do Conselho, dotada da habilidade profissional necessária para tanto.

Portanto, o Cadastro Nacional não representa solução onerosa porquanto consubstancia criação inserida nas funções usuais do Conselho, a ser desenvolvida pelos servidores técnicos preparados para tanto, e capaz de promover benefícios reais ao exercício do controle de constitucionalidade brasileiro.

4.     Conclusões

Ante o exposto, foram apresentados, neste breve estudo, alguns traços centrais que justificam a utilidade e a viabilidade de criação do Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade (CNDI) pelo CNJ no Brasil. Acredito ser justamente esta a missão da pesquisa jurídica: buscar, a partir do estudo e investigação constantes, soluções capazes de aperfeiçoar o Direito, na esperança de que seja progressivamente capaz de atender às demandas plurais de uma sociedade complexa.

A partir da adoção do Cadastro Nacional de Decisões de Inconstitucionalidade seremos capazes de alcançar uma boa organização do Judiciário, para que tenhamos melhores resultados na reafirmação do governo da lei como elemento chave da República brasileira, como já relatava a Exposição de Motivos do Decreto nº 848, em 1890.



Por Gabriel Dias Marques da Cruz (BA)

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