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O Presidente da República pode intervir em Tribunal de Contas Estadual?

ANO 2017 NUM 355
Guilherme Jardim Jurksaitis (SP)
Professor do Curso de Direito Administrativo da Pós-graduação lato sensu da FGV Direito SP (GV Law). Coordenador de Direito Administrativo da Sociedade Brasileira de Direito Público. Mestre e doutorando em direito do Estado pela USP.


04/05/2017 | 4699 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

É por todos conhecida a situação do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro: 6 de seus 7 conselheiros encontram-se temporariamente afastados de seus cargos em razão de decisão cautelar do Superior Tribunal Justiça, proferida nos autos do inquérito 1.133/DF, que corre em segredo de justiça. No exercício regular do cargo, restou única conselheira alçada à condição de presidente interina.

O regimento interno do TCE-RJ prevê que o Plenário deve se reunir com a presença de no mínimo 4 conselheiros (art. 104). Em face da inviabilidade absoluta de atender a este requisito, a presidente interina do TCE-RJ adotou três medidas: (i) afastou a incidência de norma da lei orgânica da Corte que proibia a participação simultânea de mais de um auditor substituto nas sessões plenárias (art. 76-A, § 3º da lei complementar estadual 60/1990 atualizada pela lei complementar estadual 156/13); (ii) suspendeu temporariamente as atividades das câmaras julgadoras; e (iii) atribuiu competências usualmente reservadas às câmaras ao plenário (deliberação 270/2017). Tais medidas foram adotadas após parecer prévio da procuradoria jurídica do Tribunal e serão submetidas ao referendo dos conselheiros titulares, tão logo cessem os efeitos do afastamento determinado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Nesse cenário, o Procurador Geral da República protocolou representação no Supremo Tribunal Federal com pedido de intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, em razão do “comprometimento do sistema de prestação de contas”, diante da “inviabilização de regular funcionamento do Tribunal de Contas do Estado”. A representação invoca norma da Constituição Federal que prevê a hipótese de intervenção federal para “assegurar a observância do princípio constitucional da prestação de contas da administração pública” (art. 34, VII, ‘d’). A representação foi autuada no pedido de intervenção federal 5215, sob a relatoria da Min. Cármen Lucia.

O Procurador Geral da República argumenta que a cláusula de reserva de plenário (art. 97 da Constituição Federal) impediria que a presidente interina do TCE-RJ negasse vigência ao dispositivo da lei orgânica que expressamente proíbe a participação concomitante de mais de um auditor substituto nas sessões do tribunal pleno. Refere-se à súmula vinculante nº 10, que enuncia: “Viola a cláusula de reserva de plenário a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”. Assim, de acordo com a representação, a “composição plenária juridicamente precária poderá ensejar nulidade dos julgamentos realizados”.

Por esses motivos, requer que o STF “requisite ao Presidente da República decretar intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, para restabelecer o funcionamento regular do Tribunal de Contas, mediante nomeação de conselheiros interventores suficientes para alcançar o quórum exigido pelo art. 104 do Regimento Interno do TCE-RJ”. Pede também a suspensão cautelar dos efeitos das decisões tomadas pelo tribunal pleno na composição determinadas pela presidente interina. A representação não questiona as demais medidas adotadas.

Depreende-se da representação que o problema de fundo está na impossibilidade de o TCE-RJ continuar funcionando enquanto perdurar o afastamento de seus conselheiros, em razão de impedimento regimental. As medidas adotadas pela conselheira interina são desdobramentos dessa condição.

A iniciativa do Procurador Geral da República suscita muitos questionamentos. A começar pelo cabimento do pleito: a Constituição Federal admite intervenção federal para nomeação de integrante de órgão auxiliar do Poder Legislativo, ainda que em caráter temporário? Imagine-se caso análogo ao verificado no TCE-RJ, porém, tendo como alvos membros de Tribunal de Justiça, ou do Conselho Superior do Ministério Público. Caberia o pleito de intervenção? Como ficaria a autonomia constitucionalmente assegurada a esses órgãos?

Outra indagação, também de caráter preliminar, dirige-se à norma constitucional a justificar a representação do PGR. Será que eventual paralisação momentânea no funcionamento de Tribunal de Contas ameaçaria a observância do princípio da prestação de contas da administração pública? A resposta não é simples. Lembre-se que o Supremo parece ter reconhecido que a competência para julgar as contas de governo e de gestão do chefe do executivo pertence ao Poder Legislativo, sendo o Tribunal de Contas seu auxiliar nessa tarefa (RE 848826 e RE 729744, rel. para o acórdão Min. Ricardo Lewandowski).

Por que se optou por fundamentar o pedido na observância do princípio da prestação de contas (art. 35, VII, ‘d’), e não na garantia de livre exercício dos Poderes da federação (art. 34, IV), já que o Tribunal de Contas é órgão auxiliar do Poder Legislativo (art. 71)? A consequência de se invocar um ou outro fundamento interfere na competência para a propositura da medida: no primeiro caso, a competência para a propositura da representação é do Procurador-Geral da República, e a requisição de intervenção é feita pelo STF (art. 36, III). Já no segundo caso, a solicitação de intervenção é feita pelo Poder Legislativo ou pelo Poder Executivo que tiver o seu livre exercício obstado (art. 36, I).

Admitindo-se a imprescindibilidade do funcionamento regular do Tribunal de Contas para o cumprimento do princípio da prestação de contas, o que poderia levar à procedência da representação do Procurador-Geral, o Presidente da República teria competência para nomear, sozinho, conselheiros interventores em Tribunal de Contas estadual? A Constituição exige que a indicação dos membros dos tribunais de contas, quando feita pelo chefe do poder executivo, seja aprovada pelo Poder Legislativo (art. 73, § 2º, I). Além disso, ela impõe requisitos subjetivos para investidura (art. 73, § 1º). Caso o Supremo julgue procedente o pedido de intervenção, essas condições devem ser observadas na escolha dos conselheiros interventores, ou podem ser excepcionalmente afastadas? O Presidente teria então ampla liberdade para nomear os interventores?

Independentemente dessas questões, e do debate acerca de o ato da presidente interina do TCE-RJ ter ou não contrariado a súmula vinculante nº 10, vale indagar se é constitucional a norma local que proíbe a participação simultânea de mais de um auditor nas sessões plenárias. A Constituição Federal e a Constituição do Estado do Rio de Janeiro não trazem norma com essa vedação. Na verdade, a Constituição Federal atribuiu ao auditor em substituição as mesmas garantias e impedimentos do titular, sem nada ressalvar (art. 73, § 4º). Por certo, não faz sentido imaginar que autoridade que não passou pelo procedimento constitucionalmente estabelecido para a investidura no cargo de ministro ou conselheiro de contas pudesse exercê-lo permanentemente, mas não é disso que se trata.

Para além do debate jurídico suscitado pela representação do Procurador-Geral da República, é interessante observar as peculiaridades do cenário fático: a presidente interina do TCE-RJ adotou as medidas acima após ouvir sua procuradoria jurídica, optando por seguir suas recomendações, inclusive quanto à nomeação de auditores para a composição do Tribunal Pleno, enquanto perdurarem o afastamento dos conselheiros. Qual outra solução poderia ser adotada para preservar ainda que provisoriamente o funcionamento do TCE-RJ? Parece difícil imaginar saída diversa da que foi implantada.

De outro lado, não se deve perder de vista a consequência de uma decisão do Supremo favorável ao pleito do PGR: no lugar de auditores, que são servidores públicos concursados, ter-se-ia a nomeação de conselheiros interventores, cuja investidura, aparentemente, não estaria atrelada a essa condição. Não valeria, neste caso, a mesma preocupação externada pela representação, para quem a “composição plenária juridicamente precária poderá ensejar nulidade dos julgamentos realizados”? 



Por Guilherme Jardim Jurksaitis (SP)

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