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Crítica à Utilização das Licitações Públicas como Instrumento de Políticas Públicas

ANO 2016 NUM 243
Joel de Menezes Niebuhr (SC)
Advogado. Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UFSC. Professor de cursos de pós-graduação. Ex-Presidente do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina.


26/08/2016 | 9153 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Já não é de hoje que o legislador vem burilando a licitação pública com uma série de prescrições e exigências sem correlação lógica direta com a finalidade de selecionar a proposta mais vantajosa. Essas prescrições e exigências guardam relação com outras pautas, notadamente justiça social, fomento de natureza econômica e a questão ambiental, apanhada pelo abrangente amálgama da sustentabilidade. Ou seja, o legislador historicamente utiliza a licitação pública como instrumento para a promoção de políticas públicas.

Para coroar essa tendência e assumi-la de peito aberto o legislador resolveu alterar o caput do art. 3º da Lei nº 8.666/93 para afirmar, com todas as letras, que uma das finalidades da licitação é a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Nada mais amplo, especialmente diante do entendimento de que a sustentabilidade comporta aspectos ambientais, econômicos e sociais. A sustentabilidade, sob essa dimensão tão ampla, confunde-se com o próprio conceito de interesse público. Ao fim e ao cabo, abre-se espaço para utilizar a licitação como instrumento de políticas públicas.

Quem pode ser contra isto? Quem pode opor-se ao desenvolvimento nacional sustentável? Há coisas estranhas por aí, porém é difícil encontrar alguém que advogue que o País não deve desenvolver-se, que deve ficar paralisado, em recessão, gerando fome, miséria e desordem. E, na mesma medida, acredito ser difícil encontrar alguém que se oponha à ideia de que o desenvolvimento de um País deve ser sustentável, preservando os recursos naturais e os direitos das gerações futuras. Não é muito comum ouvir discurso que defenda a destruição das florestas, a poluição do ar, dos rios e dos mares, o consumo irresponsável de todos os recursos naturais, o endividamento impagável para as futuras gerações.

Portanto, digo em alto e bom som, sou a favor, totalmente a favor, do desenvolvimento nacional sustentável. Não é preciso, no debate sobre o assunto, para eventualmente contrapor os argumentos a serem apresentados em seguida, elencar os princípios constitucionais que apregoam o desenvolvimento, a justiça social e a proteção ao meio ambiente. Sabe-se que tudo isto está na Constituição Federal. Nada do que direi aqui deve ser interpretado como se fosse contra o desenvolvimento, a justiça social e a proteção ao meio ambiente.

Como dito, o art. 3º da Lei nº 8.666/93 prescreve que uma das finalidades da licitação é o desenvolvimento nacional sustentável. Não se pode recusar esta norma. Ela existe e é válida. O debate reside no que ela significa e quais os efeitos dela. Parece que a principal função desta norma, que aduz como finalidade da licitação o desenvolvimento nacional sustentável, é emprestar legitimidade a uma série de outras normas jurídicas, inclusive legais, que prescrevem exigências e condicionantes incidentes sobre as licitações e que não se conformam à finalidade de selecionar as propostas mais vantajosas, porém visam à promoção de políticas públicas. Estas outras exigências estariam protegidas e sistemicamente justificadas pelo caput do art. 3º da Lei nº 8.666/93.

De maneira geral, faço três ressalvas.

A primeira é que a verdadeira finalidade da licitação é a seleção da proposta mais vantajosa. Pode-se afirmar que o desenvolvimento nacional sustentável também é uma finalidade da licitação, mas de caráter secundário, que se acopla à finalidade primária. Significa dizer que o desenvolvimento nacional sustentável não pode derrogar a busca pela proposta mais vantajosa. Salienta-se que a proposta mais vantajosa não se resume ao menor preço, conforme usualmente praticado pela Administração. O que é a proposta mais vantajosa depende da qualidiade e da avaliação dos custos indiretos, quando estes forem relevantes, inclusive de ordem ambiental. De todo modo, custo indireto significa custo concreto e palpável, que precisa ser demonstrado na ponta do lápis. Custo indireto não é algo metafísico e etéreo.

A segunda ressalva é que a licitação brasileira é procedimento já por demais complicado. Os editais de licitação desenham verdadeira gincana de documentos, contendo exigências e exigências, muitas delas meramente formais e burocráticas, totalmente dispensáveis. A eficiência em licitação será encontrada na medida em que ela tornar-se mais simples, mais focada no propósito de selecionar a proposta mais vantajosa. Tudo que se põe na licitação que não vise a selecionar a proposta mais vantajosa acaba prejudicando em algum grau este intento, já que a torna mais complicada. O País ganhará muito com uma licitação menos complicada, o procedimento será mais célere, o custo financeiro dos contratos menor e os objetos terão melhor qualidade. Isto fará com que a Administração desempenhe melhor as suas atividades, em prol da população. Disporá de obras, serviços e bens de melhor qualidade e mais eficientes, portanto prestará serviços melhores. Economizará recursos financeiros, portanto poderá utilizar o montante economizado para ampliar sua atuação, atendendo mais gente e com mais funcionalidades. Enfim, a simplificação da licitação é a melhor medida para promover o desenvolvimento nacional sustentável, sob todos os seus aspectos. Aliás, estas considerações não são meros frutos de opiniões pessoais e políticas, dado que encontram justificativa jurídica e constitucional no caput do art. 37 da Constituição Federal, mais precisamente no princípio da eficiência e na própria ideia constitucional de desenvolvimento, tão aturdida ultimamente.

Não quero dizer com isso que a licitação não deve incorporar pautas relacionadas ao desenvolvimento nacional sustentável, que elas necessariamente, por natureza, seriam inconvenientes e que conflitariam com o princípio da eficiência. Não, assertiva deste tipo é apressada e equivocada. O ponto é – este é o grande desafio – conciliar a pauta do desenvolvimento nacional sustentável com a obtenção da proposta mais vantajosa, que remete ao princípio constitucional da eficiência, bem como com as demais normas constitucionais, especialmente o princípio da competitividade, encartado na parte final do inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal.

Daí que a terceira ressalva diz respeito a como tratar do desenvolvimento nacional sustentável nas licitações. Nesse sentido, adianto que não defendo qualquer objeção jurídica de princípio, porém de meio. Em relação a isso, devo fazer três, diga-se, sub-ressalvas.

Em primeiro lugar, é sabido que as demandas morais da sociedade brasileira, muitas delas plasmadas na Constituição Federal, são amplíssimas e variadas, que geram um sem número de políticas públicas justamente atribuídas ao Estado. Sem muita reflexão, pode-se pensar em listar demandas para a proteção das crianças, dos idosos, dos deficientes físicos, do consumidor, da família, dos grupos GLS, das mulheres, da saúde, das microempresas e empresas de pequeno porte, do meio ambiente, da igualdade racial, da agricultura, da indústria nacional, do saneamento, da previdência, da pesquisa científica, de assistência social, da assistência judiciária gratuita, da energia, da mobilidade urbana, etc. Praticamente em todas as áreas da atuação humana podem-se encontrar demandas morais geradoras de políticas públicas, isto é valores morais que requerem do Poder Público a proteção ou o fomento de alguma atividade ou estado de coisas. E este é o dever do Estado, é para isto que ele existe e serve.

Entretanto, não se pode querer que todas as demandas morais identificáveis, que geram suas respectivas políticas públicas, sejam incorporadas de alguma maneira no regime das licitações públicas, sob pena de inviabilizá-la por completo. A licitação não chegaria a um fim (hoje já quase não chega). O licitante teria que apresentar centenas de certidões e declarações e as margens de preferências seriam sucessivas (hoje já são, mas seriam muito mais).

Para ser mais prático, hoje o inciso V do art. 27 da Lei nº 8.666/93 proíbe que seja habilitado em licitação quem empregar crianças e adolescentes nas condições vedadas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal. Em tese, nada mais justo, porque quem explora o trabalho infantil não deve ser contratado pelo Estado. Perfeito, porém e quem explora ou maltrata os idosos? Também não deveria ser contratado. E quem não respeita os direitos dos deficientes físicos? Da mesma forma. E quem não trata adequadamente os consumidores? Igual. Por bom senso, esta lista não teria fim e as licitações também não chegariam a um fim (repita-se, hoje já quase não chegam).

Essa assertiva demonstra cabalmente que a utilização da licitação para a promoção de política pública é seletiva, porque não é viável acolher em licitação exigências e condicionantes pertinentes a todas as políticas públicas legitimamente assumidas pelo Estado.

Como deve ser realizada essa seleção? Não é pela importância da política pública, porque isto é bastante relativo. Quem irá dizer que proteger as crianças é mais importante que proteger os idosos? Talvez o melhor critério fosse o da eficácia. Dever-se-ia estabelecer um número máximo de políticas públicas a serem contempladas em licitação, analisar todas as existentes e selecionar aquelas cujas exigências e condicionantes previstas em licitações seriam mais eficazes, contribuiriam em maior medida para os objetivos pretendidos com as tais políticas públicas. Isto nunca foi realizado. Hoje, as políticas públicas contempladas em licitação o são pelo acaso, porque alguém teve a ideia, a vontade e a força para que o Congresso aprovasse. Puro casuísmo político, sem estudo minimamente confiável e planejamento.

Em segundo lugar, a parte final do inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal prescreve que a lei somente deve permitir em licitação “as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. Isto é uma regra constitucional válida e vigente, que deve ser cumprida. Portanto, não é permitido ao legislador formular exigências que não sejam de natureza técnica e econômica e que não sejam indispensáveis a avaliar se o licitante terá ou não condições de cumprir o contrato.

Diante da parte final do inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal são categoricamente inconstitucionais todas as exigências de habilitação em licitação encartadas na legislação que visam a promover políticas públicas, porque evidentemente não visam a avaliar se os licitantes têm ou não condições de cumprir o futuro contrato. Daí que política pública não se faz com exigência de habilitação nem com qualquer outro tipo de exigência, ainda que colocada noutra fase da licitação, que condicione a participação de quem quer que seja. Trocando-se em miúdos: ninguém pode ser impedido de participar de licitação porque não atende a políticas públicas. Quer-se mudar isto, mude-se a Constituição.

Por oportuno e de largada, convém noticiar que são inconstitucionais as seguintes exigências:

a) a do inciso V do art. 27 da Constituição Federal, que impede a participação em licitação daqueles que empregam menores nas condições proibidas pelo inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal;

b) a do inciso V do art. 29 da Lei nº 8.666/93, cujo teor exige a certidão negativa trabalhista;

c) o inciso I do art. 48 da Lei Complementar nº 123/06, que prescreve a licitação reservada para microempresas e empresas de pequeno porte, excluindo de antemão a participação de qualquer outra pessoa que não seja microempresa ou empresa de pequeno porte.

Vale mencionar, da Lei Complementar nº 123/06, os artigos 42 e 43, cujos textos postergam para as microempresas e empresas de pequeno porte o cumprimento das exigências de regularidade fiscal. Tais normas não são inconstitucionais, porque não impedem ninguém de participar da licitação, apenas conferem vantagem às microempresas e empresas de pequeno porte, a quem o inciso IX do art. 170 da Constituição Federal autorizou tratamento privilegiado.

Talvez seja necessário encarecer que o reconhecimento da inconstitucionalidade do inciso V do art. 27 da Lei nº 8.666/93 não significa que quem a reconheça seja desumanamente a favor da exploração do trabalho infantil. Significa apenas que a exigência prescrita no referido dispositivo é contrária à parte final do inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal, daí inconstitucional. Significa ponderar que exigir dos licitantes declaração de que não empregam menores nas condições vedadas pelo inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal não resolverá problema algum, não melhorará em praticamente nada a vida das crianças e dos adolescentes abandonados pelo aparelho do Estado.

Sob esse prisma, sobrou para as políticas públicas em licitação basicamente dois espaços, algum tipo de preferência na seleção da proposta mais vantajosa e eventualmente que o objeto da licitação, definido discricionariamente pela Administração, seja adequado à dada política pública.

Em relação às preferências há um problema lógico de limitação numérica. Embora possível, não faz sentido criar sucessivos e sobrepostos critérios de preferência. Atualmente, para as licitações em geral, há dois critérios de preferência sucessivos e sobrepostos. O primeiro previsto nos artigos 44 e 45 da Lei Complementar nº 123/06, em favor das microempresas e empresas de pequeno porte. O segundo previsto entre os §5º a 13 do art. 3º da Lei nº 8.666/93, introduzido pela Lei nº 12.349/10, em favor dos produtos manufaturados e serviços nacionais.

O problema prático é o seguinte: abrem-se as propostas, as duas melhores propostas, não importa a ordem entre elas, são apresentadas por uma microempresa que oferta produto importado da China e uma grande empresa que oferta produto manufaturado no Brasil. As duas são favorecidas por políticas públicas. Quem exerce preferência sobre quem? No caso em tela, a legislação dá a entender que, dentre os favorecidos, a prioridade ficou para a produção nacional em detrimento das microempresas e empresas de pequeno porte. Suponha-se que se crie uma terceira preferência, para as empresas que tratam bem os consumidores. Este direito de preferência que prestigia os consumidores entraria em qual lugar na fila de preferências. Do jeito que as coisas andam, logo haverá um sem número de direitos de preferências sucessivos e sobrepostos. Isto complicaria estrondosamente e ainda mais as licitações, comprometendo as próprias políticas públicas que se pretende estimular.

Em relação às especificações do objeto, reconhece-se discricionariedade à Administração para defini-las de acordo com as suas necessidades, que são pautadas por análise de conveniência e de oportunidade. Nesse quadrante, seria ilógico, contraditório e totalmente despropositado que a Administração definisse as especificações dos objetos a serem contratados por ela de maneira contrária às políticas públicas estatais. Este é o espaço mais apropriado e eficaz para utilizar a licitação como instrumento para a promoção das políticas públicas.

Por exemplo, a Administração pretende comprar veículos automotores. Que ela exija dos licitantes veículos com características adequadas ao meio ambiente, que, dentre outras coisas, consumam menos combustível. A Administração pretende contratar a construção de um prédio público. Que ela especifique o prédio de modo a garantir acessibilidade aos deficientes físicos, economize energia e empregue materiais ambientalmente adequados.

Em terceiro lugar, a licitação não é a panaceia das políticas públicas e do desenvolvimento nacional sustentável. O Estado dispõe de muitos instrumentos para realizar as políticas públicas mais eficientes e eficazes que a licitação pública. A licitação pode ser utilizada como instrumento de política pública a depender da situação, porém não é o instrumento mais adequado porque, na maioria dos casos, a licitação é incapaz, não consegue. Há casos e casos, cada qual com a sua peculiaridade. No entanto, de maneira geral, percebe-se claramente que não é com licitação que as políticas públicas alcançarão os resultados que lhe são esperados.

O melhor exemplo é o das preferências instituídas em favor da indústria brasileira por meio da Lei nº 12.349/10, que alterou os parágrafos do art. 3º da Lei nº 8.666/93, fazendo com que a Administração arque com preço até 25% superior ao valor proposto por estrangeiros. A política pública é o desenvolvimento econômico e a proteção à indústria nacional. Resultado: recessão! Esta margem de preferência em favor dos nacionais não contribuiu em nada para a satisfação das políticas públicas por ela visada, porque, pura e simplesmente, ela é incapaz de contribuir.

E pior, muitas vezes as políticas públicas são consagradas em licitação como argumento discursivo para justificar a inação do Estado em relação ao que realmente precisa ser feito. O Estado sufoca a indústria nacional com uma carga tributária tresloucada, porém concede vantagens em licitações. O Estado deixa milhares de crianças à própria sorte, porém não contrata com quem desavergonhadamente declara que as emprega.

Por último, convém refutar argumento recorrente nos debates sobre o assunto. Os defensores da atual utilização desenfreada e sem critério das licitações para a promoção de políticas públicas argumentam que outros países fazem o mesmo, na maior parte das vezes citam os Estados Unidos. Pura e simplesmente, é errado comparar dois sistemas jurídicos tão diferentes, o dos Estados Unidos e o do Brasil, sem maiores anteparos. Com a mesma toada, sem qualquer sentimento anti-americano, nem tudo que faz bem aos Estados Unidos faz bem ao Brasil. Que as licitações estrangeiras sejam estudadas, porém é preciso refletir e ponderar sobre elas, nem sempre servirão ao Brasil.



Por Joel de Menezes Niebuhr (SC)

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