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O livro jurídico morre no final

ANO 2016 NUM 185
José Vicente Santos de Mendonça (RJ)
Doutor em Direito Público (UERJ). Professor adjunto de Direito Administrativo da UERJ. Professor da Universidade Veiga de Almeida (RJ).


10/06/2016 | 7608 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

I - Introdução.

A essa altura isso não será novidade, mas deixe-me dizê-lo com todas as letras: os livros jurídicos acabaram. Eles estão mortos, eles estão enterrados. Ainda há alguns por aí, mas são livros-zumbis, vendidos em livrarias-zumbis; assim como as polainas, a cor fúcsia e a virgindade, eles simplesmente não vivem mais para o momento presente.

Para que serviam os livros jurídicos? Quais as vantagens e desvantagens de seu fim? Para onde vamos? São as perguntas que este texto se propõe a explorar.

II - Para que serviam os livros jurídicos?

Para os escritórios - aqui, incluo todos os operadores do direito -, os livros jurídicos cumpriam três funções. Um papel epistêmico; um de divulgação; um papel simbólico.

Em seu papel epistêmico, os livros jurídicos serviam para consultas pontuais, que precediam à utilização em petições. Serviam para consultas mais extensas, para uso em pareceres. E para uma leitura aprofundada, que servisse à elaboração de artigo ou de outro livro.

Mas havia um uso de divulgação. O que fazem os doutos?, eles doutrinam, e é importante que sejam notados ao fazê-lo. Daí que era estratégico a produção de livros: são objetos percebidos como a quintessência do conhecimento. Um cliente pode não entender de índice Qualis, mas reconhece quando seu advogado enfileira vários livros.

Um terceiro uso, associado a como as profissões jurídicas querem ser percebidas na sociedade, é o uso simbólico. Aqui, o livro não importa por seu conteúdo, mas por sua exteriorização; é o objeto livro, que, exibido nas prateleiras da sala de reunião, compõe a imagem do douto. O livro jurídico, por este uso, é a contraparte literária da balancinha e da estátua de Têmis. É o fetiche do jurista fetichizando o livro.    

Já professores fizeram e fazem uso do livro jurídico em duas formas. Como veículo de produção científica e como divulgação. O conhecimento jurídico valer-se-ia de obras monográficas ou de coletâneas para ser produzido e divulgado. Com os livros, consolidam suas reputações; dão motivo para serem vistos; criam pretextos para seminários.

Alunos também se apropriaram dos livros jurídicos por três razões: para passar nas provas; para elaborar monografias; e, formados, para obter aprovação em concursos públicos, ou fazer, deles, uso profissional (v. acima).

III - Quem matou o livro jurídico?

Quem matou foi a internet. Quem vilipendiou o cadáver foi a CAPES. Explica-se.

Para uso profissional, é mais simples e barato obter acesso a fragmentos de conteúdo acessando o Google. O papel de divulgação fica prejudicado, mas isso pode ser neutralizado com o patrocínio de baixas tiragens. E a finalidade exibicionista se resolve, ou numa ida ao sebo, ou comprando-se capas nas lojas que se prestam a esse peculiar mercado.

Professores já não têm estímulos para a publicação de livros físicos. Em primeiro lugar, porque não vendem tanto, e eles têm que se prestar a serem autores e compradores. Em 2016, editoras jurídicas deixaram de vender livros a leitores; passaram a vendê-los a autores. Além disso, ao menos para professores com algum pé na pós-graduação, porque escrever livros é ineficiente: os critérios da CAPES pontuam, proporcionalmente, melhor artigos do que livros.

E, para os alunos, bem, há amplo mercado de pirataria online. Aliás, para provas sempre foi mais eficiente estudar o caderno do que o livro. (Se bem que não existem mais cadernos; agora, existem apostilas com degravações.) Para concurso, há milhares de grupos - pelo Facebook, pelo WhatsApp -, trocando figurinhas literárias. Para uso profissional, a internet sempre está à mão. 

Sobrou muito pouco do outrora florescente mercado dos livros jurídicos. Hoje, ele é um quadrilátero composto pelos manuais, que se aguentam sabe-se lá como; pelas dissertações e teses, que, publicadas, tornam-se, em muitos casos, brindes profissionais; pelas coletâneas em homenagem a alguém; e pelas coletâneas caça-pontos visando à CAPES.

O mercado dos livros jurídicos, com tiragens cada vez menores, - e, então, preços cada vez maiores -, tende a virar nicho. A reedição em vinil 180 gramas; a cerveja IPA com toques de cumaru; o piano Fender Rhodes; o livro do Caio Mário.

IV - Vantagens e desvantagens do fim do livro jurídico.

Há aspectos positivos e negativos que decorrem do fim do livro jurídico. Há, desde logo, três vantagens: (i) certo ganho na inexistência de gatekeepers; (ii) possível redução no nível de personalismo do direito; e (iii) ganhos ambientais.

(i) Editoras jurídicas nem sempre foram as melhores curadoras de conteúdo. Ora, se todo mundo pode se auto-publicar na internet, o controle deixa de existir. Não ter nenhum critério é mais republicano do que qualquer outro. O graduando, que, outrora, jamais teria acesso a uma editora para publicar sua monografia, hoje pode dispensá-la. E isso é bom.

(ii) É de se imaginar que, se os livros jurídicos físicos perdem a aura, e se tornam, em boa parte, cartões de visita, o personalismo associado à figura do "autor jurídico" -  espelho do personalismo do direito - seja reduzido. O autor é menos um ser especial do que alguém que se dispõe a pagar dez mil para que outro alguém imprima e publique sequencialmente seu texto.       

(iii) Sem falar nos ganhos ambientais. Espaço é caro. Papel é caro e antiecológico. Se os livros jurídicos cabem num pendrive, sobra mais espaço; preservam-se árvores.

Mas nem tudo são flores, ou, aqui, pés de eucalipto. Há problemas com o fim do objeto livro jurídico. Eis alguns.

(i)  Nem sempre os curadores de conteúdo eram ruins. Editoras eram gatekeepers, mas, por vezes, os critérios podiam ser bons. As próprias faculdades, com suas panelinhas junto às editoras, por vezes constituíam panelinhas meritocráticas. Se a auto-publicação ou a publicação paga é a regra no novo mercado, passa a haver certo caos logorraico. Novos autores têm a liberdade de se auto-publicar, mas não contam com a presunção de relevância associada aos filtros tradicionais.

(ii) A retenção da leitura na tela é menor. Se pensarmos que, hoje, o livro jurídico é um arquivo a ser lido numa tela de computador, é de se cogitar que a retenção de seu conteúdo seja menos intensa.

(iii) Certo desestímulo à constituição de obras com pretensão de permanência. A velocidade, associada à mudança das tecnologias, pode causar redução da importância quanto ao que se está lendo ou escrevendo. Restrição gera foco. Tenho alunos capazes de encontrar dezenas de referências bibliográficas em segundos na internet. Saber se teriam a autodisciplina para lê-las é outro papo. Aconteceu o mesmo com a música: quando havia álbuns, havia conceitos. Sgt. Pepper's não teria condições de existir no Spotify. Se tudo que se escreve é fruto de um longo presente, nada pode ser para ontem - mas também nada pode pretender ficar para o amanhã.

Sem falar em questões bem práticas. Quem sabe qual é o padrão de citação num e-reader? Quem garante que ele vai se manter o mesmo em cinquenta anos? A tecnologia do livro físico foi aprovada no tempo. Mas você não consegue sequer abrir um arquivo redigido num Word de quinze anos atrás.

Um último ponto. O fim do objeto livro jurídico é, em boa parte, o fim das livrarias jurídicas. Livrarias viraram espaço cênico para vender café. Ao procurarmos um texto jurídico na internet, ficamos presos àquilo que queremos achar, àquilo que achamos que queríamos achar, àquilo que pessoas parecidas acharam. Não há a aleatoriedade dos encontros físicos com livros físicos em livrarias físicas. O algoritmo dos buscadores e das livrarias virtuais é ótimo; o algoritmo é super-refinado; o algoritmo é a quintessente de um laboratório o algoritmo é ferotriste o algoritmo é cheio de rocamboles; mas o algoritmo não nos liberta de nós.

VI - E agora?

Então o objeto livro jurídico deixou de ter importância. E agora?

Há questões técnicas que não competem ao mundo do direito. Por exemplo: há que se investir na tecnologia das fontes passivas de iluminação; no e-ink; na consolidação de um padrão mundial de citações. Mas há pontos em que podemos agir.

Em primeiro lugar: aceitar a mudança. Livros jurídicos viraram brindes. Talvez o caminho economicamente viável seja investir em edições especiais, comentadas, com capa dura. Radicalizar o fetichismo/radicalizar o aprofundamento. Um caminho Radiohead: ou de graça, ou bem caro, mas valendo o preço. A contraforça da comoditização é a assunção do nicho.

Um segundo ponto: consolidar mecanismos autorregulatórios, para o direito, que prestem garantia de relevância ao que está sendo escrito. É bom observar que likes e comentários na internet não são garantia de qualidade, pois têm o efeito de gerar textos gritões; também é essencial que os conteúdos escapem às biografias e às paróquias, males eternos do nosso direito.  

Terceiro ponto: fomentar o deep reading. Fazer com que os alunos leiam textos jurídicos não da forma como se ouve música em 2016 - em cinco segundos, se não vier o refrão, parte-se para outra -, mas de modo atento. Talvez sugerir que se leia menos, mas com mais atenção.   

Finalmente: é importante garantir a sobrevivência de algumas livrarias jurídicas. Espaços não de resistência, mas de espanto com um mundo que nos escapa, e aos algoritmos que nos sugerem, e ao nosso próprio longo presente.



Por José Vicente Santos de Mendonça (RJ)

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