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Agentes Públicos de Linha de Frente: a ponta criadora do Direito Administrativo

ANO 2016 NUM 113
Juliana Palma (SP)
Doutora e Mestre pela Faculdade de Direito da USP. Master of Laws pela Yale Law School. Professora da FGV Direito SP - GVLaw, da Faculdade de Direito da USJT e da SBDP. Pesquisadora.


19/03/2016 | 7229 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Agentes públicos impactam a vida dos cidadãos. Quando implementam políticas públicas, esses agentes são conhecidos como burocracia de nível das ruas, ou burocracia de linha de frente, em alusão à obra Street-Level Bureaucracy na qual Michael Lipsky consagrou a expressão street-level bureaucracy (SLB). Acredito que as expressões agentes públicos da rua e agentes públicos de linha de frente sejam mais precisas em termos de classificação jurídica e que melhor exprimem a ideia adjacente a SLB.

São os agentes públicos da rua que decidem se um indivíduo tem direito a determinado serviço ou benefício público. Os agentes do INSS define se o interessado encontra-se apto a gozar do benefício da aposentadoria, bem como o valor mensal correspondente. Os gestores do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome selecionam mensalmente, a partir do cadastro único para programas sociais do governo federal, as famílias que passarão a participar do programa Bolsa Família. Agentes comunitários de saúde sensibilizam os cidadãos sobre a relevância do combate à dengue e realizam as medidas preventivas necessárias, inclusive por meio de vistorias domiciliares. Agentes do Conselho Tutelar definem o destino de uma criança: se junto ao seu núcleo familiar original ou em um centro de acolhimento. Também determinam se um cidadão se encontra habilitado, ou não, para trafegar em vias públicas e receber a carteira nacional de habilitação. Os exemplos se avolumam na medida em que constatamos o quão presente é o Poder Público na vida em sociedade.

São os agentes públicos da rua importante ator, fundamental para o sucesso das políticas públicas, mas que permanece oculto na teoria do Direito Administrativo. Pelo corte dos servidores públicos, eles são categorizados como agentes públicos na medida em que estabelecem algum vínculo profissional com o Poder Público. Esta, porém, é uma classificação meramente formal, incapaz de representar toda a complexidade em torno do exercício de competências administrativas pelos agentes públicos de linha de frente. Já pela temática dos atos administrativos, os agentes públicos da rua seriam ora a autoridade competente, ora os responsáveis pelos denominados atos concretos, ou atos de execução material, como o magistério de uma aula em rede pública de ensino ou a realização de intervenção cirúrgica em hospital público. Pergunto-me se, de fato, essas atividades são tão mecânicas a ponto de qualificá-las como atos meramente materiais, a mais fidedigna tradução do Poder Público como braço mecânico.

Um professor de geografia da rede paulista de ensino, que lecione na 1ª série do Ensino Médio, deve cobrir no 1º bimestre “as projeções cartográficas” segundo a Proposta Curricular do Estado de São Paulo. Para preparar esta aula, espera-se que o professor interprete o tópico a fim de delimitar o conteúdo a ser transmitido aos alunos. Deverá ensinar escala geográfica? Deverá ensinar mapa topográfico? Definido o conteúdo, o professor estipula o tempo que destinará ao assunto, considerando que, ainda no 1º bimestre, ele precisa cobrir outros três tópicos. Quantas aulas irá destinar à cartografia? As aulas serão meramente introdutórias ou caberá algum grau de aprofundamento, considerando que esta é uma turma situada no Município de São Sebastião, litoral de São Paulo, e a cartografia faz parte do trabalho rotineiro de significativa parcela da comunidade que atua na área de turismo? O professor ainda precisa definir como o conteúdo será apresentado. Poderá optar por aulas expositivas ou dialogadas, como o método socrático ou aprendizado por meio de problemas. Neste caso, o aluno será o grande protagonista na sala de aula, o que contribui para o desenvolvimentode diversas habilidades de manifestação oral e aplicação concreta de conceitos abstratos. Essas habilidades não são trabalhadas em aulas expositivas. Pode-se, ainda, cogitar a realização de exercícios práticos, em que o aluno deva colorir uma carta de acordo com a escala, ou fazer uso de novas tecnologias, ensinando como manusear um programa de computador sobre cartografia. Ou o conteúdo terá papel secundário, pois a proposta pedagógica desse professor é exatamente desenvolver as competências de leitura e de escrita.

Em resumo, o modo de prestação de serviço social pode variar significativamente. De acordo com a linha de pensamento do professor e sua qualificação profissional, o meio no qual a atividade é desenvolvida e os objetivos que se pretenda alcançar, diferentes conteúdos e habilidades são desenvolvidos. O sucesso ou o fracasso da política educacional também passa pelo agente público de linha de frente, o qual toma decisões de modelagem da política pública ao implementar as decisões tomadas no escalão superior. Esta é uma dinâmica que o Direito Administrativo não pode desconsiderar se ainda tiver por objetivo promover aqueles valores públicos que o alçaram a ramo autônomo do Direito Público, notadamente a garantia de direitos dos particulares perante a Administração Pública. Dizer que as manifestações dos agentes públicos da rua são destituídas de caráter prescritivo e se configuram como meras ações concretas é incorrer em uma falácia ilusionista de como o Direito Administrativo de fato funciona. Torna míope o debate e afasta o Direito Administrativo da liderança nas reflexões sobre a burocracia política.

Assim, não creio que a pergunta adequada seja se os agentes públicos de linha de frente editam, ou não, atos administrativos. Em um cenário de processualização da atividade administrativa, saber se agentes públicos de linha de frente praticam atos administrativos torna-se secundário. A clássica teoria dos atos administrativos de conformação oitocentista, desenvolvida antes da expansão do Direito Administrativo com a função pública distributiva, não permite lidar com os desafios que a moderna gestão pública coloca. A questão dos agentes públicos da rua na implementação de políticas públicas é um desses desafios. Acredito que o debate necessário hoje seja com relação à fragmentação da esfera decisória pública. Não se trata de reviver a teoria dos atos administrativos complexos, mas reconhecer que a decisão administrativa tomada pela autoridade competente não é inteiramente conformada pelo alto escalão da burocracia. A discricionariedade desta decisão não se exaure com a autoridade competente, mas acompanha toda sua execução, admitindo-se modelagens específicas. E quem realiza a sucessiva especificação da decisão administrativa? Os agentes públicos de linha de frente. Se separarmos os juízes e promotores, que Lipsky reconhece pertencerem à categoria de SLB, teríamos os agentes públicos da rua e os controladores.

Em uma de suas incursões sobre a processualização da atividade administrativa, Sabino Cassese caracterizou a ação administrativa centrada no ato administrativo como one shot. Segundo o autor, esta seria melhor compreendida como um processo, cuja decisão não é tomada em uma única oportunidade, mas desenvolvida no curso do processo administrativo. A literatura de SLB se solidariza com essa visão. Contudo, acredito ir além. Ato ou processo, pouca atenção se tem dado ao processo de execução das decisões administrativas, como se a tomada de decisão fosse o término da função administrativa. Tão ou mais importante que a fase prévia à decisão da autoridade competente é a execução desta mesma decisão, geralmente pelas mãos dos agentes públicos de linha de frente. Quando se reconhece todo o ciclo da atividade administrativa – da definição da agenda pública até o desmantelamento do ato administrativo – SLB e controladores passam a ter o seu papel na construção do Direito Administrativo considerado. Talvez seja impactante a realidade de que os agentes públicos de linha de frente decidem e são os grandes formuladores das políticas públicas no Brasil.

Mas não apenas o componente subjetivo dos agentes públicos de linha de frente interage na formulação de políticas públicas. Igualmente relevante é a condição de trabalho desses funcionários. Na prática, importa ressaltar as características materiais da Administração Pública que, no caso brasileiro, culminam no alto índice de conflitos envolvendo a Administração e recorrentemente forçam os agentes públicos da rua a tomarem decisões trágicas. Lipsky aponta que o ambiente da SLB é moldado por cinco aspectos fundamentais: (1) os recursos – escassos – tendem a ser cronicamente inadequados para pleno exercício das funções públicas; (2) a demanda por serviços invariavelmente aumenta ao menos até encontrar o limite da oferta; (3) as finalidades da ação administrativa, ou seus objetivos, tendem a ser ambíguos, vagos ou conflitantes; (4) a performance dos agentes públicos para satisfazer as finalidades públicas são difíceis, senão impossíveis, de serem mensuradas; e (5) os “clientes” do Poder Público são tipicamente involuntários.

Em conjunto, essas características determinam um modelo de ação administrativa (padrões de prática) que desafia as garantias mais fundamentais dos administrados frente ao Poder Público. Sem a pretensão de esgotar todas essas práticas, até mesmo porque esta tarefa demanda investigações empíricas por meio de estudos de caso, vale enfatizar alguns efeitos da ação administrativa mais corriqueira aos cidadãos que recorrentemente passam às escuras da teoria do direito administrativo.

Ainda que bem intencionados, a alta demanda determina o estabelecimento de rotinas e simplificações para que os agentes públicos da rua sejam capazes de lidar com situações complexas, que idealmente demandariam uma análise mais sofisticada e cautelosa. Tais rotinas e simplificações podem comprometer a qualidade prestacional e ser enviezadas, impactando diretamente sobre o modo de interação entre Administração e particulares. Outra prática corresponde à racionalização dos serviços sociais, com o escopo de controlar o fluxo de trabalho e, assim, estabelecer o total de benefícios públicos que efetivamente serão ofertados. Aqui não está em jogo a justiça ou o direito do particular ao serviço ou benefício público. Na medida em que os recursos são escassos e a demanda por eles é inexoravelmente elevada, racionaliza-se a prestação dos serviços para que apenas aqueles “realmente interessados” consigam acessá-los. Os obstáculos são diversos: oneração do processo, ainda que o serviço seja gratuito, pela exigência de que os particulares providenciem documentos que incorram em custos ou que compareçam perante a repartição pública, geralmente comprometendo o dia de trabalho; retenção de informação para que os particulares não transitem com maior solidez pelos meandros da burocracia pública; imposição de custos psicológicos por meio de demoras públicas propositais, especialmente em filas, listas e cadastros.

Há muitos ganhos em adotar uma visão realista no estudo do Direito Administrativo. O ganho mais evidente corresponde ao endereçamento de problemas concretos que impedem a plena satisfação da promessa distributiva constitucionalde modo equânime e racional. É preciso trazer o debate sobre agentes públicos de linha de frente para o centro do Direito Administrativo, um dos focos da linha de pesquisa Direito & Burocracia que perfilho. Igualmente relevante é considerar o ambiente institucional e orçamentário no qual as decisões administrativa são tomadas e implementadas. Em um momento em que processo administrativo e políticas públicas despontam como grandes eixos de construção teórica do Direito Administrativo contemporâneo, esta me parece ser uma temática necessária.



Por Juliana Palma (SP)

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