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Legislação Administrativa: o desserviço decorrente do uso inadequado das medidas provisórias

ANO 2016 NUM 127
Leandro Bortoleto (SP)
Mestre e bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Coordenador e professor de Direito Administrativo no curso de especialização em Direito Público da Escola Superior de Direito - ESD/Ribeirão Preto. Professor de Direito Administrativo no curso de pós-graduação em Direito da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP/Ribeirão Preto, no curso de especialização em Direito Público e na graduação no Centro Universitário Estácio Uniseb. Autor de obras de Direito Administrativo. Analista Judiciário na Justiça Federal.


01/04/2016 | 4778 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Impressiona, ao observar a produção legislativa de 2015 e do início de 2016, a quantidade de alterações e inovações na legislação administrativa.

Para ilustrar, podem ser destacadas: a) a Emenda Constitucional nº 88/15, que fez modificação na idade para aposentadoria compulsória; b) a Lei Complementar 152/15, que regulamentou o art. 40, no que diz respeito à aposentadoria compulsória; c) a Lei 13.243/16, que modificou a Lei nº 8.666/93 para tratar das contratações de produtos para pesquisa e desenvolvimento; d) a Lei nº 13.204/15, que alterou o marco regulatório do terceiro setor (Lei nº 13.019/14) e, também, modificou a Lei nº 8.429/92; e) a Lei nº 13.190/15, que incluiu novas hipóteses de utilização do Regime Diferenciado de Contratações e fez outras alterações na Lei nº 12.462/11; f) a Lei nº 13.173/15, que promoveu alterações na Lei nº 11.079/04 (PPP); g) a Lei nº 13.172/15, que alterou a Lei nº 8.112/90 para dispor sobre o limite na consignação em folha de pagamento feita pelo servidor público federal; h) a Lei nº 13.146/15, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, que alterou a Lei nº 8.666/93 para instituir novo critério de desempate nas licitações, bem como nova hipótese de margem de preferência e, ainda, tratou da execução do contrato administrativo; i) a Lei nº 13.140/15, que “dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública”; j) a Lei nº 13.135/15, que mudou a Lei nº 8.112/90, para novo tratamento à pensão por morte devida aos dependentes do servidor público federal; k) a Lei nº 13.129/15, que alterou a Lei nº 9.307/96 para permitir de forma ampla o uso da arbitragem pela Administração Pública; l) a Lei nº 13.105/15, que institui o Novo Código de Processo Civil e revoga dispositivo do Decreto-Lei nº 25/67 sobre o direito de preferência na alienação de bem tombado, bem como dispõe de vários outros temas pertinentes à Administração Pública; m) a Medida Provisória nº 703/15, que alterou a Lei Anticorrupção e revogou dispositivo da Lei de Improbidade; n) a Medida Provisória nº 700/15, que fez várias alterações na Lei de Desapropriações.

Ao analisar esses atos normativos, além do conteúdo substancial próprio de cada um, é possível identificar uma característica formal comum a alguns deles: a origem em uma medida provisória.

Nesse sentido, podem ser apontadas as Leis nºs 13.190, 13.173, 13.172 e 13.135, além, obviamente, das Medidas Provisórias nº 700 e 703, que ainda estão em tramitação. Aliás, no ano de 2015 foram editadas quarenta e três medidas provisórias (MP 667 a MP 709) e, curiosamente, a maior incidência delas ocorreu nos meses de julho, com a edição de sete, e de dezembro, quando surgiram dez medidas provisórias.

O exercício atípico da atividade legislativa pelo Chefe do Executivo já existia na figura do Decreto-Lei, nos termos do art. 58 da Constituição brasileira de 1967, que o admitia nos casos de urgência ou de interesse público relevante, cuja inspiração foi o decreto-legge italiano, nos moldes contidos no art. 77 da Constituição italiana de 1947. Entretanto, o parágrafo único do art. 58 previa que se o Congresso Nacional não deliberasse a seu respeito no prazo de sessenta dias, o texto era tido como aprovado e, por sua vez, o texto legal italiano estabelece que a admissão da expedição de decreto com força de lei em situações excepcionais de necessidade e urgência e, ao contrário do modelo anterior brasileiro, perde a eficácia caso não convertido em lei pela casa legislativa.

Com a promulgação da Constituição de 1988, o modelo brasileiro aproximou-se muito do italiano. Surgiu a medida provisória, admitindo-se a sua expedição pelo Presidente da República, com força de lei, em caso de relevância e urgência. Posteriormente, houve o seu aperfeiçoamento por força da EC 32/01.

Inclusive, a mencionada emenda contém em seu art. 2º um dos maiores absurdos legislativos pátrios, pois estabeleceu que as “medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional”. Quer dizer, transformou, na prática, inúmeros provimentos normativos provisórios – feitos pelo Chefe do Executivo, sem a participação do Poder Legislativo – em definitivos.

Para que uma medida provisória possa ser considerada constitucional, são requisitos inarredáveis para sua expedição a urgência e a relevância e, ainda, devem ser observadas as vedações e demais disposições constantes do art. 62 da Constituição. Uma vez expedida, deve ser submetida, imediatamente, ao Congresso Nacional e perderá eficácia, desde a edição, caso não seja convertida em lei no prazo de sessenta dias, podendo ser prorrogado, uma vez, por mais sessenta dias.

Ademais, é sempre importante lembrar que a medida provisória é medida excepcional e somente deve ser usada quando, de fato, haja urgência e, também, esteja presente o interesse público. Caso contrário, a exceção torna-se regra.

Pois bem, assim deveria ser.

Além da quantidade excessiva de provimentos normativos emergenciais, nota-se, em vários deles, total desprezo pelo texto constitucional quanto a sua expedição.

De maneira específica, no que se refere à legislação administrativa e atendo-se às recentes alterações legais mencionadas anteriormente, pode-se confirmar a afirmação feita com alguns exemplos.

A Medida Provisória nº 678, de 23/6/15, criou duas novas hipóteses de aplicação para o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), com a inclusão dos incisos VI e VII ao art. 1º da Lei nº 12.462/11. Com isso o RDC passou, desde 24/6/15, a ser admitido para as obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo e para as ações no âmbito da Segurança Pública. Todavia, quando da tramitação no Congresso, a mencionada MP foi aprovada com diversas emendas de assuntos diversos, originando a Lei nº 13.190/15. Além dos incisos VI e VII, foram acrescidos os incisos VIII e IX e o §3º ao art. 1º, o § 5º ao art. 9º e, ainda, houve a inclusão dos artigos 44-A e 47-A. Mas, o Ministro Barroso, no MS 33.889, em decisão datada de 19/11/15, concedeu liminar “para suspender o trâmite do Projeto de Lei de Conversão nº 17/2015, exceto naquilo que corresponde ao acréscimo dos incisos VI e VII ao art. 1º da Lei nº 12.462/2012 [sic]. Caso sancionado o projeto em pontos diversos daqueles excepcionados acima, fica a eficácia de tais dispositivos suspensa até posterior deliberação”. Em 20/11/15, foi publicada a Lei nº 13.190/15.

Há urgência em dispor sobre novas hipóteses permissivas do uso do RDC?

Nenhuma. Perceba-se, no entanto, que, infelizmente, o provimento jurisdicional foi proferido em razão da prática de se incluir temas estranhos à proposta original, quando da tramitação da MP no Congresso, e não em face da ausência dos pressupostos constitucionais para a sua expedição. 

Também, pode ser trazida à baila a Medida Provisória nº 703, de 18/12/15, que promoveu diversas alterações na conhecida Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13), no que diz respeito ao acordo de leniência e as consequências de sua celebração, dentre outras mudanças.

 Destaca-se, para ilustrar, a inclusão, por força da mencionada MP, dos §§ 11 e 12 ao art. 16 dessa lei, pois, respectivamente, estabelecem que o “acordo de leniência celebrado com a participação das respectivas Advocacias Públicas impede que os entes celebrantes ajuizem ou prossigam com as ações de que tratam o art. 19 desta Lei e o art. 17 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, ou de ações de natureza civil” e que o “acordo de leniência celebrado com a participação da Advocacia Pública e em conjunto com o Ministério Público impede o ajuizamento ou o prosseguimento da ação já ajuizada por qualquer dos legitimados às ações mencionadas no § 11”.

Houve a criação de causa impeditiva de ajuizamento de ação judicial. A MP dispôs sobre direito processual civil. No mesmo sentido, ainda, a MP 703/15 revogou o §1º do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa, extinguindo a vedação à celebração de transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade. Novamente, a MP dispôs sobre direito processual civil.

Além da clara ausência de urgência dos temas, houve afronta a vedação expressa contida no art. 62, §1º, I, “b”, da Constituição Federal. Não pode ser editada medida provisória que disponha sobre direito processual civil.

Outro exemplo é a Medida Provisória nº 700, de 8/12/15, que fez várias alterações no Decreto-Lei nº 3.365/41.

Dentre as diversas modificações, pode ser destacada a inclusão do art. 15-A. Praticamente, houve a repetição de dispositivo que fora declarado inconstitucional pelo STF, na ADI 2332/DF, sobre a base de cálculo para a incidência dos juros compensatórios e, ainda, houve a exclusão dos juros em relação à desapropriação para fins urbanísticos e à desapropriação para fins de reforma agrária, dispondo de forma contrária ao texto constitucional.

Ainda quanto a MP 700/15, ao incluir o §6º ao art. 5º do Decreto-Lei nº 3.365/41, na contramão da doutrina sedimentada há bastante tempo, pretendeu transformar em lícita - e, assim, tornar inadmissível o direito à retrocessão – a conhecida tredestinação ilícita, ao admitir que, se ficar comprovada a inviabilidade ou a perda de interesse público em manter a destinação do bem objeto da desapropriação nos termos previstos no decreto expropriatório, o expropriante adotará as seguintes providências (em ordem de preferência): a) destinar a área não utilizada para outra finalidade pública; ou b) alienar o bem a qualquer interessado, na forma prevista em lei, assegurado o direito de preferência à pessoa física ou jurídica desapropriada.

Disso, surge de maneira inquieta a questão: o que há de urgência em se modificar texto legal em vigor há setenta anos?

Nada. Chega a ser absurdo.

Por outro lado, é inevitável contestar a presença do requisito de relevância nessa MP. A relevância deve ser compreendida em relação ao interesse público. Nesse sentido, pode-se afirmar que é relevante, que atende ao interesse público, tolher o direito à propriedade de alguém sob a pecha de que será em prol da comunidade e, depois, simplesmente resolver vender o imóvel, concedendo-se a “benesse” do proprietário recomprá-lo?

Não. Na verdade, privilegia-se o interesse exclusivamente da pessoa jurídica expropriante, e não o interesse público consubstanciado na Constituição Federal, em sacrifício de um direito fundamental.

Enfim, esses são, apenas, alguns exemplos do uso inadequado das medidas provisórias, em especial no que tange à legislação administrativa.

Não se discute a necessidade do surgimento de textos legais para dispor sobre vários institutos de Direito Administrativo, seja para delimitá-los melhor, seja para tratar de novas realidades e, inclusive, que possa, de fato, ser necessário, eventualmente, o uso de medida provisória para tanto. Todavia, a forma atabalhoada pela qual isso vem sendo feito acaba, infelizmente, até por ofuscar a real necessidade do tratamento legal do tema.

As alterações na legislação administrativa devem ser feitas de maneira a se considerar o regime jurídico-administrativo como um todo, para que isso ocorra de forma harmoniosa. E, mais, deve ser respeitado o regular procedimento legislativo, com a discussão pausada dos temas e, naqueles mais sensíveis, com a realização de audiências públicas para legitimar socialmente a inovação legislativa.

O uso de medida provisória – em situação na qual não estejam presentes os pressupostos constitucionais – para dispor sobre institutos jurídicos desenvolvidos por meio de substancial construção doutrinária e jurisprudencial, como é o caso dos institutos jurídico-administrativos, em nada contribui para o aprimoramento do Direito Administrativo e, na verdade, configura-se um verdadeiro desserviço. 



Por Leandro Bortoleto (SP)

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