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"Too big to block"? Whatsapp e estratégias regulatórias

ANO 2016 NUM 227
Leonardo Coelho Ribeiro (RJ)
Mestre em Direito Público pela UERJ. Especialista em litígios e soluções alternativas de conflitos pela FGV Direito Rio (LL.M Litigation). Coordenador técnico do LL.M em Direito da Infraestrutura e do Curso de Regulação da Infraestrutura e dos Recursos Naturais no Ibmec/RJ. Professor de Cursos de Pós-Graduação em Direito Administrativo. Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/RJ, IAB e IDAERJ. Advogado.


04/08/2016 | 3939 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Em geral, há ao menos dois motivos peculiares por força dos quais inovações disruptivas desafiam o Direito: (i) elas costumam se pôr em pontos cegos dos regimes jurídicos existentes, incorrendo em menos custos e, dessa forma, potencialmente dispondo de uma vantagem competitiva em relação aos agentes econômicos já estabelecidos no mercado, a fim de alcançarem resultados econômicos positivos mais rápidos e significativos; e (ii) valendo-se principalmente das plataformas digitais e de meios de comunicação como a internet, avançam de maneira a expandir exponencialmente suas atividades com rapidez, a fim de se tornarem ‘grandes demais para serem banidas’ (too big to ban).

O WhatsApp, aplicativo de comunicação que permite troca de mensagens instantâneas por smartphones, ilustra bem o ponto. Criado originalmente com foco na troca de mensagens escritas, além de contemplar a transferência de mensagens multimídia, passou a possibilitar a realização de chamadas de voz; tudo isso amparado em rede de dados provida por operadoras de telefonia móvel, e valendo-se do número de telefone celular do usuário. O serviço cresceu de forma colossal desde sua implantação. Para que se tenha a dimensão, no início de 2016, alcançou a marca de mais de 1 bilhão de usuários ativos.

Autodenominando-se uma empresa de internet, sediada fora do país, a disciplina jurídica das autorizatárias de serviços de telefonia móvel pessoal, imposta por lei e pela ANATEL, não seria claramente incidente sobre o WhatsApp, a quem não pesariam os ônus regulatórios setoriais da categoria, como tributos, taxas regulatórias, e demais parâmetros de operação. Não bastasse isso, a situação gera um fundo impasse com as operadoras de telefonia, que acusam o WhatsApp de desviar suas principais receitas mediante serviço de comunicação por chamadas de voz, por conta de um dado a mais: até então, o aplicativo não cobra seus usuários, nem tampouco apresenta qualquer outra fonte de receita.

Ou seja: a um só tempo o WhatsApp se instalou em um ponto cego para os regimes jurídicos atuais, impactando agentes econômicos estabelecidos no segmento, e se tornou um gigantesco provedor de serviços gratuitos a seus usuários. A fidelização foi tamanha que, por mais de um evento, nos quais magistrados singulares suspenderam as atividades do app em toda a cobertura nacional, a fim de punirem a empresa por não atender a determinações judiciais em processos específicos, a medida restritiva gerou verdadeira comoção social, e um efeito rebote de seus usuários contra a atuação de 1ª instância do Poder Judiciário, automaticamente rotulada por arbitrária. Em decisão mais recente, o próprio Ministro Presidente do STF, com base no poder geral de cautela, deferiu liminar de modo a reestabelecer imediatamente o serviço de mensagens do aplicativo WhatsApp (STF, ADPF nº 403/2016).  

Não se discute aqui o cabimento e a correção das medidas judiciais adotadas. Interessa, em especial, o que a comoção social causada pela suspensão do aplicativo indica: o WhatsApp possivelmente se tornou ‘too big to ban’; ou, na versão brasileira, ao menos ‘too big to block’.

Eventos e repercussões semelhantes acontecem, com suas devidas nuances, nos casos envolvendo Uber, Airbnb, Netflix, Spotify, representantes mais notáveis de um sem número de exemplares da inovação disruptiva que permitem alugar carros ou bicicletas de vizinhos, compartilhar internet wi-fi com terceiros, contratar pessoas para tarefas pontuais etc. Partindo de bases virtuais, são soluções que operam em terreno concreto, promovendo serviços e trocas no mundo dos fatos que geram disputa, provocando o Direito a exercer seu papel de equalizador das relações sociais.

Com efeito, é então que a importância da função administrativa vem à tona, de modo a ser empregada para efetivar interesses públicos específicos, por meio da proteção e promoção de direitos fundamentais. E isso se faz, via de regra, encontrando as ferramentas, ou combinação delas, que se revelem melhor habilitadas a gerarem os incentivos mais adequados para se alcançar as finalidades socialmente pretendidas.

Ora bem, as finalidades pretendidas irão variar caso a caso, o que igualmente demandará modelos diferentes de resposta. De toda forma, é possível generalizar que, em todos esses casos, o objetivo final estará na busca de um ponto ótimo entre os interesses envolvidos, por vias capazes de amortecer o nascimento das inovações disruptivas e seus impactos naturais de mercado sobre as atividades e agentes econômicos já existentes, sem, no entanto, se descuidar de que a defesa da manutenção de atividades de interesse da coletividade não venha a se confundir, na íntegra, com o emprego do Direito em obstáculo intransponível ante o novo.

Desenhado esse cenário, a principal ferramenta que aparenta estar capacitada para equacionar a questão, do ponto de vista jurídico, é a regulação, já que deve ser exercida para encontrar um ponto ótimo conciliador dos diversos interesses em jogo. Dessa maneira, cumprirá à regulação, em tais casos, viabilizar o avanço tecnológico, o desenvolvimento e a prestação de serviços de maior qualidade aos seus consumidores, ao mesmo tempo em que deverá tutelar a concorrência, tanto permitindo novos entrantes, quanto impedindo práticas anticompetitivas pelos agentes econômicos envolvidos, velhos ou novos. Arcar, enfim, com o equacionamento dos desafios de assimetria, coordenação e outras falhas de mercado que possam se fazer presentes. Tudo isso sem perder de vista a proteção dos direitos fundamentais em questão, balizando atividades para que sejam exercidas em harmonia à segurança, sem invasão de privacidade etc.

Identificar a regulação como a ferramenta melhor habilitada para fazer frente às questões trazidas por inovações disruptivas, todavia, não é o suficiente, na medida em que a função regulatória comporta muitas estratégias de atuação. O debate que se põe, portanto, está em como intervir. Fomentar o novo e regular o antigo? Não regular o novo, o que já seria fomentá-lo? Um novo nicho não regulado deve atrair regulação também? Não deve operar efeitos sobre o que já está regulado? Ou deve pôr em xeque a necessidade de manutenção da regulação do que já existe, ensejando uma revisão regulatória que afaste exigências desnecessárias, de modo a reduzir os custos dos agentes atuais?

Em um panorama geral, dentre as estratégias regulatórias cabíveis quanto aos novos entrantes inovadores, será possível: (i) não regular; (ii) não regular até data limite determinada por política pública prévia para elaboração da regulação; (iii) regular de forma tradicional, por hard regulation, via rulemaking e adjudication; (iv) regular por soft regulation, mediante recomendações e ameaças (threats); (v) nas hipóteses ‘iii’ e ‘iv’, que preveem atuação regulatória ativa, fazê-lo especificamente no que toca às variáveis econômicas cabíveis caso a caso, dentre preço, entrada, qualidade e informação; (vi) não regular o novo, enquanto é revisado o arranjo regulatório do velho, reduzindo cargas desnecessárias que possam otimizar o sistema; e (vii) regular, de modo a evitar o banimento, a não ser que a inovação seja deletéria aos direitos fundamentais, e decididamente ilegal.

A discussão pormenorizada de cada uma das estratégias desborda do escopo deste ensaio. Ainda assim, cabe aqui afirmar que não haverá uma fórmula pronta, do tipo one size fits all, para regular toda e qualquer inovação disruptiva. Os contornos de cada modelo de negócio, mesmo nos exemplares que possam ser reconduzidos à matriz da economia compartilhada, demandará solução personalizada. O mais importante, desse modo, é ter em consideração o método de ação ao regular, de maneira que a regulação de inovações disruptivas não se mova com o intuito de nivelar os custos dos agentes já estabelecidos, mediante a criação ou elevação de cargas regulatórias desnecessárias aos novos entrantes. Tanto ao contrário: que as inovações sirvam de impulso para um movimento de revisão regulatória retrospectiva, liberando pesos desnecessários, pendentes sobre os agentes econômicos já estabelecidos, que não conformem melhoria efetiva na qualidade dos serviços prestados.

  Trilhando esse caminho, caberá à regulação setorial, por meio da adoção justificada de cada uma dessas estratégias possíveis, customizar soluções viabilizadoras do desenvolvimento tecnológico e serviços de maior qualidade aos consumidores e usuários.



Por Leonardo Coelho Ribeiro (RJ)

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