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As concessões, os seus problemas e a transição de modelos teóricos no direito administrativo do Brasil

ANO 2019 NUM 428
Leonardo Gomes Ribeiro Gonçalves (PI)
Mestre em Direito da Regulação (FGV Direito Rio). Professor do iCEV. Advogado e Procurador do Estado do Piauí.


26/06/2019 | 3797 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

O objeto deste texto é identificação dos problemas decorrentes do crescente uso das concessões no Brasil e a indicação de como o direito administrativo pode contribuir para mitiga-los. Seu objetivo é refletir sobre a necessidade de se rever a perspectiva dogmática ainda presente no direito administrativo brasileiro, com a proposição de modelos teóricos que facilitem a compreensão dos conflitos reais de poder e questões práticas existentes no desempenho da função administrativa.

1. O crescente e problemático uso das concessões no Brasil - Há no Brasil uma euforia em torno do tema das concessões por governos pressionados pela crise econômica e pela demanda do público por prestações estatais de qualidade. Mostra dessa euforia é a quantidade de projetos para delegação estatal das prestações devidas ao público: em âmbito estadual, levantamento do site G1[i] realizado em janeiro de 2019 catalogou 116 projetos de concessão (em estudos, aguardando autorização dos órgãos competentes e contratados), dos quais 27 são do Estado do Piauí.

O movimento para delegar prestações estatais à iniciativa privada é acompanhado de problemas de difícil solução sob a perspectiva de um direito administrativo de viés mais tradicional[ii], de aplicação ainda majoritária no Brasil. Desse fato, decorrem três tipos de riscos financeiros e à ordem administrativa.

Em certos casos, o pesado investimento inicial para a administração pública realizar as delegações (contratação de consultores para elaboração de projetos, despesas com divulgação das concessões – road shows, etc.) será perdido, porque tais investimentos são custos afundados[iii] e as concessões podem não prosperar. Em outros casos, as concessões e formas alternativas de delegação de atividades estatais prosperarão com desempenho de abaixo do esperado, em virtude de intensos questionamentos perante o poder judiciário local e outros ataques realizados por grupos organizados que tenham interesses contrariados com as mudanças administrativas promovidas. Por fim, há os casos em que as delegações prosperarão, mas com a inviabilidade do controle efetivo pelos sujeitos interessados na prestação delegada – poder concedente, concessionária e usuários – com o risco de captura da administração pública por uma das partes direta ou indiretamente envolvidas no pacto concessório.

Diante disso, pergunta-se: o direito administrativo “tradicional” que temos é suficiente para identificar, compreender e resolver estes tipos de problemas? Como lidar com a necessidade de inovação no setor público (p.ex., adoção de concessões e outros instrumentos alternativos de governança, ser mais eficiente, etc.) e, de outro lado, com a insegurança jurídica e os efeitos colaterais (p. ex.: desperdício de recursos públicos, litígios administrativos e judiciais, captura do poder público, etc.) que a inovação no setor público fatalmente provoca?

2. A transição inacabada de paradigmas no Direito Administrativo brasileiro - Apesar de o tema das concessões e outras formas de intervenção do Estado no domínio econômico ter ganhado espaço no debate público nos últimos vinte anos, afirma-se que ainda vivemos um período de transição no direito administrativo brasileiro: os conceitos “novos” ainda estão sendo objeto de construção teórica, não tendo encontrado o direito administrativo contemporâneo o seu “livro de referência”[iv].

O uso lícito, legítimo e eficiente do instituto das concessões como instrumento de governança no Brasil depende da mudança na forma como o direito administrativo compreende a atuação estatal. Apesar de ainda ser uma “obra” incompleta, não foram poucos os esforços para se construir essa mudança de paradigma, fato que vem ocorrendo desde meados da década de 1990.

Exemplos dos esforços para o desenvolvimento teórico do direito administrativo contemporâneo no Brasil, entre muitos outros, são os trabalhos de Carlos Ari Sundfeld[v], Alexandre Santos de Aragão[vi], Gustavo Binenbojm[vii] e Floriano de Azevedo Marques Neto[viii]. O primeiro adota uma linha mais pragmática, vendo o direito administrativo como uma “cultura” de administrativistas, enquanto os dois seguintes direcionam o pensamento mais para a linha da constitucionalização dos direitos. O último, por sua vez, desenvolveu ampla pesquisa no campo das concessões, contribuindo para a melhor compreensão histórica do instituto jurídico.

3. A concepção tridimensional do direito administrativo – No movimento de renovação teórica do direito administrativo no Brasil, há um trabalho publicado recentemente por Eduardo Jordão[ix] com o título: The three dimensions of administrative law (As três dimensões do direito administrativo).

Ao contrário das doutrinas anteriores, que enxergam o direito administrativo como um fenômeno monístico, Eduardo Jordão propõe uma concepção tridimensional do direito administrativo que, segundo ele, possibilita a captura da complexidade da administração pública. De acordo com a proposta do autor, a concepção do direito administrativo em três dimensões “não dá respostas aos vários dilemas do direito administrativo, mas oferece um quadro teórico para entender e posicionar as respostas a tais dilemas. ”[x]

As três dimensões do direito administrativo são a legal, a gerencial e a política. Cada uma delas se ocupa de regular a administração pública por razões específicas, compartilhando as três dimensões, como elementos de um ramo do direito que são, uma natureza jurídica de primeiro nível[xi].

A dimensão legal do direito administrativo ocupa-se de regular a relação da administração pública com os cidadãos, limitando a violação aos direitos destes e obrigando a reparação de danos decorrentes de ações ilícitas e até mesmo lícitas da administração pública (responsabilidade objetiva).

A dimensão gerencial endereça problemas relacionados ao dever que a administração pública tem de promover os benefícios aos cidadãos de forma eficiente, considerando que o administrador público não atua por conta própria, sendo um servidor público.  Nesta dimensão estão incluídos esforços para aperfeiçoamento da estrutura do aparato administrativo a fim de que o Estado possa se desincumbir das suas obrigações eficientemente.

Na dimensão política do direito administrativo estão englobados os problemas relacionados à legitimidade e transparência administrativas, estando reguladas nessa perspectiva os procedimentos destinados a legitimar escolhas difíceis do administrador, especialmente nos casos de indeterminação de conceitos jurídicos existentes no ordenamento.

As três dimensões do direito administrativo tanto se reforçam mutuamente (mutual reinforcement), como eventualmente podem entrar em conflito (clashing dimensions), exigindo neste último caso uma comparação em função do tipo de problema que o direito administrativo busca resolver. Um exemplo que o autor cita é o caso do controle judicial da atividade administrativa, onde a não-deferência à administração implica geralmente a preponderância da dimensão legal, enquanto a deferência do controle significa a opção pela dimensão gerencial.

Na concepção tridimensional do direito administrativo não há um modelo de atuação estatal superior (ideal). A preponderância de cada uma das dimensões (legal, gerencial e política) varia historicamente entre diversas jurisdições (esferas de competência: países, entes federados). Assim, de acordo com o autor, enquanto países com tradição legalista (França, Itália, Brasil) tendem a dar maior relevo à dimensão legal, países anglo-saxões (Reino Unido, EUA) parecem favorecer o aspecto gerencial.

Todavia, a preponderância de certas dimensões segundo o sistema jurídico adotado em cada país é relativa e o exemplo disso são as modificações historicamente verificadas, em que reformas institucionais que ocorrem em nível mundial, nas diversas jurisdições, aumentam e/ou diminuem a relevância de dimensões de tempos em tempos.

 3. As respostas aos problemas das concessões a partir da perspectiva tridimensional do direito administrativo – Pode-se usar a metáfora de que a concepção tridimensional do direito administrativo serve como uma chave para abrir a “caixa-preta” da decisão administrativa. Consoante o modelo proposto por Eduardo Jordão, sem o recurso a simplificações conceituais, é possível compreender e analisar os problemas indicados no tópico 1 deste artigo, apesar da inerente complexidade dos mesmos.

Enquanto as decisões sobre investimentos destinados à realização das delegações (contratação de consultores para elaboração de projetos, despesas com divulgação das concessões – road shows, autorização para realizar as concessões, etc.) envolvem preponderantemente as dimensões gerencial e política, os conflitos de interesses existentes após a mudança de forma de atuação estatal (direta para indireta) tratam de situações nas quais as dimensões legal e política tem maior importância.

Nesse sentido, antes de se realizar as concessões, deve-se investigar se o referido modelo de governança é capaz de entregar de modo mais eficiente (a um menor custo social) aos cidadãos os benefícios devidos a eles pelo poder público. A eficiência do modo alternativo proposto depende da transparência com a qual as decisões administrativas são tomadas, pois a participação dos cidadãos “aumentam a legitimidade da administração e contribuem para a sua qualidade”[xii], prevenindo os possíveis conflitos decorrentes da mudança institucional a ser realizada.

Já em relação aos conflitos posteriores à formalização das concessões, a análise da situação sob a perspectiva das dimensões política e legal propiciam, a um só tempo, a identificação transparente dos interesses envolvidos nas disputas e os direitos que cabem a cada um dos interessados, com o benefício de com isso se tornar possível a avaliação da decisão no campo legal (controle judicial) em vista da preservação da razão gerencial que motivou originalmente a mudança da forma de prestação estatal.

4. A continuidade da transição de paradigmas no direito administrativo - Em conclusão, ainda que se demonstre as vantagens do modelo de análise jurídica exposto, cabe relembrar que desenvolver teoricamente um ramo do direito não é tarefa simples, especialmente quando se fala de direito administrativo no Brasil.

A primeira razão é indicada pelo próprio autor do modelo abordado neste artigo: quanto mais dogmático é o ensino jurídico, como parece ser o caso dos países de tradição legalista (civil law), maior é a tendência à percepção de que somente uma dimensão é a única relevante – a dimensão legal[xiii]. A segunda razão consiste no fato de que, em via reversa, a percepção na prática administrativa de que a dimensão legal é a sempre a mais relevante reforça a demanda pela dogmática jurídica nos cursos de graduação e nos concursos públicos, bloqueando a introdução de razões de natureza interdisciplinar (não dogmáticas) no direito administrativo e o desenvolvimento de teorias pertinentes a problemas das suas outras duas dimensões - gerencial e política.



[ii] Carlos Ari Sundfeld chama a perspectiva mais tradicional do direito administrativo de “direito administrativo dos clipes” (SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 147-148).

[iii] Os custos afundados (sunk costs) são característicos dos investimentos em ativos que não podem ser reconvertidos ou utilizados em outros empreendimentos que não aqueles nos quais estão empregados. Exemplo disto são despesas com consultorias especializadas para estruturação de projetos que, não sendo realizados, implicam na perda do valor gasto originalmente com os consultores contratados.

[iv] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 53-54

[v] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2014.

[vi] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.

[vii] BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[viii] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Concessões. 1ª edição. Belo Horizonte: Forum, 2016.

[ix] JORDÃO, Eduardo. The three dimensions of administrative law. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 21-38, jan./mar. 2019.

[x] Idem, p. 30.

[xi] Idem, p. 23.

[xii] Idem, p. 27.

[xiii] Idem, p. 31.

 



Por Leonardo Gomes Ribeiro Gonçalves (PI)

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