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Iluminação Pública e Segurança Jurídica: condicionantes para revogação de legislação que crie a COSIP

ANO 2019 NUM 431
Mário Saadi (SP)
Sócio de Direito Público e Infraestrutura de Tauil Chequer associado a Mayer Brown Doutor em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela FGV-SP. Professor da Pós-Graduação da FGV-Direito SP e Árbitro vinculado à CAMFIEP e à CAMES.


03/09/2019 | 5430 pessoas já leram esta coluna. | 8 usuário(s) ON-line nesta página

Em 14 de agosto de 2019, o Plenário do Tribunal de Contas da União julgou o Processo 039.853/2018-7, que deu origem ao Acórdão 1.907/2019. Sob a relatoria do Ministro Raimundo Carreiro, o caso tratou de consulta, formulada pelo então Ministério da Fazenda (atual Ministério da Economia), relativamente à interpretação a ser dada no caso de conflito de normas decorrente da aprovação de leis sem a devida adequação orçamentária e financeira e em inobservância ao que determina a legislação sobre a matéria, em especial o art. 167, II, da Constituição Federal, o art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, bem como os arts. 15, 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF. Eles preveem, respectivamente, o seguinte:

(i) CF/1988 , art. 167, II: “São vedados: [...] a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais”;

(ii) ADCT, art. 113: “A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”;

(iii) LRF: Art. 15. “Serão consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público a geração de despesa ou assunção de obrigação que não atendam o disposto nos arts. 16 e 17”. Art. 16. “A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de: I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes; II - declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias”. Art. 17. “Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios”.

Todos os dispositivos veiculam preocupações com a disciplina fiscal. Têm como objetivo fazer com que o Poder Executivo e o Poder Legislativo se debrucem, desde um ponto de vista prático, sobre impactos que suas ações podem causar sobre as finanças públicas. Há limitações para aumento de gastos e para diminuição de aferição de receitas que não podem ser juridicamente desconsideradas.

Nessa linha, o Acórdão TCU 1.907/2019 foi claro a prever que a veiculação de leis que possam, dalguma maneira, gerar impactos fiscais positivos (que criem despesas novas...) ou negativos (que extingam formais atuais de recebimento de recursos pelo Estado...) devem passar por severo crivo para que produzam efeitos jurídicos. Os principais pontos pode ser assim sintetizados:

(i) não se pode deixar de lado a questão da prudência fiscal: “As disposições constantes do art. 167 da Constituição Federal, do art. 113 do ADCT, dos arts. 15, 16 e 17 da LRF, e dos dispositivos pertinentes da LDO em vigor revelam a preocupação do legislador, tanto o constitucional quanto o ordinário, com a higidez das finanças públicas, razão pela qual buscou elaborar normas de disciplina fiscal, com a imposição de regras que cobram responsabilidade e prudência não apenas do gestor público, mas também do próprio legislador, quando da edição de novas leis” (fl. 01, ementa, do Acórdão TCU 1.907/2019);

(ii) ações, do Poder Executivo e do Poder Legislativo, podem gerar ônus financeiros estatais, os quais não podem ser desconsiderados: “Elevada importância dessas normas constitucionais e legais de disciplina fiscal para a efetivação de direitos fundamentais, porquanto, conforme reconhecido pela doutrina, ‘não existe almoço grátis’ e os direitos têm custos que implicam ônus financeiro ao Estado para a sua realização, cujo suporte depende de uma atuação fiscal responsável, sob pena de as promessas constitucionais serem indefinidamente frustradas por razões financeiras” (fl. 01, ementa, do Acórdão TCU 1.907/2019);

(iii) tudo é resumido numa questão que chamarei aqui de pragmatismo orçamentário: “Medidas legislativas aprovadas sem a devida adequação orçamentária e financeira, e em inobservância ao que determina a legislação vigente são inexequíveis, porquanto embora se trate de normas que, após a sua promulgação, entram no plano da existência e no plano da validade, não entram, ainda, no plano da eficácia, justamente por não atenderem ao disposto no art. 167 da CF/88, art. 113 do ADCT, arts. 15, 16 e 17 da LRF” (fl. 01, ementa, do Acórdão TCU 1.907/2019).

E o que isso tem a ver com a segurança jurídica no setor de iluminação? Absolutamente tudo.

Serviços de iluminação pública são de competência municipal. Esta deriva da CF/1988: de seu art. 30, V, a atribuir aos Municípios  a organização e a prestação, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, dos serviços públicos de interesse local; de seu art. 149-A, a estatuir que eles poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública – COSIP. Aí reside o fundamento constitucional para que as leis municipais que preveem a criação e a cobrança da COSIP.

A reboque do debate sobre a contratação de parcerias público-privadas – PPPs para a prestação indireta de serviços no setor de iluminação pública, houve início de discussão sobre formas de se garantir maior segurança jurídica para que a iniciativa privada se engajasse neste tipo de negócio. Os serviços são de competência municipal, historicamente executados por meio de contratos celebrados com base na Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações), com baixa regulação e pouca institucionalidade. Tais aspectos eram mitigados, diga-se, pelo fato de os contratos celebrados com base na Lei de Licitações serem de curto prazo, com baixa exposição de caixa e com realização de pagamentos com base em medições contratuais periódicas.

Com a celebração da PPP, o jogo muda. A sociedade de propósito específico – SPE concessionária precisa realizar investimentos na modernização dos serviços logo no início do projeto. Os serviços são pagos mediante atendimento a rígidos indicadores de desempenho. O retorno econômico-financeiro do projeto ocorre, usualmente, em horizontes de médio e longo prazos. Os contratos terão prazos longuíssimos. Haverá necessidade de realização de reinvestimentos. Tecnologias poderão mudar. Membros de Prefeituras Municipais, Secretarias e Câmaras Municipais invariavelmente mudarão. Por aí vai...

Em meio a este estado de coisas, há que se garantir previsibilidade, certeza de que obrigações, público e privadas, serão realizadas a contento, na exata medida em que foram contratualizadas. Para que a coisa faça sentido, sob a perspectiva privada, há de se ter nível máximo de segurança jurídica de que os pagamentos serão realizados tempestivamente, concomitantemente à prestação dos serviços. Soluços financeiros poderão provocar impactos graves, afetando a SPE e, sobretudo, os destinatários da prestação dos serviços: os cidadãos.

É verdade que o fato de a COSIP ser, constitucional e legalmente, vinculada ao custeio dos serviços de iluminação pública, diminui consideravelmente os riscos assumidos pelo parceiro privado. Recursos arrecadados a título de cobrança da contribuição não poderão ser destinados a outra finalidade que não aquelas atinentes ao setor de iluminação pública (à exceção, é verdade, da desvinculação de 30% das receitas municipais, que se estende até 2023, nos termos do art. 76-B dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórios – ADCT...). Mas, para além da questão teórica, medidas práticas têm sido pensadas para que a COSIP seja realizada adequadamente, de forma a se dar robustez aos contratos de PPPs.

Aqui, podem ser mencionadas a criação das já famosas contas vinculadas (para as quais os recursos da COSIP devem ser automaticamente destinados, sem qualquer interferência da gestão municipal, geridas por agente fiduciário responsável por fazer o seu repasse automático à concessionária, no montante da contraprestação pública devida em determinado período) e de contas reservas (nas quais são colocados recursos em determinados patamares, para garantir acesso direto, fácil e não burocrático, pela concessionária caso haja inadimplemento contratual). Elas têm o objetivo garantir o fluxo de caixa esperado ao longo do projeto, que remunerará a concessionária pela prestação dos serviços concedidos (e os seus acionistas pelos investimentos realizados para viabilização do projeto...).

Poderia, ainda, citar outras questões. Previsão de possibilidade interrupção de investimentos pela concessionária caso haja inadimplemento em determinado patamar pelo Poder Concedente; instituição de juntas técnicas e previsão de resolução de conflitos via arbitragem; estimativa de número de pontos que devem ser implantados para adequação dos serviços são algumas das medidas previstas para que haja previsibilidade na execução contratualmente.

Isso, contudo, não tem acabado com a discussão sobre os riscos políticos dos projetos, especialmente em relação à própria figura da COSIP: como ela é instituída pela legislação municipal, poderia haver movimento, em nível local, para acabar com a contribuição, independentemente do motivo. Poderiam, por hipótese, ser veiculadas leis ou editados decretos extinguindo-a ou diminuindo o seu patamar de arrecadação, conforme o caso. Haveria, consequentemente, impacto direto no fluxo de recebimento de recursos no âmbito do contrato de PPP, afetando o interesse privado nesse tipo de projeto.

O ponto é, em boa medida, contra intuitivo e não me parece ser vislumbrado facilmente, na prática. Isso porque a extinção (ou diminuição...) da COSIP faria com que os recursos se esvaziassem duma mão, mas continuariam a ter que chegar na outra. Com isso, quero dizer que sua diminuição, nestes termos, invariavelmente faria com que houvesse necessidade de abertura de fôlego noutras fontes de receita do tesouro municipal para que os serviços continuassem a ser prestados ininterruptamente.

Em contexto de austeridade fiscal e de necessidade de abertura de espaço fiscal para lidar com problemas de ordem cotidiana dos entes federativos (que vão ao pagamento de folha do servidorismo público à necessidade de realização de investimentos em serviços sociais...), não é absolutamente crível que haveria a renúncia a fonte perene de receita exclusivamente destinada a serviço municipal essencial...

Mas, seja como for, fato é que esse risco político tem sido enxergado. E aqui voltamos ao entendimento exarado no Acórdão 1.907/2019. Conforme indicado pelo TCU, “medidas legislativas que forem aprovadas sem a devida adequação orçamentária e financeira, e em inobservância ao que determina a legislação vigente, especialmente o art. 167 da CF/1988, o art. 113 do ADCT, os arts. 15, 16 e 17 da LRF, e os dispositivos pertinentes da LDO em vigor, somente podem ser aplicadas se forem satisfeitos os requisitos previstos na citada legislação” (fl. 32 do Acórdão 1.907/2019).

A extinção ou a diminuição da COSIP, em minha visão, seria capaz de violar tais dispositivos. Consequentemente, contrariaria a visão do TCU sobre a questão: a contribuição apenas poderia ter seu valor diminuído caso Poder Executivo e Poder Legislativo (a depender de quem promovesse a mudança...) demonstrassem que não haveria impacto para as contas públicas, tampouco prejuízo para o pagamento dos valores devidos contratualmente à concessionária de iluminação pública. Haveria a necessidade de realização de estudos de impacto (orçamentário e legislativo...), sem os quais a medida, mesmo que veiculado por meio de edição de lei, seria antijurídica.

Assim, a lei ou o decreto que modificassem a COSIP, ainda que existentes e válidos, não seriam eficácias: não produziriam efeitos até que fosse evidenciado que o contrato de PPP não seria prejudicado, juntamente com a adoção de medidas que garantissem o seu adimplemento. Nessa linha, o voto do Min. Rel. Raimundo Carreiro no Acórdão TCU 1.907/2019 esclareceu que “[...] medidas legislativas aprovadas sem a devida adequação orçamentária e financeira e em inobservância ao que determina a legislação vigente são inexequíveis, porquanto embora se trate de normas que, após a sua promulgação, entram no plano da existência e no plano da validade, não entram, ainda, no plano da eficácia, justamente por não atenderem ao disposto no art. 167 da CF/88, art. 113 do ADCT, arts. 15, 16 e 17 da LRF [...]” (fl. 25, Acórdão TCU 1.907/2019).

Além disso, parece-me que a extinção ou a diminuição da COSIP também poderiam ser aproximadas da renúncia fiscal, nos termos do art. 14 da LRF. Da mesma maneira, tais modificações legais apenas entrariam em vigor com a demonstração de que não afetariam as metas de resultados fiscais previstas na lei de diretrizes orçamentárias, bem como deveriam estar acompanhadas de medidas de compensação.

Nesse sentido, o voto do Min. Rel. Raimundo Carreiro também foi claro ao tratar das preocupações com a renúncia fiscal. Para ele, “[...] no caso das renúncias de receitas o Poder Público deixa de receber determinados valores sobre os quais teria direito. Se, por um lado, tal medida pode ser justificada por razões de políticas públicas específicas, não há como negar, por outro lado, que referida renúncia implica, em um primeiro momento, uma limitação da capacidade financeira do Estado de atender a outras demandas da sociedade decorrentes da necessidade de satisfação de outros direitos” (fl. 24 do Acórdão TCU 1.907/2019).

Qualquer diminuição do valor da COSIP, caso não seja devidamente justificada, poderá, assim, ser equiparada a renúncia de receita, pois a finalidade de continuidade na prestação dos serviços de iluminação pública continuará a existir, juntamente com outras necessidades dos cidadãos que também deverão ser atendidas pelas Municipalidades.

Não bastasse, eventuais alterações nos valores ou na sistemática relativa à COSIP poderá trazer impactos contratuais na PPP, que poderão gerar inadimplemento por parte do Poder Público. E, independentemente disso, ainda que os valores da COSIP sejam modificados, todas as obrigações de pagamento de contraprestação pública previstas contratualmente sobreviverão. Com ou sem COSIP, a Administração Pública continuará como devedora no bojo do contrato. Melhor que fique com ela, portanto.

Os debates sobre as PPPs de iluminação pública foram incisivos. Muitos projetos foram discutidos. Poucos saíram do papel. Eles precisam caminhar, sem deixar de lado a prudência fiscal, os ônus financeiros estatais e o pragmatismo orçamentário. Há de haver institucionalidade. Segurança jurídica para investimentos. Reconhecimento jurídico, tal como aqui proposto, de que a COSIP não poderá ser alterada sem a observância de rigorosos condicionantes legais.



Por Mário Saadi (SP)

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