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Orientação AGU nº 59: distinção entre controles acionário e societário e contratação direta de empresas estatais

ANO 2020 NUM 469
Mário Saadi (SP)
Sócio de Direito Público e Infraestrutura de Tauil Chequer associado a Mayer Brown Doutor em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela FGV-SP. Professor da Pós-Graduação da FGV-Direito SP e Árbitro vinculado à CAMFIEP e à CAMES.


16/09/2020 23:50:35 | 2396 pessoas já leram esta coluna. | 6 usuário(s) ON-line nesta página

Em 29 de maio de 2020, a Advocacia-Geral da União editou sua Orientação Normativa nº 59, publicada no Diário Oficial da União no dia 12 de junho (“Orientação AGU”). Em seus termos, “[a]cordo entre acionistas, que confira o controle societário de determinada empresa a sociedades de economia mista e empresas públicas, não é suficiente para a legalidade da contratação direta de que cuida o art. 24, inciso XXIII, da Lei nº 8.666, de 1993; e o art. 29, inciso XI, da Lei nº 13.303, de 2016; que demanda efetivo controle acionário da pessoa jurídica a ser contratada por parte da entidade contratante”.

O tema é da ordem do dia e traz aspectos relevantes sobre a atuação direta do Estado no domínio econômica e as formas pelas quais o Estado pode se inter-relacionar, desde a perspectiva societária, para levar a cabo determinadas finalidades. A Orientação AGU traz limitação a respeito do tema, indicando que a contratação direta apenas pode ocorrer, nesses termos, quando o Estado possui o controle acionário sobre ambas as empresas objeto da operação.

Ou seja: quando participam da contratação empresas estatais e subsidiárias, nos termos do art. 2º, incisos I e IV, do Decreto 8.945, de 27 de dezembro de 2019, em oposição à noção de “sociedade privada”, ali caracterizada como “entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e cuja maioria do capital votante não pertença direta ou indiretamente à União, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município” (art. 2º, VI).

Em 2018, havia defendido, em trabalho de doutoramento, pontos semelhantes (SAADI, “O Estado como sócio minoritário qualificado: o regime jurídico das empresas semiestatais”). Antes da Orientação AGU, pontuei que “acordos de sócios para compartilhamento de controle societário (ainda que haja discussão sobre sua celebração pelo Estado) não são a via apta para enquadrar empresas na estrutura da Administração Pública indireta. Nosso ordenamento jurídico reconhece a via acionária, e não societária, para definição das empresas que integram o corpo burocrático estatal” (SAADI, p. 34).

Nessa seara, parece-me necessária a distinção entre as noções de controle acionário e controle societário. Aquele é definido pelo total de capital votante apto a permitir que determinado sócio possa figurar como controlador da sociedade. O controle acionário pode ser caracterizado como detenção de cotas ou ações com direito a voto representado mais de 50% do total do capital social; o societário, pela existência de instrumentos negociais que, para além do total de cotas ou ações com direito a voto, permitam a determinado sócio dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento de órgãos da empresa (SAADI, p. 41-42).

Nesses termos, o controle acionário é entendido como situação de direito (verificação da propriedade do número de cotas ou ações com direito a voto), enquanto o controle societário deverá ser enxergado desde situação de fato (possibilidade fática de dirigir os rumos da companhia).

O ordenamento jurídico, em minha visão, reconhece a possibilidade de celebração de acordos de sócios pelo Estado, de forma a compartilhar o controle de empresas nas quais tenha realizado investimentos minoritários. Não decorre daí, contudo, que a empresa assim investida integre estruturalmente a Administração Pública indireta. Apenas fará com que os deveres e obrigações impostos ao controlador sejam impostos ao Estado, na condição de sócio qualificado (compartilhador de controle) (p. SAADI, 80).

Indo adiante, o critério do controle acionário para a discussão da definição das entidades empresariais que integram a Administração (ou, o que representa, em boa medida, a mesma discussão, sobre os limites da contratação direta, tal como veiculados na Orientação AGU) é relevante para se trazer certeza jurídica para a discussão sobre o que sejam empresas estatais.

Quando se trata da definição do regime estrutural delas, o critério da maioria do capital votante possui virtudes. Traz segurança jurídica para a discussão. Empresas nas quais o Estado detenha mais de 50% do capital do direito a voto pertencerão à Administração Pública indireta. Seu regime estrutural será o das empresas estatais, nos termos do art. 173, §§ 1º a 3º, da CF/1988, e da Lei das Empresas Estatais. Por essa razão, todas as normas que incidem sobre determinadas entidades pelo simples fato de serem empresas estatais serão a elas aplicáveis. Apresenta carga de distinção sobre a caracterização da empresa, fazendo-a integrante da Administração Pública (SAADI, p. 124).

Nessa linha, e em cumprimento ao disposto no art. 165, § 5º, II, da CF, a LOA-2017 tratou do orçamento de investimento das empresas estatais federais. Nele são incluídas apenas as empresas em que a União, “direta ou indiretamente, detém a maioria do capital social com direito a voto” (art. 1º, III, da LOA-2020 – Lei Federal nº 13.978, de 17 de janeiro). Houve opção legislativa por tratar como empresas controladas pela União, para fins de aplicação das normas orçamentárias (que possuem o condão de organizar estruturalmente a Administração Pública sob a perspectiva dos gastos públicos), apenas aquelas empresas em que haja a detenção de maioria do capital social votante (SAADI, p. 125).

A solução, portanto, é pela alternativa que garante estabilidade para a definição das empresas que se subsumirão ao regime fiscal: a inserção apenas de empresas em que a União detenha maioria do capital votante.

Frise-se que o posicionamento também já foi reiterado pelo TCU no âmbito do Acórdão 2.472/2017. Para o Rel. Min. Aroldo Cedraz: “[...] as disposições da Lei 6.404/1976 não estão aptas a regular a relação entre empresa pública e a sociedade que pretende adquirir, em especial, no que tange a conceito de empresa controlada. [...] para que a empresa controladora possa contratar por dispensa de licitação com fulcro no previsto no art. 24, inciso XXIII, da Lei 8.666/1993 [e também no art. 29, inciso XI, da Lei nº 13.303, de 2016], se pública, deve deter a maioria dos votos, utilizando, como parâmetro, disposto no art. 165, § 5º, inciso II, da Constituição da República. Percebo que o conceito de empresa controlada, quando aplicado no setor público, demanda o efetivo exercício desse controle por meio do capital social com direito a voto, como pode ser percebido, por exemplo, na definição estabelecida no art. 2º da Lei Complementar 101/2000, a qual guarda total conformidade com o conceito constitucional” (Acórdão TCU 2.472/2017, fls. 8-9).

Há consistência com a opção constitucional, tomada de maneira consciente: a de categorizar de forma clara, sem maiores discussões, o que integra e o que não integra a Administração Pública indireta. Como consequência, as normas constitucionais sobre sua organização (especialmente para fins de aplicação do art. 37 da CF e seus incisos, bem como das disposições sobre controle do Estado) terão aplicação mais tranquila.



Por Mário Saadi (SP)

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