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Atribuição ao contratado da Administração Pública de todos os riscos não tratados no contrato é nula perante a Lei 8.666/93

ANO 2016 NUM 54
Maurício Portugal Ribeiro (SP)
Especialista na estruturação e regulação de concessões e PPPs, sócio do Portugal Ribeiro Advogados, Professor de Modelos Regulatórios da FGV, Mestre em Direito pela Harvard Law School, autor de vários livros e artigos sobre concessões, PPPs e outros temas dos setores de infraestrutura.


14/01/2016 | 7984 pessoas já leram esta coluna. | 6 usuário(s) ON-line nesta página

A Lei 8.666/93 estipula no seu artigo 65, inciso II, alínea “d” uma regra genérica de distribuição de riscos nos contratos administrativos.

A doutrina jurídica e a jurisprudência analisando e aplicando esse dispositivo consolidaram o entendimento de que riscos de ocorrências ordinárias de efeitos previsíveis são atribuídos ao contratado. Por sua vez, riscos de eventos extraordinários ou ordinários de efeitos imprevisíveis são alocados à Administração Pública.

A doutrina e a jurisprudência nunca enfatizaram, contudo, que a distribuição de riscos prevista no aludido dispositivo é aplicável apenas para os eventos extracontratuais, conforme a parte final do próprio dispositivo.

Em outras palavras, o texto da alínea “d”, do inciso II, do art. 65, da Lei 8.666/93 define expressamente que os eventos não tratados no contrato devem ser submetidos à distribuição de riscos genérica (álea ordinária/extraordinária) prevista no artigo 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/93. A contrario sensu, ele afirma que vale a distribuição de riscos prevista no contrato para todos os eventos tratados no contrato.

Recentemente, se tornou comum contratos de concessão ou PPP estabelecerem regra sobre distribuição residual de riscos. Essas regras geralmente atribuem todos os riscos não tratados no contrato ao concessionário. Contratos supostamente sofisticados como os de concessão de rodovias e aeroportos recentemente (2012 a 2014) celebrados pelo Governo Federal possuem cláusulas residuais de distribuição de riscos com esse teor.

Essas cláusulas de distribuição residual de riscos dão um fechamento ao contrato, que, por meio delas, se torna norma completa, na medida em que aloca o risco (a responsabilidade de arcar com as consequências) por todos os eventos não aludidos no contrato ao concessionário.

Essas cláusulas, contudo, na minha opinião são inválidas à luz do artigo 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/93.

É que ao atribuir todos os riscos ao concessionário, essas cláusulas simplesmente ignoram e negam efeito à distinção utilizada no referido dispositivo legal entre eventos contratuais e eventos extracontratuais.

A cláusula de atribuição de todos os riscos residuais ao concessionário é um artifício para tornar contratuais, por um passe de mágica, todos os eventos que não são mencionados no contrato.

É uma esperteza para negar efeitos à distinção feita pelo artigo 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/93 entre o regime aplicável aos eventos contratuais (para os quais valem as regras previstas no contrato) e o regime aplicável aos eventos extracontratuais – para os quais vale a distribuição de riscos conforme o tipo de álea: será risco da Administração Pública a álea extraordinária ou ordinária de efeitos imprevisíveis, e risco alocado ao concessionário o ordinário de efeitos previsíveis.

Do ponto de vista econômico, essas cláusulas de alocação residual de risco têm como efeito lançar sobre o concessionário toda a incerteza sobre o futuro.

Já é uma distinção clássica na economia a entre incerteza e risco.

Riscos são as ocorrências futuras cuja probabilidade de realização e impacto sobre os agentes podem ser tratados racionalmente, isso é podem ser calculados, e, por isso, podem ser considerados nas decisões de investimento.

Incertezas se referem também a eventos futuros, mas que não podem ser racionalmente tratados e, por isso, em regra, elas inibem o investimento. No caso dos contratos, elas reduzem o sucesso da contratação, ou, ao menos, torna as contratações substancialmente mais caras para a Administração Pública ou para os usuários dos serviços.

É importante notar que a distribuição de riscos prevista no artigo 65, inciso II, alínea “d” e incidente sobre os eventos extracontratuais tem exatamente por objetivo permitir o sucesso da contratação, tirando do contratado os riscos sobre eventos que ele não consegue precificar (álea extraordinária e álea ordinária de consequências imprevisíveis). Claramente, o objetivo do dispositivo legal, do ponto de vista econômico, é livrar o contratado de incertezas. Em outras palavras, o artigo 65, inciso II, alínea “d”, se aplicado corretamente – isso é apenas para os eventos extracontratuais – estabelece distribuição de riscos economicamente adequada, que livra o contratado de incertezas, e lhe permite focar apenas nos riscos envolvidos na execução do contrato, que devem ser precificados e considerados em sua proposta na licitação.

Se a saída da crise no Brasil passa por alavancar investimentos privados em infraestrutura por meio de concessões e PPPs, e se a melhoria do ambiente de negócios e a redução dos riscos regulatórios é uma pauta relevante para isso, deveríamos começar por reconhecer a invalidade dessas cláusulas de alocação residual de riscos, dando cumprimento ao artigo 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/93, e tratando os eventos extracontratuais a partir dos parâmetros esse dispositivo estabelece.

PS (Post scriptum): 

Quando escrevi o meu livro sobre melhores práticas em licitações e contratos de concessão e PPP, o meu entendimento era de que a parte sobre regime de contratos da Lei 8.666/93 não incidia sobre as concessões e PPPs. Isso porque, as regras da Lei 8.666/93, me pareciam incompatíveis com a natureza econômica dos contratos de concessão e PPP, o que, na minha opinião, afastava a sua aplicação subsidiária. Apesar disso, ciente de que o entendimento mais comum, particularmente entre agentes públicos, era de que tais regras se aplicavam, em vários casos, argumentei considerando a hipótese dos dispositivos da Lei 8.666/93 se aplicarem aos contratos de PPP e concessões. Em relação ao tema da distribuição de riscos residuais, defendi nessa época a utilização da regra de distribuição de riscos residuais nos seguintes termos: “Observe-se que a condição de incidência do dispositivo [eu me referia ao art. 65, inciso, II, alínea “d”, da Lei 8.666/93] é que os eventos nele descritos configurem “álea econômica extraordinária e extracontratual”. Ora, para que se configure álea extracontratual, é preciso que o risco da ocorrência do evento não esteja tratado especificamente no contrato e que não haja regra clara sobre a distribuição dos riscos residuais. Portanto, ainda sem discutir a aplicabilidade do dispositivo, o que é claro é que se os riscos forem alocados claramente pelo contrato, e se houver regra no contrato sobre a alocação de riscos residuais, não se poderia falar em álea extracontratual, de maneira que este dispositivo, o art. 65, II, “d”, não poderia incidir.” Nos últimos anos, eu mudei de posição em relação a dois temas relevantes que gostaria de assinalar aqui. Em primeiro lugar, atualmente creio que diversas das regras sobre regime de contratos constantes da Lei 8.666/93 são compatíveis com a natureza econômica das concessões e PPPs e, por isso, podem ser aplicadas a esses contratos. Entre outras, cito especificamente o artigo 65, inciso II, alínea “d” cuja minha interpretação atual está exposta no presente artigo e o artigo 58, §1°, da Lei 8.666/93. Percebi que essas e algumas outras regras sobre regime dos contratos da Lei 8.666/93 podem ser conciliadas com a natureza econômica e financeira dos contratos de concessão e PPP e, por isso, elas são aplicáveis a eles. Além disso, da perspectiva econômica e financeira percebi a inconveniência de alocações genéricas de riscos, inclusive as de riscos residuais, especialmente quando envolverem eventos que não se pode prever, eventos desconhecidos. A alocação de riscos desconhecidos (decorrência da generalidade da alocação residual) tem, por efeito, a rigor a alocação sobre o contratado de riscos de eventos ainda sem possibilidade de tratamento racional e precificação. Em outras palavras, percebi que essas alocações de riscos residuais terminam, na prática, funcionando como alocação de incertezas (eventos que não podem ser tratados racionalmente) o que, a rigor, é ineficiente da perspectiva econômica.

 



Por Maurício Portugal Ribeiro (SP)

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