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Um professor de direito administrativo em apuros: desabafo das agruras de lecionar essa disciplina nos tempos da Lava-jato

ANO 2017 NUM 330
Patrícia Baptista (RJ)
Professora de Direito Administrativo da UERJ. Doutora em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito Público pela UERJ. Procuradora do Estado do Rio de Janeiro.


17/02/2017 | 10402 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

Está difícil ser professor de direito administrativo no Brasil nos últimos tempos. Não que em algum momento tenha sido fácil — explicar o funcionamento do regime jurídico da Administração Pública brasileira nunca foi tarefa simples —, mas a torrente de eventos dos últimos dois ou três anos, é preciso reconhecer, trouxe desafios extras para nosso ofício. Afinal, como foi possível que tudo o que está sendo revelado agora tenha se passado bem debaixo dos nossos narizes? Como funcionou o direito administrativo durante esse tempo? E agora, José?

Pinço, para exemplificar, o drama do regime jurídico da contratação pública no país. Antes da Lava-jato, havia certa prevalência, no meio acadêmico, do discurso favorecendo a flexibilização das regras de licitação e contratação. Desse contexto são exemplos o decreto nº. 2.745/98, das licitações da Petrobrás, e o regime de contratação integrada. Alisto-me, sem vergonha de dizer, dentre os que compartilhavam tal ideário. Hoje, porém, as inovações parecem ter caído em desgraça, inapelavelmente associadas aos esquemas de corrupção engendrados ao seu redor. Confesso que tenho grandes dificuldades em prosseguir defendendo mecanismos que aumentem a discricionariedade do gestor público na escolha de contratados. Sobreviverá o regime de contratação integrada?  E o procedimento de manifestação de interesse, ainda haverá quem o enxergue sem suspeição?

Sei que existe quem defende que as regras não estão na origem dos desvios – e que tudo teria se passado de igual forma mesmo sob a vigência integral da Lei 8666/93, o que provavelmente é verdade. Mas também não dá para ignorar que foi sob o amparo das novidades que muitos desvios foram praticados.

Qual a saída, então, para a contratação pública no Brasil? Defender uma vinculação completa do administrador ou, pior, como temem alguns, recrudescer ainda mais as amarras e os controles na contratação pública? Acabar com contratações integradas, diferenciadas ou qualquer heterodoxia das várias que foram gestadas nos últimos anos? Ou, ainda, em sentido oposto, apostar na maior flexibilização, admitindo que a Administração Pública, com discricionariedade outorgada pelo legislador, modele, caso a caso, os contratos a serem firmados?

Sou contra o recrudescimento das amarras e também não tenho nenhum apreço pela Lei n.º 8666/93. Muito pelo contrário. A Lei n.º 8666/93 falhou. Não conseguiu construir um regime de contratação pública minimamente eficiente. Nem teve êxito em conter a corrupção que grassa na contratação pública no país já há tanto tempo (vem de antes dela e provavelmente a sucederá). É necessário seguir em frente.

Todavia, para ficar numa das últimas novidades, não vejo com bons olhos o novo regime de contratação das estatais instituído pela Lei n.º 13.303/2016, que incorporou algumas das inovações dos últimos anos. Ali, o texto da lei é prolixo, cria um regime complexo. E sequer foi antecedido de maior debate. A saída deveria ser sempre simplificar, mas agora tenho dúvidas reais se simplificar também significa flexibilizar.

Qual o caminho para contratação pública no Brasil pós Lava-jato? No momento tenho mais perguntas que respostas, e muitas angústias.  Sinto que [professores e aplicadores do direito público] falhamos e continuamos falhando, e não tem sido pouco.

Da mesma forma, o que dizer dos múltiplos e variados sistemas de controle, internos e externos, da Administração Pública brasileira? Como foram capazes de permitir — ou melhor, não foram capazes de impedir — uma corrupção tão grande, endêmica e ruinosa?

Aqui, novamente, alguns dirão que são justamente os controles existentes que, operando, estão desbaratando os esquemas que há séculos fazem sangrar os cofres públicos. De fato, mas não há como negar que os poucos que agiram, tardaram. Nada ou quase nada foi feito para impedir que as quadrilhas se instalassem e tivessem êxito. Haveria como agir preventivamente de forma eficiente? E os controles internos de legalidade? As Procuradorias, Ministérios Públicos e Tribunais de Contas? Todas estruturas caras e inúteis? Ou será que a sua atuação, afinal, impediu que a sangria tivesse sido maior ainda? São questões que me ocorrem todos os dias, na leitura das notícias, no trânsito, e especialmente na sala de aula, diante do desafio de (me) explicar para os alunos. E agora, José?

Fico me perguntando, inclusive, se o Direito (público) é capaz de oferecer algum alento às questões éticas da nossa sociedade. Entretanto, mesmo que o problema não seja só jurídico — o Direito tem seus limites, não pode tudo — não dá para aceitar que não tenha sido minimamente capaz de conformar comportamentos aos seus ditames. Nesse oceano de escândalos de corrupção na máquina pública, percebe-se que políticos e administradores públicos vêm se valendo da lei, das regras, como suas aliadas na construção de simulacros de legalidade. O Direito não tem sido o limite, mas o instrumento. Na forma, na aparência, quase sempre tudo se passa perfeitamente dentro das regras do jogo...

E não pense o leitor que ficam nos capítulos da contratação e controle da Administração as inconsistências que reconheço na disciplina que leciono há quase duas décadas: servidores públicos — quem ousará mexer no seu sacrossanto e ultrapassado regime jurídico? –, bens públicos, desapropriação. Esses e outros são capítulos do direito administrativo construídos para uma realidade que não existe mais.  O espaço deste texto-desabafo seria pequeno para enumerar os problemas que me inquietam.

Peço desculpas se o tom é amargo, um tanto sombrio. É o sentimento que brota quando se descobre que alguém próximo, tão íntimo, tão cotidiano – que é a Administração Pública para um professor de direito administrativo – tem levado uma vida dupla. Que lhe esconde defeitos e vícios maiores do que aqueles que lhe atribuía, comete vilanias. Mesmo que tivesse romantismos e ingenuidades quanto à efetiva realização do interesse público pela Administração — e, creia-me, nunca os tive (public choice que o diga) —, é sempre duro pensar que o direito que é seu companheiro diário tem servido de ferramenta, e não de freio, justamente para tudo o que deveria evitar. Há aqui um quê de luto sendo elaborado.

Sei que é preciso prosseguir, que a minha geração precisa deixar de legado um país melhor, uma Administração Pública melhor. Deve existir um caminho que fique entre a paranoia de paralisar tudo por medo da corrupção e o deslanchar de aventuras novidadeiras a pretexto de se vencer a crise. No momento só está difícil saber onde ele fica. José, para onde? Cartas para a redação.



Por Patrícia Baptista (RJ)

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