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Desvio de Poder no Provimento Discricionário de Cargos Públicos

ANO 2016 NUM 140
Paulo Modesto (BA)
Professor de Direito Administrativo da UFBA. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Ministério Público da Bahia. Diretor-Geral da Revista Brasileira de Direito Público. Editor do site direitodoestado.com.br


13/04/2016 | 9909 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

I - DESVIO DE FINALIDADE NA NOMEAÇÃO DE TITULARES DE CARGOS DE PROVIMENTO DISCRICIONÁRIO

Desvio de finalidade é vício jurídico residente no processo de decisão discricionária. Traduz violação contextual da lei, pois somente pode ser reconhecido em dada situação concreta, quando se consiga demonstrar ou inferir que a finalidade do ato jurídico praticado pela autoridade é divergente da finalidade pública preordenada, explícita ou implicitamente, na norma de competência (Art. 2º, e, e parágrafo único, e, da Lei 4717/1965). Pode haver desvio de poder (ou desvio de finalidade) no âmbito administrativo, jurisdicional e legislativo.

No plano administrativo, as normas legais concessivas de margem de apreciação subjetiva para o administrador precisam sempre ser harmonizadas com os princípios constitucionais da administração pública. Por criarem competência discricionária não estabelecem zonas impermeáveis à juridicidade ou imunes ao controle jurisdicional. As teias da lei podem ser mais apertadas ou mais frouxas, mas sempre vinculam o exercício da função administrativa. Os princípios constitucionais tornam esta vinculação densa e evolutiva, pois possuem capilaridade semântica para absorver novas concretizações no curso do tempo. No entanto, é equivocada, por irrealista, a ideia de controle total da discricionariedade com fundamento no complexo de princípios contemplados no sistema jurídico.

Os princípios da administração não eliminam a discricionariedade, mas podem estreitar as fronteiras do mérito, compreendido como domínio residual de decisão entre alternativas juridicamente equivalentes ou que atendem satisfatoriamente ao interesse público no plano concreto da experiência. Eles programam finalidades, aglutinam interesses, restringem opções valorativas abstratamente abrigadas pela norma de competência, balizando a caracterização do interesse público no contexto a decidir. Na bela lição de CAIO TÁCITO, “não basta (...) que a autoridade seja competente, o objeto lícito e os motivos adequados. A regra de competência não é um cheque em branco concedido ao administrador. A administração serve, necessariamente, a interesses públicos caracterizados. Não é lícito à autoridade servir-se de suas atribuições para satisfazer interesses pessoais, sectários ou político-partidários, ou mesmo a outro interesse público estranho à sua competência. A norma de direito atende a fins específicos que estão expressos ou implícitos em seu enunciado. A finalidade é, portanto, outra condição obrigatória de legalidade nos atos administrativos” (TÁCITO, Caio. Temas de Direito Público, 1º. Vol, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 52).

Na mesma senda, CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, em clássica lição, diferenciava a discrição na norma e a discrição no caso concreto. Para o mestre paulista, a existência de discricionariedade ao nível da norma não significa que a mesma admita alternativas decisórias com a mesma amplitude perante o caso concreto. Em fórmula de síntese, escreveu que “a discrição suposta na regra de Direito é condição necessária, mas não suficiente, para que exista discrição no caso concreto; vale dizer, na lei se instaura a possibilidade da discrição, mas não uma certeza de que existirá em todo e qualquer caso abrangido pela dicção da regra”(Curso de Direito Administrativo, 32ª. Ed, São Paulo, Malheiros, 2015, p. 991).

Por isso, vícios de discricionariedade são vícios de ponderação. Ocorrem em concreto e apenas em concreto. Deles derivam decisões arbitrárias ou ilegítimas, por ausência de ponderação, deficiência de ponderação ou incorporação de elementos estranhos à ponderação prevista na norma de competência – nas modalidades desvio positivo ou negativo de ponderação, no dizer preciso de DAVID DUARTE (Procedimentalização, Participação e Fundamentação: para uma concretização do princípio da imparcialidade administrativa como parâmetro decisório, Coimbra, Almedina, 1996, p.454-466).

Recordadas essas premissas, a caracterização do vício de ponderação na designação discricionária de titulares de cargos públicos é tormentosa. Duas dificuldades imediatas merecem registro.

A primeira dificuldade é a prova do vício. Raramente é possível colher prova documental, pericial ou testemunhal do desvio de finalidade. Em regra, a prova é indiciária, formada a partir de um plexo de indícios convergentes, elementos de convicção que, isolados, não são decisivos, mas que somados conformam um quadro nítido de ilegalidade na aplicação do direito. O vício a demonstrar é objetivo, independe da prova de intento ardiloso ou doloso da autoridade. A origem da prova pode ser desconhecida ou mesmo derivar de procedimento padecente de irregularidade jurídica. O vício da prova não convalida o vício do ato ou impede a decretação da nulidade do ato por desconformidade teleológica. A prova colhida de forma viciada não permite a sanção disciplinar, civil ou penal, do infrator, pois a inadmissibilidade da prova ilícita é garantia individual fundamental (Art. 5º, LVI); porém, repercute sobre a validade do ato, que deve guardar fidelidade à ordem jurídica. A formação da prova do vício de ponderação é questão que desafia permanentemente a argúcia dos órgãos de controle, pois o vício de desvio de finalidade é quase sempre oculto, clandestino, dissimulado com a máscara da regularidade jurídica.

A segunda dificuldade é de natureza conceitual. É equívoco tratar do tema em bloco, sem distinguir situações jurídicas diversas comportadas na lei, com quebra da homogeneidade. As competências deferidas ao administrador para a investidura discricionária de agentes em cargos públicos não são uniformes. Ao contrário do que advoga o saber convencional, não há apenas cargos públicos efetivos e cargos de confiança na ordem jurídica brasileira. Há situações de maior e menor campo de discrição administrativa, situações de discricionariedade exercida de forma unilateral ou de forma compartilhada, distinções dentro da própria categoria dos cargos comissionados pouco exploradas pela doutrina.  A compreensão adequada do tema, por isso, pressupõe uma renovada classificação dos cargos públicos no sistema administrativo brasileiro. É o que se aborda a seguir.  

II  - CLASSIFICAÇÃO DOS CARGOS PÚBLICOS NO BRASIL

A Constituição da República dispõe, em seu art. 37, II, o seguinte:

“II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;" (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

O dispositivo pode ser interpretado como uma determinação de formas distintas de provimento ou de tipos distintos de cargos público, caracterizados pela forma do provimento. São enfoques diferentes para compreensão do mesmo enredo normativo: o primeiro enfatiza o aspecto dinâmico do provimento; o segundo, o elemento estável dos cargos públicos. Pelo primeiro, identifica-se no sistema jurídico a legitimidade de provimentos vinculados e de provimentos discricionários em matéria de acesso a cargos públicos. Pelo segundo enfoque, afirma-se uma discriminação positiva para tipos distintos de cargos públicos: a conhecida classificação entre cargos efetivos e cargos em comissão.

Trata-se de classificação dicotômica que permite identificar ao menos dois aspectos relevantes na caracterização dos cargos públicos. 

Quanto à vocação de permanência de seus titulares os cargos públicos se dividem em:

a)    cargos de provimento definitivo (os cargos de provimento efetivo e os cargos de provimento vitalício) e

b)   cargos de provimento precário (os cargos de confiança ou cargos em comissão, de livre designação e exoneração).

Quanto à natureza do ato de provimento, os cargos públicos podem ser divididos em:

a)    cargos de provimento vinculado (v.g., cargos investidos por concurso público);

b)   cargos de provimento discricionário (cargos de livre nomeação e exoneração).

Essa classificação dicotômica revela-se didática: os cargos efetivos são cargos de provimento definitivo e vinculado, pois se caracterizam exatamente por permitir a aquisição da estabilidade (ou vitaliciedade) de seus titulares e por dispensarem a valoração subjetiva do administrador na escolha do agente a ser investido na função, uma vez que a investidura é submetida à observância criteriosa da ordem de classificação resultante do concurso público; os cargos em comissão, diversamente, são caracterizados pelo provimento precário e discricionário, pois não asseguram a permanência do titular na função e exigem sempre a avaliação subjetiva do administrador público quanto ao merecimento e capacidade do agente para a sua investidura no cargo.

A distinção entre cargos efetivos e cargos em comissão fez fortuna entre os administrativistas, sendo recebida como dogma e mencionada frequentemente como se esgotasse as categorias possíveis de cargos públicos quanto à forma de provimento na ordem constitucional brasileira.

No entanto, a Lei Fundamental, em diversas passagens, escapou à dicotomia entre cargos em comissão, de livre provimento e livre exoneração, e cargos efetivos, de provimento definitivo e vinculado, antecedido por concurso público.  A Constituição Federal encerra diversas hipóteses em que não há livre nomeação e livre exoneração no provimento de cargos públicos, mas também não há exigência de concurso público ou caráter definitivo no provimento.

Em trabalho anterior, sobre estágio probatório, constatei a lacuna doutrinária na matéria, dedicando ao assunto uma singela nota de rodapé (MODESTO, Paulo. “Estágio Probatório: questões controversas”, In: MODESTO, Paulo e MENDONÇA, Oscar (Org.). Direito do Estado: novos rumos. Tomo 2. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 59). Posteriormente, voltei ao assunto com maior desenvolvimento para tratar das questões jurídicas suscitadas pelo tema do nepotismo em cargos político-administrativos (MODESTO, Paulo. Nepotismo em Cargos Político-Administrativos. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo [et ai.] (org.). Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 260-298). O fato é que permanece urgente uma revisão da classificação tradicional dos cargos públicos, especialmente com o aumento significativo do número de Agências Reguladoras no Brasil, entidades cujos dirigentes são nomeados em geral apenas após aprovação do Senado Federal e, uma vez empossados, passam a gozar de estabilidade por período determinado, não podendo ser exonerados ad nutum.

Na ausência de melhor designação, denominei essas hipóteses constitucionais de cargos de provimento condicionado ou exoneração condicionada, uma vez que, embora prescindam de concurso público e admitam avaliação subjetiva do administrador na escolha dos seus exercentes, apresentam como peculiaridade negar a livre nomeação, a livre destituição ou as duas decisões discricionárias típicas dos cargos em comissão. Exemplos não faltam: Presidente e diretores do Banco Central (Art. 52, III, d, CF); Governador de Território (Art. 52, III, c, CF); Procurador -Geral da República (Art. 52, III, e, CF); titulares de cargos que a lei determinar (art. 52, III, f, CF); Ministros dos Tribunais de Contas, indicados pelo Presidente da República (art. 52, III, b, CF); magistrados escolhidos pelo Poder Executivo, nos casos estabelecidos na Constituição (art. 52, III, a, CF). Não é possível continuar a enquadrar essas hipóteses na categoria dos cargos em comissão de livre provimento ou livre exoneração. Esses cargos possuem regime de provimento diferenciado, conquanto também sejam providos mediante decisão discricionária, pois revelam limitações à livre escolha ou à livre exoneração. Tampouco exigem funções necessárias de direção, chefia ou assessoramento,  reversamente do que ocorre com os cargos em comissão (Art. 37, V, da Constituição Federal). Sob o ângulo do observador da estrutura do processo de decisão, estes cargos podem ser nominados também como cargos de provimento compartilhado ou cargos de provimento discricionário compartilhado, tendo em conta a pluralidade de órgãos necessários para a plena eficácia do provimento.

O número de cargos de provimento ou desligamento condicionado não cessa de aumentar, tendo em vista a cláusula aberta do art. 52, III, f, da Constituição, que delega à lei prever novas hipóteses de prévia aprovação do Senado Federal para nomeação de agentes públicos. A previsão, como antes referido, tem sido aplicada com frequência para o provimento de cargos de conselheiros ou diretores de Agências Reguladoras, cuja designação prescinde de concurso público, exige a concordância do Senado Federal e confere ao titular, durante determinado lapso de tempo, garantias semelhantes à estabilidade dos servidores ocupantes de cargos de provimento efetivo (cf., v.g., Lei n. 9.427/96, art. 5o, caput e parágrafo único; Lei n º 9.472/97, art. 8o, §2o, 23 e segs; Lei no. 9478/97, art. 11, §2o e 3o.; Lei n. 9.986/2000, art. 5o. e segs.).

As classificações anteriores, enriquecidas com o novo tipo de cargo em face da forma do provimento, deixam de coincidir, pois os cargos públicos de provimento condicionado podem ser vocacionados à permanência do titular (v.g., Ministros dos Tribunais de Contas, Ministros dos Tribunais e Desembargadores egressos do quinto constitucional), vinculados a mandatos fixos (v.g., Procurador—Geral da República, diretores de Agências Reguladoras) ou precários (v.g., Presidente do Banco Central), conforme a hipótese concreta.

A classificação dos cargos públicos quanto ao provimento deve ser recomposta em termos tricotômicos:

a)      quanto à vocação de permanência do titular no cargo público:

a.1.) cargo de provimento definitivo

a.2.) cargo de provimento a termo

a.3.) cargo de provimento precário

b)      quanto à natureza do ato de provimento:

b.1) cargo de provimento vinculado

b.2.) cargo de provimento condicionado

b.3.) cargo de provimento livre

Embora fiel à riqueza do texto Constitucional Brasileiro, a nova classificação não deve ser interpretada de forma literal. Há sempre algum grau de vinculação em todo provimento de cargo público. O provimento dos cargos públicos nunca é totalmente livre (deve observar, em especial, os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade e igualdade). O provimento condicionado ora deriva de ato unilateral de direção (sujeito a controle ou confirmação posterior) ora exige prévio (e restritivo) ato de escolha ou concordância de outros atores institucionais (decisão condicionada a listas tríplices, sêxtuplas, aprovação congressual etc). A homogeneidade em cada categoria é enganosa.

De qualquer forma, o vício do desvio de poder somente pode ocorrer no provimento de cargos em comissão e na escolha dos titulares de cargos de provimento condicionado. É óbvio que o aumento do grau de discricionariedade da escolha eleva o risco de favorecimento injustificável ou de vício no processo de decisão pública. O vício do desvio de poder é vício residente na ponderação discricionária. No desvio de poder, de que o nepotismo é o exemplo mais conhecido, o agente público deixa de realizar a ponderação exclusiva dos interesses públicos relevantes para incluir na estrutura do processo decisório administrativo a tutela de interesses estranhos ao bem comum (res publica).

Não há como cogitar de nepotismo ou de outra forma de desvio de poder no processo decisório destinado a provimento vinculado de cargo público. Se o concurso público é válido, a aprovação de parentes do governante não importa em qualquer vício de nepotismo ou desvio de poder. O que não significa que atos subsequentes incidentes sobre a carreira do agente nomeado, manejados a partir de competência discricionária, não possam por em causa o vício do nepotismo, a exemplo de cessões generosas e promoções sem critério material legítimo que beneficiem parentes da autoridade administrativa.

Os cargos públicos submetidos a sufrágio popular são também cargos públicos de provimento vinculado. A classificação destes cargos como cargos políticos considera a natureza das funções a serem exercidas e não a forma do provimento. A eleição é um processo seletivo válido para definição impessoal e vinculada de mandatários da coletividade. Os eleitos podem possuir parentes no serviço público; se há elegibilidade, a posse dos eleitos é válida e legítima. É ato vinculado. É confusão classificar os cargos políticos como terceiro tipo de cargo, ao lado dos cargos em comissão e dos cargos efetivos, considerado o critério da forma de provimento.


III - CARGOS POLÍTICOS COMO CARGOS PÚBLICOS DE PROVIMENTO DISCRICIONÁRIO UNILATERAL, PROVIMENTO VINCULADO OU PROVIMENTO DISCRICIONÁRIO COMPARTILHADO

Não há conceituação pacífica de agentes políticos ou cargos políticos.

Para HELY LOPES MEIRELLES os “agentes políticos são os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais”, bem como as “demais autoridades que atuem com independência funcional no desempenho das atribuições governamentais, judiciais ou quase judiciais, estranhas ao quadro do funcionalismo estatutário”. Na categoria, bastante ampla como se pode ver, inclui o autor os Chefes do Poder Executivo, seus auxiliares diretos, os membros do Poder Legislativo, da Magistratura, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e os representantes diplomáticos (2003:75). Para o autor, os agentes políticos se caracterizariam pela plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições sem submissão à hierarquia administrativa, devendo sujeição apenas aos graus e limites constitucionais de suas respectivas funções. Exercitam “prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais. Têm normas especificas para sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhe são privativos” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 76). 

Os agentes políticos (e consequentemente os cargos políticos) são conceituados de forma mais restrita por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO como os “titulares dos cargos estruturais à organização política do país, ou seja, ocupantes dos [cargos] que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do poder” (2012: 251). Seriam agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo (Ministros e Secretários), os Senadores, os Deputados federais e estaduais e os Vereadores. Os agentes políticos se caracterizariam por manter liame de natureza política, independente de habilitação profissional ou técnica, e por serem erigidos a representantes da sociedade a partir da qualidade de cidadãos, respondendo ainda pela formação da “vontade superior do Estado” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª.ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 252).

MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, realizando o registro fiel das duas posições doutrinárias, adere ao conceito mais restrito, destacando ser este preferível. Segundo a autora, “a ideia de agente político liga-se, indissoluvelmente, à de governo e à de função política, a primeira dando ideia de órgão (aspecto subjetivo) e, a segunda, de atividade (aspecto objetivo)” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 582). A função política compreende, segundo a autora, basicamente as “atividades de direção e as colegislativas, ou seja, as que implicam a fixação de metas, de diretrizes, ou de planos governamentais” (idem, p. 582). A autora recusa incluir na categoriza de agentes políticos os membros da Magistratura, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, por não exercem funções de governo, mas reconhece que atualmente há uma “tendência a considerar os membros da Magistratura e do Ministério Público como agentes políticos” (idem, p. 583). Afirma que os primeiros podem ser incluídos na categoria de agentes políticos se redefinida a função política no sentido de “exercício de uma parcela da soberania do Estado”, a “função de dizer o direito em última instância” (idem, p. 583). Neste sentido, cita a posição do STF no Recurso Extraordinário 228.977/SP, em que foi relator o Ministro NERI DA SILVEIRA, que se referiu aos magistrados como “agentes políticos, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica” (DJ 12/04/2002). Mas no tocante aos membros do Ministério Público, afirma MARIA SYLVIA que a inclusão na categoria de agentes políticos tem sido justificada pelas funções de controle que lhe foram atribuídas a partir da Constituição de 1988, mas não identifica nisso relevo suficiente para alterar a sua categorização como agentes administrativos, equivalente aos demais servidores estatutários (idem, p. 583).

Lamentavelmente, encontro dificuldades em seguir qualquer das duas orientações expostas. A primeira orientação parece excessivamente ampla; a segunda, excessivamente restritiva. Não é suficiente que se exercite função pública com ausência de subordinação direta para que se tenha agente político; é necessário que a atividade possua dimensão política, no sentido radical e original do termo, é dizer, refira-se diretamente aos destinos da polis e ao poder soberano do Estado. Funções administrativas exercidas com independência, sem subordinação hierárquica, mas que não expressam qualquer poder soberano do Estado e não possuam existência necessária, não devem arrastar seus titulares para o conceito de agentes políticos (v.g., os dirigentes de Agências Reguladoras, os reitores e os integrantes de colegiados consultivos etc.). Por outro lado, parece também excessiva restrição afastar os membros da magistratura, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas do conceito de agentes políticos, pois cada um deles, de diferentes formas, exercitam função de soberania, com independência, regime jurídico peculiar e regime de responsabilidade igualmente diferenciado em relação aos demais agentes administrativos. Não por acaso a Constituição Federal prevê, expressamente, o julgamento desses agentes por crime de responsabilidade em diferentes disposições (Art. 52, II, 85, V, 102,I, c, da CF, regulamentadas pelas Leis 7.106/1983 e 1.079/1950). Não é por acaso também que os Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas possuem as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça ou dos Desembargadores dos Tribunais de Justiça Estaduais, conforme o caso (Art. 73, §3º, CF). Não é sem razão que a Constituição Federal considera crime de responsabilidade do Presidente da República atentar contra a Constituição Federal, com destaque para o “livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação” (Art. 85, II, CF). Não é sem propósito que a Constituição atribui ao Chefe do Ministério Público a iniciativa de lei para a criação e extinção de cargos e serviços auxiliares no Ministério Público, a definição de sua política remuneratória e os planos de carreira (Art. 127, §2º, CF) e exige deliberação da maioria absoluta do Poder Legislativo para destituição dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Território (Art. 128, §4º, CF). É por reconhecer nessas funções especial caráter político, por fim, que a Constituição atribuiu ao Senado Federal o encargo de aprovar, previamente, por voto secreto, após arguição pública, a escolha de magistrados, nos casos estabelecidos na Constituição; Ministros do Tribunal de Contas da União, indicados pelo Presidente da República, e do Procurador-Geral da República (Art. 52, III, CF).

O Ministério Público, por seu Procurador-Geral, quando opina pelo arquivamento de inquérito policial, não exercita prerrogativa exclusivamente administrativa, mas função soberana, na medida em que a decisão é incontrastável pelo Poder Judiciário, ressalvada a hipótese de ilegalidade ou abuso de poder. Mesmo nestes casos, entrega-se novamente a deliberação do jus persequendi do Estado ao Ministério Público.

Neste cenário, considero agentes políticos todos os agentes públicos que exprimam prerrogativas de soberania, a partir de vínculo profissional ou político, investidos por eleição, concurso, nomeação ou delegação, e sujeitos a restrições, deveres e responsabilidades especiais enumeradas e disciplinas na Constituição Federal. Se acrescentarmos a esses atributos o da plena independência funcional, presente no regime jurídico de vários agentes políticos teríamos de retirar do conceito, por exemplo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais, entre outros agentes, o que parece igualmente exagerado, considerando diversas disposições constitucionais de destaque (v.g, Art. 76; 29, 84, II; 87; 91, VIII e Art. 102, I, c, todos da CF). 

Portanto, considero legítima a distinção entre cargos políticos e cargos meramente administrativos. Em termos conceituais, a partir de dispositivos constitucionais relativos ao provimento, confirmação e permanência no cargo, regime de retribuição, incompatibilidades, deveres e responsabilidades, é possível extrair peculiaridades para caracterizar o regime jurídico dos titulares de cargos políticos. O erro é considerar essa categoria uniforme. Não há uniformidade. Há cargos político-administrativos e cargos político-representativos. Nos primeiros – os cargos político-administrativos - os agentes são investidos por designação unilateral da autoridade superior, o provimento é precário e sem condicionamento procedimental, enquanto nos segundos – os cargos político-representativos - os agentes são investidos por sufrágio, popular ou corporativo (isto é, realizado pelos próprios pares do investido) ou por concurso público, isto é, possuem provimento vinculado ou condicionado, definitivo ou a termo (exercem mandato). São situações completamente distintas, que exigem tratamento jurídico diferenciado. Nos primeiros cabe sempre avaliar a legitimidade da designação por eventual nepotismo ou favorecimento indevido, isto é, cabem sempre as restrições antinepotismo ou repressoras do desvio de poder (ex. cargos de Ministros de Estado, secretários estaduais e municipais); nos demais, por definição, nunca cabe cogitar de nepotismo ou desvio de poder, quando se tratar de provimento vinculado (nomeados por concurso público ou eleitos por sufrágio direto) ou pode caber apenas de forma residual quando se entregar à autoridade o exercício de discricionariedade reduzida em decisão final de processo de provimento condicionado (escolha discricionária de agente a partir de lista de candidatos formada originalmente por outros órgãos ou quando se tratar de designação de agentes sujeita à aprovação por órgão diverso).

Portanto, se desejarmos elaborar uma classificação dos cargos públicos quanto à natureza das funções, um quadro mínimo deveria conter as seguintes distinções:

a)      cargos administrativos

b)      cargos políticos

b.1) cargos político-administrativos (designação por provimento unilateral e precário

b.2) cargos político-representativos (designação por provimento condicionado ou vinculado, definitivo ou a termo).

A dificuldade de precisar o conceito de agente político (e, consequentemente, de cargo político) deve servir como advertência à criação de distinções entre essa categoria de cargos e a de cargos administrativos em geral, sem base direta na Constituição quanto ao regime jurídico dos agentes neles investidos.  Não é o caso de recordar aqui todo o debate que foi suscitado sobre a aplicação aos agentes políticos da ação de improbidade administrativa, sob o argumento de estarem submetidos à legislação especial, que versa sobre os crimes de responsabilidade e não à Lei 8.429/1992 (NEVES, Daniel Amorim Assumpção e OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p. 46-53). Por isso, sem presumir tratamento mais favorável ao provimento discricionário de cargos político-administrativos que o texto Constitucional não realizou, tenho como sem qualquer base constitucional as ressalvas que ao largo da Súmula Vinculante n. 13 vem sendo admitidas para afastar o amplo controle da escolha de titulares dos cargos político-administrativos (cargos de provimento unilateral).

O fato de a Constituição Federal dispor ser o Poder Executivo exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado (Art. 76, CF), denota que a função desses auxiliares possui direta relevância política, mas não importa em qualquer imunidade quanto aos deveres de atuação impessoal, moral, igualitária, eficiente do Chefe de Estado na designação desses agentes de natureza político-administrativa.

Em uma República, exige-se do Chefe de Estado, mas não apenas dele, conduta exemplar, é dizer, paradigmática para os seus subordinados, obsequiosa do interesse público e não do interesse privado. Se o estatuto dos servidores da União, em norma singela, reproduzida em diversos outros diplomas legais no país, veda ao servidor público “manter sob sua chefia imediata, em cargo ou função de confiança, cônjuge, companheiro ou parente até o segundo grau civil” (Art. 117, VIII, da Lei 8.112/90), como aceitar, apenas pelo relevo das missões desempenhadas pelos Ministros de Estado, Secretários Estaduais e Municipais, que o Chefe do Poder Executivo possa realizar por designação discricionária unilateral exatamente o mesmo comportamento reprimido pela norma estatutária?

É útil recordar, nesse passo, FÁBIO KONDER COMPARATO sobre as bases do regime republicano:

“A essência do regime político republicano encontra-se na distinção entre o interesse próprio de cada um em particular e o bem comum de todos, com exigência de este se sobreponha sempre àquele. Os indivíduos podem viver isoladamente em função do interesse particular. É a ideia expressa pelos pensadores políticos dos séculos XVII e XVIII, com a fórmula do ‘estado da natureza’. Mas a convivência política exige o respeito superior ao interesse comum de todos os membros do grupo social (‘o estado civi’)”( COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 617-618).

Ora, respeitar o interesse comum, dirigir-se ao interesse público, exige do agente público republicano a adoção de critérios igualitários e de mérito no acesso aos cargos públicos de sua livre escolha, em qualquer estrato do Poder, dentro do Estado. Todos são iguais em uma República, são cidadãos, com cargas públicas e direitos iguais.  A proteção de privilégios de origem familiar na intimidade do Estado é a antítese do regime republicano. Por igual,  sustentar a insindicabilidade de designações de agentes sem qualificação técnica para os mais elevados postos da administração ou a insindicabilidade do provimento unipessoal de cargos comissionados por sua natureza político-administrativa é manifestação ultrapassada de patrimonialismo. Os cargos públicos não são propriedade dos exercentes temporários do poder.

Os agentes que figuram nos escalões superiores da Administração Pública não estão alforriados dos princípios constitucionais da administração pública, em particular os previstos no Art. 37, da Constituição da República. É equivocado introduzir distinção – independente da forma do provimento e suas características – entre cargos políticos e simples cargos administrativos, para dispensar o provimento dos primeiros de obediência aos princípios da moralidade, legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Caberá distinção na intensidade de controle apenas quando couber distinção no tocante à forma de provimento: provimento vinculado, condicionado ou livre provimento unilateral (subdivididos, apenas estes últimos, em cargos comissionados administrativos ou político-administrativos).

No tema do nepotismo, espécie de desvio de poder, o Supremo Tribunal Federal, que no RE 579.951/RN, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJE 12.9.2008, e na Reclamação 6650 MC-AgR/PR, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJe-222, 20/11/2008, publicação 21.11.2008, assentou que a Súmula Vinculante n. 13 era inaplicável a cargo de natureza política, deparou-se na sequência com diversos casos em que reconheceu a necessidade de censurar situações de fraude, abuso e desvio de finalidade na nomeação de parentes para cargos políticos de primeiro escalão e, aos poucos, passou a reverter a orientação inicial.

A reação contra abusos em matéria de nepotismo em cargos político-administrativos iniciou na RCL. 8.625, ELLEN GRACIE, DJe 26.4.2010. Merece referência também a decisão na RCL 6.938 MC/MG, CÁRMEN LÚCIA, DJE-169, 02/09/2011; na RCL 12.478-MC/DF, JOAQUIM BARBOSA, DJe 08/11/2011; a Rcl 11.605 MC/SP, CELSO DE MELLO,DJe 02/08/2012. Na Rcl 15.571 MC/RS, o Rel. Min. MARCO AURÉLIO, j. 24/05/2013, DJe-102 29/05/2013, recusou a reclamação e afirmou expressamente: “O teor do Verbete não contém exceção quanto ao cargo de secretário municipal”. Na Rcl 16941 MG, Rel. Min. LUIZ FUX, 18/12/2013, DJe-022 31/01/2014, o relator recusou a reclamação, e foi além: considerou que os precedentes invocados na reclamação tratavam de situações subjetivas, sem guarida na Súmula Vinculante 13. Em todos esses processos, conquanto em causa nomeação de agentes para cargos político-administrativos, houve na jurisdição de origem censura judicial, anulação ou suspensão das nomeações por desvio de finalidade, sendo mantidas as decisões pelo Supremo Tribunal Federal. Todos trataram de cargos políticos-administrativos, espécie de cargos comissionados, cujo provimento é discricionário e unilateral.

III - CONCLUSÃO

No provimento discricionário de cargos em comissão, nomeadamente dos cargos político-administrativos, há campo para aplicação de todas essas noções fundamentais. O ato de nomeação desses agentes é pouco exigente em termos processuais formais, porque é ditado de forma unilateral e não compartilhada com outros órgãos estaduais, mas há limitações materiais evidentes.

A investidura não pode ser arbitrária, destinada a funções estranhas às de direção, chefia e assessoramento, restrição que não se observa no regime dos cargos de provimento condicionado ou compartilhado. A investidura não pode favorecer agentes sem capacitação profissional suficiente para a complexidade das funções a exercer, independentemente de o cargo contemplar atribuições simplesmente administrativas ou político-administrativas. A investidura pressupõe motivo legítimo e finalidade de interesse público. Não pode dirigir-se a cobrir interesses pessoais, familiares ou simplesmente partidários. Não pode voltar-se a intuitos de perseguição ou favoritismo. Tudo isso porque não há cargo público sem finalidade pública ou alheio aos princípios gerais da Administração Pública. A prova do desvio é delicada e tormentosa, mas é possível, desde que revelada por indícios convergentes, não podendo ser afastada pelo caráter genericamente político das funções exercidas.

O desvio de poder é atuação estatal particularmente grave. Permanece atual a advertência de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, segundo a qual, o desvio de poder é violação “mais perigosa ainda do que aquela que resulta de violação desabrida da lei”. Do seu controle não pode se demitir o Poder Judiciário ou os demais órgãos de controle, pois, como ensina o mesmo mestre:

“Por ser mais sutil, por vestir-se com trajes de inocência, é mais censurável. Revela uma conduta soez, maculada pelo vício de má fé. E o Direito abomina a má fé. Assim, é vício de particular gravidade. Sobre sê-lo, é, também, de especial periculosidade. Isto porque, se o Poder Judiciário, em face dele, mostrar-se excessivamente cauto, tímido ou, indesejavelmente, precavido em demasia contra os riscos de invasão do mérito do ato administrativo, os administrados ficarão a descoberto, sujeitos, portanto, a graves violações de direito que se evadam à correção jurisdicional” (Discricionariedade e Controle Jurisdicional, São Paulo, Malheiros, 1992, p.58).



Por Paulo Modesto (BA)

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