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Tributo a Alice Gonzalez Borges

ANO 2018 NUM 419
Paulo Modesto (BA)
Professor de Direito Administrativo da UFBA. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Ministério Público da Bahia. Diretor-Geral da Revista Brasileira de Direito Público. Editor do site direitodoestado.com.br


17/10/2018 | 3794 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Sumário: 1. Preâmbulo. 2. Alice Gonzalez Borges: intelectual pioneira. 3. Minha relação com Alice. 4. A Eternidade Possível: o presente reconciliado.

1.PREÂMBULO

Na gramática das Academias homenagens póstumas recebem um lugar de destaque. Não é por nostalgia. Nessas sessões especiais adquirimos a consciência do tempo e transmitimos um resumo do legado, intelectual e humano, dos que nos antecederam. As sessões de saudade são oportunidades para a Academia armar pontes entre gerações e fundir no horizonte temporal passado, presente e futuro.

A consciência do tempo não é o tempo, mas a experiência subjetiva possível do tempo, que é fluxo e, como tal, inapreensível. SANTO AGOSTINHO bem o dizia: o correto não é enunciar-se passado, presente e futuro, porém o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. Na sua forma poética, ensinava o filósofo, que “o presente do passado é memória; o presente do presente é intuição direta; o presente do futuro é a espera”. Por isso, digo eu, o tempo subjetivo ou existencial é a conjugação simultânea em nós das múltiplas dimensões do tempo objetivo ou cronológico. Sem consciência do passado, ou do presente passado, permanecemos ingênuos; sem a consciência do presente futuro, sucumbimos ao imediatismo e à melancolia. O mesmo ocorre com as Academias: amadurecem a sua consciência do tempo quando reconhecem a coexistência temporal, que é fusão e síntese, e não se abandonam à simples sucessão e mudança de integrantes.

Hoje homenageamos ALICE GONZALEZ BORGES, intelectual pioneira: a primeira mulher a ingressar nesta Casa, a sua primeira mulher presidente e a primeira presidente a ser reeleita. Mas ALICE foi muito mais do que uma mulher vitoriosa.

Tenho comigo uma soma de lembranças e afetos, mas antes de falar sobre minha relação com ALICE, quero registrar um pouco mais de sua história pessoal.

2. ALICE GONZALEZ BORGES: INTELECTUAL PIONEIRA

ALICE MARIA GONZALEZ BORGES nasceu em 19 de abril de 1929, alguns meses antes do “Crash” da Bolsa de Nova York, que ocorreu em 24 de outubro de 1929. Período tumultuado, que desencadeou uma crise econômica mundial sem precedentes e derrubou o preço internacional do café, que representava à época 70% das exportações brasileiras. No plano político, a crise favoreceu a deflagração do Golpe de 30, que depôs WASHINGTON LUIS, impediu a posse do presidente eleito, JULIO PRESTES, e conduziu ao governo GETÚLIO VARGAS. Era um período conservador nos costumes, caracterizado por ainda exaltar a figura feminina tradicional, submissa e preparada para as atividades domésticas. O voto feminino, por exemplo, somente veio a ser consagrado no Brasil em 1932.

ALICE GONZALEZ BORGES veio ao mundo nesse contexto, porém soube estar à altura e até além de seu tempo. Filha única de uma empregada doméstica, de nome GUIOMAR, com o galego VENANCIO, dono de uma pastelaria no Cabeça, a “Casa Moderna”, aos dez meses de idade foi deixada sob os cuidados da patroa de GUIOMAR, a dentista ALICE PAVIE MERCEZ, em razão da definitiva separação de seus pais. VENANCIO regressou para a Espanha e somente voltou a Salvador quando ALICE GONZALEZ já contava quase cinco anos de idade; da mãe natural, GUIOMAR, não se conhece o paradeiro. O nome ALICE – de origem francesa, que significa “de qualidade nobre”, “de linhagem nobre”, versão francesa de Adeliz, Alesia, Aliz – foi-lhe dado por influência de ALICE PAVIE, quem efetivamente a criou e foi a sua verdadeira mãe por toda à vida.

ALICE PAVIE era uma mulher extraordinária, que nasceu na Bahia, mas fez toda a sua formação escolar inicial em Paris, pois era filha de pais franceses. Regressou a Salvador aos treze anos sem falar uma única palavra em português e precisou continuar seus estudos. Foi uma aluna muito aplicada, tendo concluído o curso de odontologia com distinção, algo raríssimo à época. Formou-se cirurgiã-dentista aos 19 anos de idade, no ano de 1908. Superou a morte do pai e passou grandes dificuldades financeiras com os seus três irmãos e a mãe. Foi uma mulher batalhadora e estudiosa, que lutou por toda a vida contra o preconceito contra a mulher e, no belo relato de ROSELENA GONZALEZ BORGES, influenciou com seu exemplo de independência, perseverança e coragem a pequena ALICE, conseguindo tornar-se “uma dentista afamada, com grande clientela entre as famílias mais ilustres da Bahia, especialmente mulheres e permaneceu solteira.”

ALICE BORGES aprendeu a ler muito cedo, aos 5 anos de idade, tendo passado a frequentar a escola da Santa Casa de Misericórdia, depois a Escola da Professora Quinquinha e a Escola Antonio Maria, onde ganhou prêmio aos oito anos de idade do Rotary Club. O seu ingresso no Colégio da Bahia foi um desafio. Na primeira tentativa, perdeu. Na segunda, depois de reforçar os estudos sem descanso, foi a melhor aluna na seleção de ingresso, sendo conhecida no Colégio da Bahia como a “menina do 100”, por haver obtido nota 100 em todas as matérias.

Recebeu sólida formação religiosa, sobretudo espírita, por influência de sua mãe de criação. Nas terças-feiras e nos domingos ALICE GONZALEZ frequentava a União Espirita da Bahia. Nesse local, sua mãe de adoção conheceu ALFREDO MERCEZ, vindo a casar-se com ele. ALFREDO MERCEZ foi depois eleito Presidente da União Espírita da Bahia e foi uma influência marcante na criação de ALICE GONZALEZ, pois – por estímulo de ALFREDO – ela venceu a timidez e passou a ser pregadora na União Espírita, descobrindo assim desde cedo a sua capacidade de elocução didática.

No Colégio da Bahia ALICE conheceu aquele que viria a ser seu esposo, JAFÉ BORGES. Ela contava dezoito anos; ele, vinte e um. O encontro foi definitivo: JAFÉ sequer pediu ALICE em namoro, convidando-a de pronto a casar-se com ele. Ela aceitou, o que causou espanto em todos à época, pois eram dois jovens, sem emprego e sem sustento próprio.

Mas ALICE era uma mulher decidida: no último ano do curso no Colégio da Bahia, iniciou sua preparação para o vestibular da Faculdade de Direito da Bahia (futura Faculdade Federal) e ao mesmo tempo estudava para o concurso público destinado ao provimento de cargo de serventuário do Tribunal de Justiça. Foi aprovada em ambas as seleções e, enquanto aguardava a nomeação para o Tribunal de Justiça, passou a ensinar francês no Ginásio Brasil para manter-se e pagar seus estudos.

Na Faculdade de Direito da Bahia ganhou o prêmio ANFILÓFIO DE CARVALHO, cujo júri era presidido por NELSON SAMPAIO, e que assegurava a gratuidade ao vencedor de um ano de Faculdade.  Naquele tempo a Faculdade de Direito da Bahia era paga.

Foi quando se preparava para o concurso do Tribunal de Justiça que ALICE travou seu primeiro contato com o direito administrativo. Na Faculdade de Direito, porém, detestava a matéria, embora gostasse de seu professor, LAFAYETTE DE AZEVEDO PONDÉ. A disciplina foi a única em que ALICE não foi aprovada de pronto, tendo ficado para a prova final, prova oral, adiada várias vezes por LAFAYETTE. Em cada um dos adiamentos da prova ALICE estudava mais a disciplina e foi assim que terminou enamorando-se pelo direito administrativo. Os vários adiamentos da prova oral também provocaram adiamentos sucessivos do casamento de ALICE, que não admitia casar enquanto estivesse em mora com o seu curso. Concluiu a sua graduação em 1952.

No Tribunal de Justiça, ALICE fez carreira brilhante, ascendendo aos principais cargos da área administrativa. Conduziu processos administrativos disciplinares; secretariou os concursos do tribunal; colaborou na reforma do órgão; ajudou na criação do serviço de estatística e do serviço de ementário; participou da criação da Revista Jurídica do Tribunal (depois renomeada para Bahia Forense); coordenou a reorganização da Biblioteca, assessorou a Presidência do Tribunal em diversas tarefas, tendo atuado como Procuradora de Justiça “ad hoc” em sessões quando ausente algum Procurador de Justiça. O Tribunal retribuía os seus esforços confiando-lhe missões de relevo, como representar o órgão nos estudos da reforma administrativa de 1966 e organizar e documentar encontros científicos e institucionais de responsabilidade da Corte. Foi em um desses encontros que ALICE conheceu OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, nesse momento desembargador e presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Por impedimento, em razão do cargo ocupado no Tribunal, nessa época ALICE não advogava, mas por algum tempo auxiliou JAFÉ no escritório de projetos industriais destinados à análise da SUDENE.

Quando foi criada a Procuradoria Geral do Estado, ALICE participour do primeiro concurso para Procurador, tendo sido aprovada e bem classificada. Novamente pioneira: foi a primeira mulher a ser aprovada em seleção pública para a Procuradoria do Estado da Bahia. Na Procuradoria, foi conduzida a atuar junto à Secretaria de Administração, sendo depois transferida para a procuradoria especializada administrativa, onde trabalhou com PAULO SPÍNOLA, sendo depois convidada para assistente do Procurador-Geral. Disciplinada e metódica, ALICE chamou a atenção de DILSON DÓREA, que sugeriu que ela ensinasse na UCSAL. A ideia foi bem acolhida por MANOEL RIBEIRO, que a ajudou a assumir algumas turmas de direito administrativo. 

Anos mais tarde, ALICE escreveu tese para concorrer a professora titular de direito administrativo da UCSAL, o conhecido livro Normas Gerais no Estatuto de Licitações e Contratos Administrativos, Ed. Revista dos Tribunais, 1991, 2ª. tiragem, 1994. Foi vitoriosa também nesse projeto, sendo ainda indicada para professora titular da Universidade Salvador. Além desse livro, escreveu mais de sete dezenas de artigos e ensaios, alguns dos quais reunidos no livro Temas de Direito Administrativo Atual, vol. 1, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2004. ISBN 85-89148-41-6 e no livro Temas de Direito Administrativo Atual, vol. 2. Estudos e Pareceres, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2010. ISBN 978-85-7700-360-0. Participou também de diversas coletâneas de trabalhos acadêmicos, com juristas e professores de todo o país. Muitas vezes fomos colegas de sumário.

A sua produção acadêmica revela ampla gama de interesses, é abrangente, mas também nela é legítimo identificar alguns temas obsessivos, como ocorre com quase todo intelectual inquieto com os frutos que deixa cair pelo chão em seu percurso investigativo. Entre esses temas obsessivos, destaco: licitações e contratos administrativos, desapropriação, concessões de serviço público, contratos de arrendamento portuários, servidores públicos, reforma administrativa, interesse público, controle jurisdicional da administração, reforma administrativa, responsabilidade patrimonial do estado e a aplicação do código civil ao direito administrativo.

ALICE GONZALEZ também foi atuante em diversas associações científicas. Foi membro do Instituto dos Advogados da Bahia e da Comissão de Estudos do  IAB; Titular da Cadeira cadeira n. 30 desta Academia de Letras Jurídicas da Bahia (1994); Membro do Conselho Superior (a partir de 1994), Instituto Brasileiro de Direito Administrativo; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (1992); Membro do Instituto de Direito Administrativo Paulista - São Paulo (1991); Presidente do Instituto de Direito Administrativo da Bahia e integrante do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP.

Depois de se aposentar na Procuradoria Geral do Estado, completados trinta e seis anos de serviço público, passou a advogar em Salvador, exercendo a consultoria e a advocacia especializada em direito administrativo. Em sua homenagem, a Associação dos Procuradores do Estado da Bahia criou, em 2004, o Prêmio ALICE GONZALEZ BORGES.

MARIO DE FIGUEIREDO BARBOSA, outro confrade que evoco com saudade, responsável pela saudação na posse de ALICE nesta Academia, registrou a mensagem que ALICE fez constar do seu pedido de aposentadoria na Procuradoria do Estado da Bahia, que merece também aqui transcrição. Escreveu ALICE na petição do pedido de sua aposentadoria:

“Saio desta casa, como entrei: pela porta larga, generosa, do concurso público, sempre aberta para aqueles que, como eu, nunca tiveram nada com que contar além de suas humildes forças, e sempre pronta a acolher os méritos forjados através do esforço”

Em 2016, ALICE foi agraciada pela Câmara Municipal de Salvador com a Medalha THOMÉ DE SOUZA. A sessão solene de outorga foi proposta pelo vereador CLÁUDIO TINOCO. Ela estava radiante nesse dia.

Na ocasião, indagada sobre sua longa carreira jurídica, ALICE GONZALEZ BORGES afirmou:

“Nosso País vive dias muito difíceis, num momento verdadeiramente hegeliano, em que se debatem duas grandes contradições. De um lado, é grande o progresso que alcançamos, com a progressiva vitória contra as extremas dificuldades que assoberbavam nossa população em décadas passadas e com a irreversível ascensão de sua redemocratização. De outro lado, porém, graças à liberdade de imprensa, nunca foram tão expostas as mazelas do poder com a proliferação de uma corrupção administrativa generalizada, justamente entre aqueles que, por determinação constitucional, deveriam ser os guardiões da democracia”.

E continuou:

“Aos operadores do Direito, com seus estudos, com seu afanoso labor diário, cabe dar sua contribuição, ainda que individualmente modesta, para construir a síntese ideal a que todos almejamos: um Estado brasileiro verdadeiramente democrático, próspero e socialmente justo. A todos quantos sonham com esse ideal, só resta fazer como ensinava Martin Luther King: ‘se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira’.”

Essa fala retrata bem ALICE: mulher independente, disciplinada, trabalhadora incansável, otimista, porém não alienada, pioneira desbravadora de seu tempo. Era uma intelectual de valor e mulher aguerrida, que serve de exemplo para os tempos obscuros em que vivemos.

Mas outras dimensões de ALICE também merecem registro, além da intelectual e acadêmica. Mas preciso ser breve. ALICE foi uma mãe dedicada à família e teve com JAFÉ três filhos: DOLORES, médica; ROBERTO, engenheiro químico, e ROSELENA, arquiteta. Acolhia com carinho os amigos dos filhos em sua casa de praia e teve a felicidade de conhecer seus sete netos e três bisnetos. Falava dos filhos com orgulho e era derramada pelos netos.

ALICE era uma pessoa muito positiva, alegre, e uma excelente pianista. Fez curso completo de piano e, na adolescência, chegou a dar aulas de piano. Tocava de ouvido e, quando criança, adorava brincar embaixo de um piano de cauda que tinha em sua casa. Era também doceira e aos sábados gostava de cozinhar, fazer bolos e sobremesas. Por fim, conforme relato de sua filha, também excelente bordadeira: costurava para os filhos e netos, sempre com sorriso no rosto.

Estive com ela no hospital antes de seus últimos dias. Estava magra, frágil, porém alerta e carinhosa como sempre. Deixou o plano terreno no dia 31 de março de 2018

3. MINHA RELAÇÃO COM ALICE

A palavra de ALICE para mim sempre foi doce e de uma só cor. Ela me incentivava intensamente, assumindo muitas vezes um papel maternal: fez-se amiga de toda a minha família, acompanhou o desenvolvimento de minhas duas filhas, que a chamavam de vovó ALICE, conspirava com minha mulher para que eu dormisse um pouco mais, ou fizesse regime, ou não assumisse tantos compromissos fora da Bahia para palestras ou aulas. Cobrava que eu escrevesse mais e não protelasse projetos antigos. Sempre foi para mim um exemplo de mulher corajosa e determinada, disciplinada e interessada pelo outro e também aberta ao novo, com quem eu podia dialogar sem reservas. ALICE era generosa afetivamente e ao mesmo tempo contida. Não se exibia, deixava-se exibir, assumindo os riscos de opinar de forma franca. E era livre, como todo intelectual digno, pois não corrompia o seu pensamento para atender a modas e aos gostos da ocasião.

Sei que serei devedor de ALICE por toda a vida, eternamente insolvente, pois ela me tratava como filho intelectual e sempre foi comigo generosa e muito paciente. Sou devedor assim também de CALMON DE PASSOS, que me ensinou muitíssimo e também me acolheu como pai intelectual. Temos muitos pais e mães afetivos, além dos nossos pais biológicos, cujo amor filial nunca podemos negar.

DOSTOIÉVSKI, em Notas do Subterrâneo, definia o homem como um ser bípede e ingrato.  Lutei minha vida toda para negar essa definição. Sempre busquei ser justo e reconhecido aos que comigo partilharam as alegrias, dores e desafios dessa jornada. Mas, com freqüência, sou tomado pelo sentimento de incidir na sentença amarga de DOSTOIÉVSKI. Espero não ter sido assim com ALICE.

Eu também a incentivei na medida de minhas possibilidades. Convidei ALICE para diversas palestras em congressos que organizei, sugeri a ela criarmos o Instituto de Direito Administrativo da Bahia, insistindo para que ela assumisse a sua primeira Presidência, convidei-a para comissões federais de juristas destinadas a elaboração de anteprojetos de lei para regulamentação da reforma administrativa de 1998, quando estive na Assessoria Jurídica do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado; colaborei na revista Controle e Gestão que ela concebeu junto ao Tribunal de Contas e fiz o que me pediu nos anos em que atuou como Presidente deste Sodalício. Gravei em vídeo e publiquei no site direitodoestado.com.br a história pessoal de ALICE, nos marcos do projeto Depoimentos Magistrais, fonte de várias informações que compartilhei esta noite (http://www.direitodoestado.com.br/tvdireito/depoimentos-magistrais/alice-gonzalez-borges ). Em cinco vídeos ALICE conta a sua história, que já foi assistida por mais de 17.391 pessoas.  Em 2006, organizei congresso jurídico nacional de dois dias inteiros em homenagem a ALICE GONZALEZ BORGES, que foi saudada por juristas de todo o país. Houve sempre entre nós muita parceria, boas conversas, admiração mútua, carinho extremado. São lembranças que não quero borrar e sim recordar – voz que provém do latim re-cordis, que significa literalmente “voltar a passar pelo coração".

4.  A ETERNIDADE POSSÍVEL: O PRESENTE RECONCILIADO

A beleza profunda da vida humana é a certeza do incerto. Sem programa original, sem essência determinadora, somos em grande parte o que decidimos ser existencialmente, dentro das condições históricas e sociais presentes. Ninguém é pior, melhor, mais trabalhador, menos trabalhador, mais inteligente ou menos em razão de raça, cor, sexo, idade, origem familiar ou orientação sexual. A ausência da essência original, ou de qualquer determinação original, é que nos autoriza e ao mesmo tempo nos obriga a receber a todos os seres humanos como iguais, com igual dignidade, pois todos somos projetos abertos à espera de realização. A pluralidade humana na história é o que há de mais fascinante na espécie humana. “Sê plural como o Universo” é a incitação penetrante de um dos aforismos de FERNANDO PESSOA.

Por isso, nunca deixei de repetir para mim mesmo o genial fragmento de GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA, no Discurso sobre a dignidade do homem, ao imaginar o que Deus disse a Adão quando o criou:

“Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de si mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tiveres seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo”

O homem – enquanto espécie - é este ser inacabado e inacabável: livre para escolher seus próprios fins, condenado a escolher e determinar a sua própria essência. Não nos diferenciamos dos animais por sermos racionais, mas por estarmos condenados a avaliar as nossas próprias escolhas na dimensão da necessidade e de nossos interesses, porém também na dimensão ética e política, que nos liga a todos, aos nossos contemporâneos, aos nossos antepassados e aos nossos sucessores.

Alguém já disse que a maior orfandade é a do coração. Poderia sentir o mesmo pelo passamento de ALICE GONZALEZ BORGES. Mas essa orfandade somente se consuma se e quando matarmos a presença de ALICE. Enquanto a mantivermos presente, a homenagearmos, recordarmos o seu exemplo, ela vive.

Iniciei falando da consciência do tempo, que é sempre consciência da mudança e da finitude. E defendi que o tempo é fluxo, pois apenas se identifica como objeto quando distinguimos transformações e transições. E concordei com SANTO AGOSTINHO, que dedicou ao tempo imperecíveis lições no capítulo XI das Confissões. Mas é hora de encerrar, porém nesse último lance ousarei divergir – com temor e reverência – do filósofo e bispo de Hipona.

Escreveu SANTO AGOSTINHO que “o presente, se fosse sempre presente e não se tornasse passado, não seria presente, e sim eternidade”. E para ele eterna é apenas a presença de Deus, que fez o próprio tempo. “E nenhum tempo é coeterno contigo”, diz o filósofo dirigindo-se a Deus, “porque tu permaneces; mas ele, se permanecesse, não seria tempo”. Para SANTO AGOSTINHO, o presente, para ser tempo, se dissolve logo que acontece – é um átimo entre dois nadas, o passado e o futuro. O presente somente pode “ser” ao “deixar de ser”. Isso pode ser aceito quando miramos a Deus, ou postulamos a sua eterna presença, mas não quando miramos ao homem.

Para o ser humano, o presente é a única presença: o presente do presente, o presente do passado, o presente do futuro. Um fato passado que não é presença, é esquecimento. Uma projeção que não é sonho, é delírio. “O presente é tão grande, não nos afastemos, Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”, escreveu CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.

A eternidade não é o contrário do tempo, como acreditava SANTO AGOSTINHO. A eternidade é o próprio tempo presente, preenchido pela confluência de todas as dimensões temporais. Não há sabedoria no esquecimento nem no delírio. Somos condenados a decidir no agora, sempre no presente, mas com a firme recordação do passado e com a clareza possível de alternativas de futuro. No presente somos convocados a reconciliar e fundir o fluir do tempo. Não há completude no imediatismo dos frívolos ou na cega adoração do passado pelos nostálgicos.

No plano jurídico também é assim e apenas tolos não se colocam problemas de eficácia intertemporal. O tempo jurídico exige análise do que hoje incide porque deve incidir agora (eficácia imediata), o que incide hoje da lei vigente ontem (ultratividade da norma revogada), o que se preserva da incidência da lei nova (direito adquirido), o que incide ontem embora de lei nova (retroatividade), o que merece proteção razoável por sua longa duração no tempo (proteção à confiança na retrospectividade), o que somente deve incidir em outro tempo (modulação de efeitos e vacatio legis). O presente jurídico é, como o tempo existencial, uma confluência das múltiplas dimensões temporais. Algo que a física contemporânea também aprova, mas ao custo de romper com a unicidade, direção e unidade do próprio presente em uma miríade de tempos próprios, como ensina o fascinante livro de CARLO ROVELLI, A Ordem do Tempo.

A saudade de ALICE GONZALEZ BORGES  nos recorda a sua vitória sobre o paradigma de mulher intelectual de sua época, por isso ela foi pioneira, mas também que reviver a sua presença enriquece o nosso presente e o prepara para os desafios do futuro, que já se projetam. Viver o presente com toda a intensidade e toda a sua complexidade exige que o reconciliemos com o passado presente e a lembrança dos que nos antecederam. Esse é o papel das Academias e nossa contribuição para o presente e para o futuro. Que seja esta a última lição convocada por ALICE: neste Sodalício é proibido esquecer, é proibido fazer tábula rasa dos nossos antecessores, pois somente assim realizamos no presente a única eternidade possível.

Agradeço a atenção e a presença de todos. Muito obrigado.

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PS. O presente texto foi apresentado como discurso de saudade à Professora Alice Gonzalez Borges, por ocasião da sessão especial em sua homenagem realizada na Academia de Letras Jurídicas da Bahia em 16 de outubro de 2018. Algumas  informações utilizadas no texto foram extraídas do site DireitodoEstado.com.br, Projeto Depoimentos Magistrais, Depoimento de Alice Gonzalez Borges, e estão disponíveis em: http://www.direitodoestado.com.br/tvdireito/depoimentos-magistrais/alice-gonzalez-borges  Acesso em 14 e 15 de outubro de 2018. Também foram relevantes informações colhidas de Roselena Gonzalez Borges, filha da homenageada, e diretamente pelo autor na prolongada convivência com Alice Gonzalez Borges. Agradeço ao Presidente da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, Acadêmico Rodolfo Pamplona Filho, e à família da homenageada o convite para funcionar como orador oficial da sessão de saudade.



Por Paulo Modesto (BA)

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