Colunistas

Uma Introdução à Teoria da Justiça Intergeracional e o Direito

ANO 2016 NUM 281
Paulo Modesto (BA)
Professor de Direito Administrativo da UFBA. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Ministério Público da Bahia. Diretor-Geral da Revista Brasileira de Direito Público. Editor do site direitodoestado.com.br


20/10/2016 | 9795 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

1. INTRODUÇÃO

Justiça intergeracional, equidade intergeracional e solidariedade entre gerações são rótulos empregados para designar um relevante conjunto de preocupações éticas e jurídicas contemporâneas. No livro Theory of Intergenerational Justice, Reprint edition. London: Routledge, 2014, 256p, Joerg Tremmel emprega as expressões “intergenerational justice”, “generational justice” e “intergenerational equity” como equivalentes para designar “justiça entre gerações”. Uma recensão a este livro pode servir como exercício para uma introdução didática a este importante tema do nosso tempo.  

O livro sintetiza a versão revisada da tese de doutoramento em filosofia defendida pelo autor em 2008 na Universidade de Düsseldorf, Alemanha. Jöerg Tremmel é atualmente professor do departamento de ciência política na Universidade de Eberhard Karls de Tübingen, Alemanha. É também Editor-Chefe da Intergenerational Justice Review e foi investigador bolsista, de 2009 a 2011, na Escola de Economia e Ciência Política de Londres.

Segundo o autor, as teorias sobre justiça intergeracional desenvolveram-se com atraso de dois mil e seiscentos anos depois das primeiras teorias sobre justiça entre contemporâneos. O marco teórico desta mudança teria sido o livro O Imperativo da Responsabilidade, de Hans Jonas, publicado originalmente em alemão em 1979.

Hans Jonas identificou o fato de a moderna tecnologia ter habilitado, a partir do século XX, o homem a produzir impactos irreversíveis na natureza e no futuro da humanidade. Antes disso, o homem não detinha a capacidade de prejudicar em definitivo a natureza em termos globais ou suprarregionais, pois a natureza era resistente, obrigando-o a se adaptar. No passado, assim, não houve necessidade de uma ética de responsabilidade perante a natureza. O homem foi estimulado a se aproximar da natureza para se aproveitar de seus recursos aparentemente ilimitados.

É mérito de Hans Jonas ter advertido para o significativo aumento da influência do homem sobre os ecossistemas e sua capacidade atual para produzir resíduos deletérios para as futuras gerações em escala temporal sem paralelo. Exemplo disso é a durabilidade do plutônio produzido para abastecer centrais nucleares. A Alemanha, segundo Tremmel, possui em suas plantas de energia nuclear 118 toneladas de Plutônio (PU-239), cujo tempo de meia-vida é de 24.110 anos. Estima-se que um 1 grama (g) de plutônio pode permanecer ativo como resíduo por 310.608 anos, sendo que 1 g é suficiente para ser letal a um ser humano. Se considerarmos que a história escrita da humanidade é de apenas 10.000 anos de idade, o fardo que as atuais gerações estão colocando sobre os ombros das  gerações futuras é evidente e supera em escala toda a história do homem até este momento.

Para Tremmel, a mudança climática provocada pelo homem, o esgotamento dos oceanos através da pesca insustentável, o desmatamento e a perda de biodiversidade, não são ocorrências novas, mas no passado eram limitados a determinadas áreas, ao passo que agora ocorrem em escala global e em ritmo acelerado. O enorme aumento de poderes da humanidade no século XX explica esses fenômenos e ainda porque filósofos morais do passado prestaram pouca atenção sobre os nossos compromissos com a posteridade.

Segundo Hans Jonas, o universo da ética tradicional é limitado aos contemporâneos, é uma ética do próximo (‘neighbour ethics’), o que não é mais suficiente. No dizer de Tremmel, se Hans Jonas estiver certo, a filosofia moral tradicional ainda vive na era newtoniana.

2. AMBIGUIDADE DO DEBATE

Joerg Tremmel reconhece que a ampliação do universo da ética tradicional enfrentou a resistência de muitos filósofos, que consideraram as questões atinentes à responsabilidade entre gerações como falsos problemas éticos.

A resistência é considerada natural, pois durante milênios o pensamento ético acreditou que o futuro seria semelhante ao passado e o reproduziria. Refere Vittorio Hösle, para quem o foco da ética tradicional é estabelecer um modelo de justificação e julgamento de regras morais destinadas a ajustar o comportamento entre interesses egoísticos, em termos de reciprocidade, com imposição de sanções e reprovações dirigidas aos que as violassem. Esse modelo não se adapta aos “direitos das futuras gerações”, pois aqueles que viverão apenas em cem anos dificilmente poderiam impor sanções aos que estão lhe causando danos hoje.

As denominadas “éticas remotas” (“remote ethics”) foram acusadas de imprecisão. Os limites entre as éticas inter e intrageracionais, por exemplo, dependeriam da definição em cada autor para os termos geração e justiça geracional. Em algumas teorias a justiça intergeracional pode abranger tanto a justiça entre a presente e a futura geração (gerações intertemporais) quanto a justiça entre o jovem e o velho (gerações temporais), inclusive dentro da família. É certo que justiça intergeracional não é concebível entre pessoas da mesma idade, mas conforme a orientação pode alcançar gerações superpostas, que convivem no mesmo horizonte temporal, ou gerações sucessivas, sem acesso ao mesmo tempo cronológico. No plano espacial, a justiça intergeracional pode ser concebida em escala global, nacional ou regional.

A justiça intergeracional não se restringe à questão ambiental, mas envolve outras dimensões da vida pública. Segundo Tremmel, já no século XIX, Thomas Jefferson considerava a dívida pública nacional um problema de ética intergeracional. Métodos de contabilidade geracional estão sendo desenvolvidos para determinar encargos das futuras gerações em diferentes aspectos da vida coletiva. O interesse sobre a temática cresce e aumenta o número de estudos sobre a situação dos mais jovens, cuja expectativa é a de que viverão no futuro situação mais gravosa do que a vivida por seus pais hoje. Esses jovens são chamados de “boomerang generation”, “géneration précarité”, “Generation Praktikum”.

Segundo o autor, embora existam vários textos precedentes sensíveis ao tema da justiça entre gerações, a exemplo da conhecida proposição John Rawls sobre “o princípio da poupança justa” (1971), a maior parte dos textos especialmente dedicados à justiça intergeracional são posteriores a 1980.

Na década de 1990, o tema da justiça intergeracional foi em parte absorvido pelos conceitos de sustentabilidade e desenvolvimento sustentável. Tremmel considera útil realizar a distinção: sustentabilidade é conceito que abrange, com o mesmo peso, tanto a justiça intergeracional quanto intrageracional no plano normativo. A exigência de justiça intergeracional conduz a sustentabilidade a dois campos de atividade, a ecologia e as finanças (sustentabilidade ecológica e sustentabilidade financeira), enquanto a justiça intrageracional remete à justiça internacional (justiça Norte/Sul), a justiça social (pobres/ricos dentro de um país), a justiça entre os homens e as mulheres, a justiça entre diferentes etnias e religiões, entre outras dimensões.

3. A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA

Qual a contribuição da filosofia neste debate sobre justiça geracional? O debate nesta temática gira frequentemente em torno da política ambiental, da política de pensões, da política financeira e, com menor frequência, da política cultural e educacional. As ciências individuais oferecem a sua contribuição, mas a filosofia apresenta uma abordagem distinta. Segundo Tremmel, a filosofia é a única ciência que lida diretamente com a questão da justiça.

Somente a filosofia pode dar respostas a perguntas como: (a) o que é a justiça e em que medida se pode estabelecer princípios de justiça a serem aplicados em contextos intergeracionais?; (b) o que vai ser realmente importante para as gerações futuras? (c) podemos reconhecer as necessidades e as preferências das gerações futuras? (d) como determinar a herança que uma geração deve passar para os seus sucessores?

A filosofia tende a se concentrar em toda a questão, a fazer “perguntas globais”, interrogantes éticos, metafísicos, além de considerações epistemológicas sobre a própria validade das perguntas formuladas. Embora o autor não mencione, a perspectiva que adota sobre o papel da filosofia é semelhante à adotada por Ortega Y Gasset, que definia a filosofia como “saber autônomo e pantônomo” (ver José ORTEGA Y GASSET, El nivel de nuestro radicalismo, in Obras Completas, Tomo VIII, 1965, p. 282).

O tema justiça geracional origina questões relativas à identidade e personalidade do próprio homem, discutidos sob o denominado “paradoxo da não-identidade”, o que não pode ser objeto de atenção de qualquer ciência individual. Por isso, Tremmel insere a sua pesquisa no campo da filosofia, embora afirme que adotará uma abordagem multidisciplinar, pois pretende oferecer uma revisão bastante completa (“fairly complete”) e sistemática da literatura disponível sobre o tema em ética, ciência política, economia e disciplinas ambientais.

4.  PRINCIPAIS ARGUMENTOS E CONCEITOS

Por economia discursiva, pode-se resumir em grandes linhas o desenvolvimento do projeto abrangente e multidisciplinar do autor nos aspectos seguintes.

Se as declarações sobre a justiça intergeracional pressupõem comparações entre gerações é fundamental eliminar a ambiguidade do termo geração. Este signo recebe usualmente quatro sentidos, diretamente associados a quatro domínios distintos: familiar (gerações familiares ou genealógicas); sócio-cultural (gerações sociais ou societais); cronológico-temporal e cronológico-intertemporal.  

Tremmer destaca que as raízes etimológicas do termo "geração" referem a relações familiares (em latim, "generatio” significa procriação, a capacidade procriativa). Gerações genealógicas são os graus de filiação sucessivos de uma mesma linhagem (os filhos constituem a segunda geração, os netos a terceira geração etc.). Essas relações não necessariamente indicam uma hierarquia etária, pois tios podem ser mais jovens do que seus sobrinhos e sobrinhas.

Geração em sentido social (ou sociológico), ao revés, denota um grupo de pessoas cujas crenças, atitudes ou problemas sejam uniformes ou compartilhados. São indivíduos associados a experiências políticas, econômicas ou culturais semelhantes dentro de um determinado período de tempo (v.g., “Geração X ", "Geração Net", Geração de “11/9"). Segundo Tremmel, a idade não é um fator decisivo para a geração em sentido social, mas a diferença de idade entre os seus membros raramente é superior a uma década.

Geração em sentido cronológico-temporal designa um grupo de indivíduos de mesma idade (jovens, meia-idade, idosos) em uma sociedade. Neste sentido, várias gerações convivem no mesmo tempo cronológico. Segundo Tremmel, pessoas abaixo de 30 anos geralmente são consideradas "a nova geração", enquanto aqueles entre 30 e 60 representam "a geração de meia-idade" e, a partir dos 60 anos, os indivíduos são identificados como "a velha geração". O corte cronológico é usualmente o período de trinta anos.

Por outro lado, geração em sentido cronológico-intertemporal designa todos os indivíduos que vivem hoje. Usada neste sentido, somente existe uma geração em cada momento temporal. Este conceito permite distinguir a geração vivente, a geração passada e a geração futura.

As teorias de justiça geracional empregam a palavra geração em sentido cronológico. O critério do ano de nascimento é preciso; o critério social, vinculado a atitudes, não é. Mas é preciso separar abordagens que consideram relações entre as pessoas vivas hoje e as pessoas que viverão no futuro em contraponto às relações entre gerações dentro do mesmo horizonte cronológico. Tremmel, por isso, convenciona que usará o termo justiça temporal entre gerações para tratar da justiça entre jovens, pessoas de meia-idade e idosos vivos hoje; justiça intertemporal designará a justiça entre as pessoas que viveram no passado, pessoas vivas hoje e as pessoas que viverão no futuro e geração futura como a geração que não existe em um determinado momento de referência. A teoria da justiça intergeracional ocupa-se da justiça intertemporal e da justiça temporal entre gerações.

Gerações podem ser comparadas sob o ângulo cronológico de forma vertical, diagonal, horizontal ou em cursos de vida total, empregando um diagrama Lexis, no qual o eixo vertical mostra a idade e o eixo horizontal mostra o fluxo do tempo. As comparações diagonais e comparações de cursos gerais de vida são cruciais para declarações sobre a equidade intergeracional. As comparações também podem ser indiretas (v.g. compara-se idoso de ontem com idoso de amanhã ou o jovem de ontem com o jovem de hoje) ou diretas (v.g. jovem hoje e idoso hoje). Segundo Tremmel, as comparações de percursos de vida - uma forma especial de comparações indiretas entre gerações - podem fornecer informações significativas sobre a justiça geracional. (Contra uma metódica fundada em análise de segmentos totais da vida, ver Suzana TAVARES DA SILVA, O Problema da Justiça Intergeracional em Jeito de Comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n. 187/2013, Cadernos de Justiça Tributária, abril/junho, 2013, p. 12).

As objeções teóricas à consistência dessas comparações entre gerações exigiram do autor o enfrentamento de duas questões: a) uma crítica ao problema da não-identidade (também denominado “paradoxo da não-identidade”); e b) uma crítica à concepção segundo a qual indivíduos futuros não poder ter direitos.

A tese da não identidade (“non-identity thesis”) sustenta que as nossas ações no presente não afetam apenas as condições de vida dos futuros indivíduos, mas definem também a própria existência das pessoas do futuro (se existirão e quais existirão). O problema da não-identidade relaciona-se com a falta de interesse e legitimidade de alguém no futuro reclamar de sua situação, em razão de ações ou omissões de seu predecessor, sem as quais o indivíduo sucessor talvez não tivesse existido ou nascido. Tremmel invoca um exemplo dado por Axel Gosseries para demonstrar o emprego do argumento na teoria da justiça intergeracional: imagine-se um pai que realiza o percurso do escritório para casa toda noite e assim polui o meio ambiente; caso a sua filha o censure, ele poderia responder que chegar mais cedo em casa influenciou o tempo disponível para relações sexuais com sua esposa. Se ele tivesse utilizado de bicicleta, ele não teria poluído o ambiente, mas sua filha não teria nascido, porque provavelmente um espermatozoide diferente teria fecundado o óvulo de sua esposa. A pessoa x teria nascido em vez de y. Por conseguinte, se a moralidade de nossas ações depende de suas consequências para indivíduos particulares, torna-se impossível comparar os efeitos de duas ações se duas pessoas diferentes existem por causa deles.

Para Tremmel, é comum utilizar-se um argumento fraco em resposta ao paradoxo da não-identidade: afirma-se que devemos cuidar do bem-estar dos indivíduos futuros, independentemente de suas identidades. É um argumento correto, mas logicamente confunde a indeterminação com a contingência. O argumento não-identidade tem base na contingência e não na indeterminação.

No entanto, para os problemas intergeracionais habituais, como guerras, proteção do ambiente ou da dívida pública é irrelevante a identidade futura de indivíduos específicos. A geração futura ou sucessiva é percebida com unidade, composta necessariamente por indivíduos, independentemente de suas identidades. No exemplo dado por Gosseries, se alguém polui o meio ambiente com seu carro, o prejudicado não é apenas a própria filha do motorista, mas todos os seus amigos e a população circundante. Se alguém derrama lixo tóxico em um rio que abastece com água potável a cidade, prejudicará as crianças, eventualmente até crianças de gerações futuras; se o filho do poluidor é afetado, o problema da não-identidade é aplicável, mas isso não autoriza o prejuízo para todas as demais crianças, razão pela qual o comportamento do homem é imoral em face dos membros das atuais e futuras gerações.

Outro modo de refutar o problema da não-identidade é invocar a argumento do “efeito borboleta” (“butterfly-effect argument”). Pelo argumento da não-identidade, uma ação realizada por um agente no presente é causa para a existência de um indivíduo no futuro; logo, esta ação não pode ter prejudicado esta pessoa, pois sem ela ele nunca teria existido. O “efeito borboleta” questiona a causalidade. Sustenta que o argumento da não-identidade descreve causalidades que não podem ser provadas. Enlaces causais são complexos e inúmeras variantes podem produzir um dado resultado. Para novamente empregar o exemplo didático dado por Gosseries, se alguém polui o meio ambiente com seu carro, o fato de chegar meia hora mais cedo em casa não assegura o nascimento de determinada criança (ele pode gastar minutos acariciando o gato ao chegar em casa, perder tempo em engarrafamentos, realizar um lanche e mil outros fatores podem tornar indeterminado o resultado de sua ação), sem considerar que, a cada segundo, 200 milhões de gametas são renovados no homem, razão pela qual não é possível assegurar a existência ou a identidade específica de alguém no futuro a partir de determinado comportamento.

Na sequência, trata o autor da objeção às teorias de justiça intergeracional relacionadas à recusa do reconhecimento de direitos às gerações futuras. Mas o faz com cautelas, pois sustenta que é possível formular uma teoria da justiça intergeracional sem empregar a referência a "direitos" para as gerações futuras. Entende que mesmo se fosse válido argumentar pela inexistência de direitos das futuras gerações, disso não se deduziria que seria moralmente permitido prejudicá-las.

Para Tremmel, dificilmente algum filósofo afirma explicitamente que as pessoas futuras não só terão direitos no futuro, mas já os possuem hoje. As exceções são Elliot e Partridge. Considera essas posições insustentáveis, pois “os direitos não são algo que flutuam no ar a espera de um portador  vir a existir. Futuras pessoas não têm direitos (de qualquer tipo) agora” (p. 211).

O autor sustenta que as futuras gerações não possuem direitos legais hoje, mas possuirão direitos no futuro. O fato não justifica que a geração atual possa violar os direitos dos indivíduos hoje futuros, ou que a proteção desses direitos não possa ser reconhecida pelo direito positivo em cada país. O nascituro tem direitos reconhecidos e protegidos antes mesmo de vir à luz, inclusive o direito de não ser morto, se as condições de aborto não forem cumpridas.

Tremmel trata os direitos humanos como direitos morais, que podem ser reconhecidos às futuras gerações, pois são inerentes a todo e qualquer ser humano, de qualquer tempo.

No entanto, direitos legais são questão de convenção, não são auto evidentes, não sendo logicamente inviável cogitar da proteção dos direitos das futuras gerações.

Pessoas futuras obviamente não podem renunciar a seus direitos no presente, mas o mesmo se aplica a muitos contemporâneos, como doentes em coma ou bebês, e isso não significa que eles não possuem direitos. É errado supor que a capacidade de renunciar a um direito é pré-requisito para ter direitos.

Também não é requisito para ter direitos a capacidade de entender os próprios direitos. As crianças são normalmente representadas por órgãos ou assessores nomeados pelo Estado. Portanto, os futuros direitos das pessoas que ainda não nasceram pode ser representado por mandatários ou procuradores com poderes para falar em seus nomes.

Os direitos legais das futuras gerações dependem de previsão no direito positivo de cada país e no direito internacional. A crescente aceitação de nossa responsabilidade para com a posteridade tem produzido a introdução de normas constitucionais nas últimas décadas protetoras das futuras gerações, a exemplo da França, Alemanha, Argentina, Brasil, África do Sul, Hungria e muitos países do Leste Europeu. Essas cláusulas constitucionais podem ser agrupadas em três categorias: disposições gerais para proteger pessoas do futuro, disposições para protegê-los no campo da ecologia e disposição para protegê-los no campo das finanças. Por outro lado, algumas disposições verbalizam direitos básicos de cada cidadão enquanto outras identificam obrigações (ou objetivos) do Estado. Apenas três constituições, segundo Tremmel, explicitamente concedem direitos às gerações futuras: o artigo 11 da Constituição japonesa de 1946, o artigo L 110 b, al 1, da Constituição da Noruega e o artigo 7º da Constituição boliviana, alterado em 2002.

Essas cláusulas constitucionais, na concepção do autor, não devem enunciar direitos legais presentes de pessoas do futuro (e nenhuma delas o faz, segundo ele). Mas todas as expressões como "o Estado deve proteger os direitos das pessoas futuras" não são passíveis de crítica. Outra novidade legal é a substituição do termo "gerações futuras" por “gerações seguintes" em algumas constituições, o que autoriza incluir não só as gerações que ainda não nasceram, mas também as crianças presentes e adolescentes na norma de proteção. Essa abertura permitiu que, nas Filipinas, o advogado Antonio Oposa e quarenta e três crianças tivessem sucesso em processar o governo contra a destruição da floresta tropical por autorizações de desmatamento concedidas a particulares. O Tribunal Constitucional das Filipinas julgou procedente o pedido em 30 de julho de 1993.

No campo do direito internacional, destaca-se que, em 1972, em Estocolmo, as novas gerações foram explicitamente mencionadas na primeira conferência das Nações Unidas sobre proteção do meio ambiente: Princípio 1 da Declaração de Estocolmo: “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e a adequadas condições de vida, em um ambiente de qualidade que permita uma vida digna e de bem-estar, e ele tem uma solene responsabilidade de proteger e melhorar o ambiente para a presente e as futuras gerações”.

Desde então outros diplomas ofereceram proteção às futuras gerações, a exemplo das declarações do Rio (1992), Johanesburgo (2002) e da Convenção sobre Diversidade Biológica (1992). Em 12 de Novembro de 1997, a UNESCO aprovou uma Declaração sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes para as Gerações Futuras.

Tremmel, no entanto, embora não reconheça erro lógico em falar em direitos dos membros das gerações futuras, considera a especulação sobre direitos um complicador na teoria da justiça intergeracional. Considera mais importante do que saber se as gerações futuras terão "direitos" é saber o que deve ser reservado às futuras gerações (problema axiológico).

Indaga-se, qual a proposição correta: (a) “uma sociedade é justa intergeracionalmente se satisfaz as necessidades da presente geração sem comprometer a capacidade das gerações futuras em satisfazer as próprias necessidades”; (b) “uma sociedade é justa intergeracionalmente se o bem-estar da futura geração é maior ou tão elevado quanto o bem-estar da atual geração”. Na primeira proposição o enfoque volta-se para uma cesta de bens, o “capital coletivo”, uma variedade de elementos (físicos, tecnológicos, culturais, naturais, políticos, institucionais, relacionais) que uma geração transmite à geração seguinte. Na segunda proposição, o objetivo é transmitir o “bem-estar”, objetivo genérico, que se traduz em estados de satisfação, felicidade, sociedade, segurança, entre outros que podem ser medidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Segundo Tremmel, o capital é apenas um meio para alcançar o aumento do bem-estar e não deve ser o critério de paralelo entre gerações, inclusive porque é impossível quantificar o valor do capital cultural ou institucional. Quanto vale uma Constituição? Ela pode ser uma bênção ou um fardo para as futuras gerações. Reversamente, o critério do bem-estar, que aparentemente é vago e subjetivo, conhece atualmente mecanismos precisos de medição.

Finalmente, o estudo lida com a questão da aplicação de critérios de justiça em contexto intergeracional e indaga: como o bem-estar pode ser distribuído entre as gerações de uma forma justa? Três concepções adotadas em contextos intrageracionais de justiça foram examinadas quanto à sua aplicabilidade ao contexto intergeracional: justiça como imparcialidade, justiça como igualdade e justiça como reciprocidade. O fio condutor inicial da análise é a aplicação do recurso à “posição original” de John Rawls, com o seu “véu da ignorância”, considerado um modelo frutífero para reconstruir decisões imparciais na justiça, pois "cria uma situação de escolha, não de negociação” (D'Agostino), em “contexto de escassez moderada”, sem pressupor o altruísmo, e identifica um ponto de vista universalizável a ser escolhido.

Tremmel reconhece que na A Theory of Justice, publicado em 1971, John Rawls apresentou uma das primeiras abordagens modernas sobre a questão da justice intergeracional. O famoso parágrafo 44, do segundo capítulo da segunda parte do seu livro de Rawls, relativo ao “problema da justiça entre gerações” e à necessidade de cada geração assegurar uma “poupança” para as gerações seguintes causou uma ampla repercussão entre os especialistas. Mas Tremmel critica o fato de Rawls não levar em conta uma eventual perda de bem-estar das novas gerações devido à destruição ecológica e concentrar o dever mais importante de cada geração apenas em criar e preservar instituições garantidoras das liberdades fundamentais, segundo o princípio da poupança. Critica também mudanças no emprego do termo geração e a perspectiva dos participantes do processo deliberativo de Rawls. Sem embargo, Tremmel considera viável traduzir o modelo da justiça como imparcialidade para o contexto intergeracional.

A concepção da justiça como igualdade, no entanto, não é considerada uma opção. A igualdade de oportunidades não é possível, pois nenhuma geração tem exatamente as mesmas oportunidades iniciais de outras, porque o passado não pode ser mudado e o tempo é unidirecional. Ações passadas são irreversíveis e a justiça só pode ser implantada em uma direção. Podemos influenciar o IDH de futuras gerações, mas cada geração deve ter o direito de explorar plenamente seu potencial, desde que não se imponha às gerações sucessivas cargas superiores a que suportou.  

Segundo Tremmel, a noção de "reciprocidade como um equilíbrio de dissuasão" também parece inaplicável em contextos de justiça intergeracional, pois as gerações futuras ainda não existem e não nos podem ameaçar, o que inviabiliza a construção de acordos de reciprocidade entre as gerações que não se sobrepõem. O princípio da reciprocidade, porém, pode ser aplicável a gerações familiares e gerações sobrepostas.

Tremmel sustenta que uma ética intergeracional deve considerar como objetivo buscar a melhoria em vez de igualdade entre gerações. Os nossos deveres para com a posteridade seriam mais extensos do que se supõe. Na sua compreensão, a presente geração deve evitar tudo o que possa perturbar ou mesmo reverter a histórica tendência de elevação do IDH até agora. Em uma fórmula de síntese, propõe o seguinte enunciado: “A justiça intergeracional é alcançada se as oportunidades do membro médio da próxima geração para atender suas necessidades são melhores do que as do membro médio da geração anterior”.

Essa concepção refere-se a "necessidades" (em vez de “interesses”, “desejos”, “preferências”, “aspirações”, etc.), adota como objetivo axiológico a garantia de "oportunidades" (em vez de "distribuição de bens") e reduz o compromisso da atual geração a uma geração sucessora, pois somente assim, através de comparações indiretas de duas gerações subsequentes, criam-se condições de comparação e uma cadeia de obrigações que afetam, em última instância, todas as gerações futuras. Além disso, compara oportunidades entre “membros médios de uma geração" e não entre gerações como unidades, pois o número de indivíduos de cada agregado poderia distorcer a comparação.

5. REFLEXÃO CONCLUSIVA

Em seu livro Theory of Intergenerational Justice, Joerg Tremmel apresenta uma abordagem abrangente dos principais tópicos envolvidos na temática da justiça entre gerações. Em linguagem direta, encadeia argumentos contrários e favoráveis ao desenvolvimento deste campo de pesquisa ainda pouco explorado na área jurídica, sobretudo no Brasil. Embora resultado de uma tese de doutoramento, o livro oferece antes um panorama do cenário geral do que uma fotografia nítida e detalhada de qualquer tópico específico. Para uma introdução ao tema, cumpre o importante papel de apresentar de forma acessível e didática a temática da justiça geracional.

É correto afirmar que o aumento dos poderes de interferência do homem sobre o seu ecossistema, de forma positiva ou negativa, evidencia a nossa responsabilidade intergeracional. Todavia, o reconhecimento da responsabilidade intergeracional exige uma abordagem ética específica. Não se trata apenas de um novo olhar para os problemas clássicos de convivência entre gerações superpostas (gerações distintas no mesmo horizonte histórico) ou de sucessão de gerações (heranças ou encargos transmitidos a sucessores ou provenientes de antepassados). Na ética intergeracional o que se objetiva é acautelar a própria existência do futuro e impedir a produção de decisões irreversíveis, que inviabilizem as novas gerações de decidirem sobre a condução de seu destino ou de usufruírem de condições mínimas de existência digna. Para além dessa dimensão central, buscam-se ainda identificar meios e formas de assegurar um desfrute equitativo dos recursos naturais, financeiros, sociais ou institucionais entre gerações.

Em termos jurídicos, esses objetivos são adequadamente traduzidos por uma “gramática de deveres fundamentais”, e não mais por uma “gramática dos direitos”, pois as gerações futuras podem ainda sequer existir. (ver José Carlos VIEIRA DE ANDRADE, que destaca a dimensão essencial de “deverosidade” dos chamados direitos de solidariedade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2012, p. 63). Mas essas considerações estão em grande medida ausentes da abordagem de Joerg Tremmel, que no curso de seu trabalho mostrou pouco interesse em explorar os fundamentos de uma teoria jurídica da responsabilidade intergeracional, sobretudo sob o prisma dos deveres fundamentais, posto considerar os direitos e os deveres das futuras gerações uma simples decisão conjuntural de natureza política, uma convenção, uma questão empírica. Para Tremmel, as obrigações éticas surgem antes das obrigações jurídicas e é nelas que concentra o seu interesse.

Porém, é uma simplificação inaceitável condicionar os deveres de proteção das futuras gerações a inscrição nas leis fundamentais de enunciados expressos que lhes façam referência. Há cláusulas constitucionais vocacionadas a reger o futuro, inclusive proteger as futuras gerações no presente, sem qualquer signo intergeracional expresso. Seria absurdo conceber a existência de ordens jurídicas indiferentes à sobrevivência do próprio homem e de si mesmas, vocacionadas apenas a valorizar uma “ética de proximidade” ou a convivência de contemporâneos, alheias à preservação da vida, da natureza e das próprias instituições constitucionais. (cf. V. Raffaele BIFULCO, Diritto e generazioni future, 2008, p. 69-70).  Normas constitucionais que tutelam a democracia, promovem a dignidade da pessoa humana, a cidadania, o desenvolvimento nacional não são dirigidas apenas aos contemporâneos e podem ser compreendidas à luz da justiça intergeracional.

Em uma perspectiva diacrônica, como comunidade intergeracional, não pode ser qualificada de democrática uma decisão tomada hoje que não seja reversível democraticamente pelas futuras gerações. A política ultrapassa (ou deve ultrapassar) a dimensão de mero diálogo entre representantes e representados imediatos, para internalizar a dimensão de participação das futuras gerações. Não se trata de leitura moral de textos constitucionais, mas de compreensão alargada de direitos e deveres constitucionais.

As decisões fundamentais devem salvaguardar as condições de existência digna das futuras gerações, não por altruísmo, mas porque a Constituição é um documento intergeracional por excelência. É feita para proteger direitos e interesses das atuais e futuras gerações. E suas cláusulas, por isso mesmo, devem ser interpretadas sob o prisma da sustentabilidade da própria comunidade intergeracional. (v. Supremo Tribunal Federal, ADPF 101, Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, j. 24/06/2009, RTJ 224-01, PP-00011)

Por vezes, a constituição estabelece limites e deveres dirigidos a gerações futuras. São exemplo as normas constitucionais que limitam as reformas constitucionais, denominadas no Brasil de “cláusulas pétreas” ou “cláusulas de eternidade” (“eternity clauses”), a exemplo do Art. 60 da Constituição Federal. Essas normas são problemáticas à luz da justiça intergeracional e devem ser interpretadas estritamente.

Na política e no direito, com clareza nova, não decidimos apenas para os que estão vivos. Decidimos para uma comunidade intergeracional, o que deve ser considerado no controle de constitucionalidade das normas legais. Leis que promovam endividamento excessivo das próximas gerações, autorizem o esgotamento de recursos naturais ou adotem decisões irreversíveis devem ser submetidas a parâmetros rigorosos de proporcionalidade.

Fora das referências de textos constitucionais expressos indicados por Tremmel, a Constituição do Brasil enuncia, no Art. 225, que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Nos diversos parágrafos e incisos deste artigo, resguarda-se o patrimônio genético, os processos ecológicos essenciais, exige-se estudo prévio de impacto ambiental para obras e atividades potencialmente causadoras de dano, o controle de substâncias degradantes, entre outras normas.

Essas normas repercutem, quase literalmente, princípios enunciados no Relatório Brundtland, da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1987. Esse documento internacional define o desenvolvimento sustentável como aquele que assume a responsabilidade perante as futuras gerações.

Para usar uma metáfora proposta por Eduardo Giannetti, pode-se afirmar que o direito e as instituições públicas devem superar a miopia temporal (atribuição de valor demasiado ao que esta perto de nós no tempo) sem recair na hipermetropia temporal (atribuição de um valor excessivo ao amanhã, em prejuízo das demandas e interesses correntes) (ver Eduardo GIANNETTI, O Valor do Amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros, 2005, p 12-13). Essa moderação também pode ser realizada por normas e instituições públicas, inclusive pela justiça constitucional. Mas estas questões estão ausentes do livro teoria da justiça intergeracional, de Joerg Chet Tremmel, inclusive porque fora do seu escopo imediato, o que pode estimular a novas pesquisas e leituras por estudiosos do direito. 



Por Paulo Modesto (BA)

Veja também