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Covid-19 e Requisições Administrativas: compreensão e limites de um novo instrumento antigo

ANO 2020 NUM 446
Rafael Da Cás Maffini (RS)
Mestre e Doutor em Direito pela UFRGS Professor Adjunto de Direito Administrativo na UFRGS Juiz Substituto do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul, em vaga destinada a advogados para os biênios 2016/2018 e 2018/2020 Advogado em Porto Alegre advogado do escritório Rossi, Maffini, Milman Grando Advogados.


04/04/2020 | 4238 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

I. Introdução

Estamos vivenciando uma crise sem precedentes, seja no plano sanitário, seja no plano econômico. Um vírus surgido no oriente assola todo o globo, paralisando as economias mais pujantes às mais precárias, como não poderia deixar de ser, também paralisa o Brasil. Por mais paradoxal que pareça, o Direito, fruto da cultura humana concebido para resolver crises, não parece estar cumprindo o mister de solver crise da magnitude da causada pelo COVID-19.

O Direito, portanto, também está em crise e, para dela sair, precisa se reinventar e reformular como um “Direito da crise”. O mesmo vale, em particular, para o Direito Administrativo cuja efetividade agora pressuporá tanto sua aptidão para solver os problemas decorrentes da crise (“Direito Administrativo da crise lato sensu”), quanto para combater a própria crise (“Direito Administrativo da crise stricto sensu”). Diante dos estragos causados pelo COVID-19, o Direito Administrativo da crise precisará, em ambas as acepções referidas, de muita efetividade e, a um só tempo, de soluções racionais e criativas.

O problema é que há certas coisas na vida que sabemos existir, mas que, embora existam, nunca pensamos em utilizar. Tal qual uma saída de emergência em uma aeronave, o instituto jurídico da requisição administrativa, mesmo com base constitucional (art. 5º, XXV, CF/88), é, na prática, algo do qual se ouve falar e de que até se tem notícia, mas amiúde esquecido.

No contexto de uma crise econômica aguda, os exemplos aflorariam mais facilmente; em se tratando de crise relacionada à saúde, mais exemplos emergiriam. E não é que, com a pandemia ocasionada pelo COVID-19, este cenário perfeito à requisição administrativa despontou sem deixar rastro.

Entretanto, ainda que haja uma certa ambientação à incidência perfeita da utilização da requisição administrativa, o que se tem visto nos últimos dias é uma verdadeira desvirtuação do instituto, como se de tudo ela (a requisição) desse conta e para tudo fosse o remédio aceitável.

O Poder Público (em qualquer esfera da federação), dotado de sua mastodôntica potestade, não hesitou em se valer da “vontade” do legislador constituinte. Será, todavia, que há toda essa amplitude para o emprego da requisição administrativa nos moldes que vem sendo exercida? É dizer, tem sido ela verdadeiramente empregada? Se não, quais os possíveis reflexos que podem advir desta desmesurada atitude governamental.   

Causa uma certa inquietação o fato de tal instituto jurídico, que, genuinamente, é a manifestação da mais latente força do Poder Público, ter previsão justamente no art. 5º da Carta Maior, logo este, que aborda tantas e quantas garantias fundamentais. Talvez – mera conjectura – tenha imaginado o legislador constituinte originário escalar, como um direito fundamental, a utilização de propriedade particular pela autoridade competente como forma de salvaguardar o tal do interesse público. Quiçá, também, tenha preconizado a possibilidade de indenização como forma de minimizar os impactos inexoráveis de tão drástica medida.

Nesta senda, impõe-se sejam os holofotes endereçados à requisição administrativa, a qual se faz objeto do presente ensaio. 

II. Dos pressupostos históricos: COVID-19 e seu enfrentamento

O COVID-19 foi reconhecido como caso de emergência de saúde pública de importância nacional – ESPII, categoria de alerta mais elevado contemplado no Regulamento Sanitário Internacional – RSI, pela Organização Mundial da Saúde – OMS, em 30 de janeiro de 2020. Já em 03 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 188/GM/SMS, reconhecendo o coronavírus como emergência de saúde pública de importância nacional – ESPI. A referida qualificação, por seu turno, observou os termos do Decreto 7.616/2011.

Após isso, adveio uma série de atos normativos legais e infralegais, entre os quais se destacam: a) a Lei n º13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a qual dispõe sobre as “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”; b) Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março de 2020, que dispôs sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979; c) Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020, dos Ministros da Saúde e da Justiça e Segurança Pública, que dispôs sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública previstas na Lei nº 13.979; d) Medida Provisória 926, de 20 de março de 2020, que procurou dar maior uniformidade às medidas de quarentena e da qual resultaram o Decreto 10.282, de 20 de março de 2020, já alterado pelo Decreto 10.292, de 25 de março de 2020, e o Decreto 10.288, de 22 de março de 2020.

Entre todas as medidas de enfrentamento do COVID-19, restou repaginada a antiga figura da requisição administrativa, cuja compreensão será a seguir detalhada, inicialmente, numa perspectiva jurídico-dogmática e, ao final, a partir de uma leitura crítica. 

III. Da compreensão jurídico-normativa da requisição administrativa

A requisição administrativa consiste num dos vários instrumentos jurídicos previstos para o enfrentamento do COVID-19. Além de sua estatura constitucional, determinada pelo disposto no art. 5º, XXV, da Carta Política (“no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”), o art. 3º, VII, da Lei 13.979/2020 a prevê expressamente (“para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: (...) requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”).

Antes do referido preceito legal, a requisição administrativa também restara referida no art. 1.228, § 3º, do Código Civil (“o proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente”). Aliás, é sintomático e relevante o fato de que, no Código Civil, a requisição administrativa é prevista justamente no preceito legal incumbido de versar sobre a propriedade.

Com efeito, a requisição administrativa, como todas as demais formas de intervenção estatal na propriedade alheia, condensa uma forma de ponderação que coloca, de um lado, o direito de propriedade (art. 5º, XXII e art. 170, II, da CF) e, de outro, a sua função social (art. 5º, XXIII e art. 170, III da CF) e o interesse público. O direito de propriedade, portanto, não se afigura absoluto, de forma que deve ser exercido nos limites do cumprimento de sua função social, o que também se encontra previsto em várias regras constitucionais. A função social da propriedade, cumpre salientar, deve ser tratada como uma noção técnico-jurídica, consubstanciada na imposição hermenêutica de que seja o direito subjetivo de propriedade interpretado no sentido de ser ponderado com os demais valores e princípios jurídicos. A priori, não se trata, portanto, de justificativa para esvaziamento dos consectários do direito de propriedade, tampouco de fundamento para que seja a propriedade tratada de forma absoluta.

Assim, poder-se-ia afirmar que os instrumentos de intervenção estatal na propriedade, como é caso da requisição administrativa, encontram fundamento imediato nas regras constitucionais e infraconstitucionais que as preveem, ou seja, na própria soberania interna que credencia o Poder Público a agir licitamente de modo a suprimir ou restringir total ou parcialmente a propriedade alheia. Já o seu fundamento mediato se dá com a confluência da já referida função social da propriedade com o princípio do interesse público.

Analisando-se dogmaticamente a figura das requisições administrativas, é possível defini-las como uma intervenção estatal na propriedade ou na posse alheia, imposta de modo unilateral, transitório e autoexecutório, fundamentado em caso de perigo público iminente, com posterior indenização, se prejuízo dela advier. Por dever de clareza, passam a ser analisados cada um dos compartimentos da definição proposta.

Inicialmente, destaca-se o fato de que a requisição se trata de instrumento de intervenção estatal na propriedade alheia. Consabido que o Poder Público pode intervir na propriedade alheia de dois modos: por meio de intervenções restritivas na propriedade alheia e por meio de intervenções supressivas. Estas eliminam a propriedade alheia, aquelas mantém a propriedade alheia, ainda que sobre ela sejam impostas restrições. Na requisição administrativa, normalmente temos caso de intervenção restritiva. Ou seja, o proprietário ou possuidor do bem continua a sê-lo, mas sofrerá a privação temporária do mesmo. Isso ocorrerá, por exemplo, no caso de requisição administrativa que recaia sobre um hospital privado. O Poder Público fruirá momentaneamente o bem, mas o devolverá ao seu proprietário ou legítimo possuidor tão logo superada a situação de perigo público iminente. Todavia, haverá casos de requisição administrativa que importarão a supressão da propriedade alheia, como é o caso daquelas que recaiam sobre bens perecíveis ou descartáveis, hipótese em que a requisição administrativa se assemelhará, ultima ratio, a categoria jurídica próxima à noção de desapropriação.

A rigor, as requisições administrativas podem recair tanto sobre bens particulares, quanto sobre bens públicos. Nesse aspecto, considerando o atual desconcerto entre os entes, convém ressalvar que o Supremo Tribunal Federal, no bojo do Mandado de Segurança nº 25.295/DF, entendeu que, “em situação de normalidade institucional, sem a decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio”, o art. 15, XIII, da Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica do SUS) não autoriza a requisição de bens de um município pela União. A nota é de suma importância pelo fato de tal dispositivo autorizar a requisição de bens e serviços, tanto de pessoas naturais quanto de pessoas jurídicas, entre outras hipóteses, em casos de calamidade pública e de irrupção de epidemias.

A requisição administrativa consiste em ato unilateral do Poder Público. Ou seja, não está condicionada à aceitação ou concordância do seu destinatário. Portanto, a requisição administrativa ocorrerá independentemente e até mesmo contra a vontade do destinatário.

Em linhas gerais, como já referido, o Poder Público utilizará os bens requisitados de modo temporário, ou seja, não se trata de bens a serem incorporados permanentemente ao patrimônio público, porquanto a sua própria definição e fundamentação decorre de situação de perigo que, por sua natureza, será temporário. Evidentemente, repise-se, tal circunstância não se mostra aplicável aos casos de requisição sobre bens perecíveis ou descartáveis, os quais serão definitivamente consumidos em razão da própria requisição.

Demais disso, a requisição administrativa consiste em instrumento autoexecutório, isto é, a sua exequibilidade poderá ser imposta pela Administração Pública, caso haja resistência do seu destinatário, por meio do emprego de força pública, inclusive policial, independentemente de intervenção judicial.

A requisição é, ainda, uma forma de intervenção estatal na propriedade alheia, fundamentada em caso de perigo público iminente. Ora, aqui o destaque é feito em relação à necessidade de que ela seja devidamente fundamentada. Com efeito, o princípio da motivação das condutas administrativas é, estreme de dúvida, dotado de status constitucional (MAFFINI, Rafael. Elementos de Direito Administrativo. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2016, p. 55-58).  No plano infraconstitucional, há elementos normativos que também se prestam à regulação de tal matéria, notadamente o art. 50, da Lei 9.784/99. Destaca-se, ainda o art. 20, da LINDB, tal como introduzido pela Lei 13.655/2018, segundo o qual “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Além disso, o seu parágrafo único estatui que “a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.

Com isso, evidentemente não bastará a simples invocação a caso de perigo público iminente, impondo-se que, além do detalhamento fático de tal circunstância, seja devidamente apontada por que razões a requisição administrativa é o instrumento que poderá servir para o seu enfretamento. O que tem ocorrido, na prática, é que requisições administrativas têm sido determinadas sem o cumprimento do ônus argumentativo por parte do Poder Público.

Por fim, conceitualmente, a requisição administrativa é instrumento que enseja indenização posterior, se prejuízo houver. Isso implica afirmar que a indenização fica condicionada à ocorrência de danos efetivos, extraordinários e devidamente comprovados.

Apontados os elementos da definição do instituto, passa-se à sua análise crítica e específica em relação ao seu emprego como instrumento de enfrentamento do COVID-19. 

IV. Análise crítica das requisições administrativas como instrumento de enfrentamento ao COVID-19

Não são poucos, nem pouco complexos os problemas que vêm surgindo nas requisições administrativas determinadas no combate ao coronavírus. Dois deles merecem destaque.

A primeira das questões diz com a já referida indenização posterior. É compreensível a ratio do caráter posterior da indenização, decorrente do próprio fundamento da requisição administrativa, qual seja, a situação de perigo público iminente, a justificar que a medida administrativa possa ser tomada antes mesmo de discussões sobre os valores devidos pela subtração ou pela privação dos bens e serviços. Num paralelo com a desapropriação, cuja indenização há de ser justa e prévia (art. 5º, XXIV, da CF), a requisição administração mostra-se mais urgente e, portanto, relega para um momento posterior eventuais controvérsias sobre a indenização devida.

Caso se proliferem as requisições, como parece ser o caso deste momento de enfrentamento do COVID-19, tal cenário poderá ensejar a descapitalização de um relevante setor da economia – um dos poucos não afetados por problemas de demanda: o setor da saúde.

Diante dessas circunstâncias, impõe-se que as requisições administrativas sejam realizadas com as suas conseguintes indenizações, em momento imediatamente posterior, em poucos dias, sob pena de ruptura da cadeia produtiva fabricante. Imagine-se uma empresa que importe ou produza determinado produto ou equipamento médico e que tenha contra si a determinação de requisições administrativas. Caso não seja feita a indenização a tempo de tal empresa retomar sua importação ou produção, estará ela descapitalizada e, por conseguinte, privada da possibilidade de continuar importando ou produzindo seus produtos.

Outra questão relevante diz com a competência para a determinação das requisições. O art. 3º, § 7º, da Lei nº 13.979/2020 versa sobre o tema. Com efeito, trata-se de medida de enfrentamento que pode ser determinada pelo Ministério da Saúde (inciso I do § 7º do art. 3º). Contudo, merece críticas o fato de que o art. 3º, § 7º, III, do citado diploma também atribui competência, para as requisições administrativas, a todos os gestores locais da saúde, sem necessidade de autorização do Ministério da Saúde. Com isso, permite-se que milhares de entes federativos imponham requisições administrativas de modo desarticulado, podendo produzir, de um lado, o desabastecimento de produtos essenciais ao combate do coronavírus e, de outro, o desvirtuamento de uma política pública que há de ser nacionalmente articulada.

Numa situação extrema, que não pode ser qualificada como inimaginável, pense-se numa requisição administrativa de equipamentos médicos, promovida por um só Estado-membro, que culmine por comprometer o abastecimento a todos os demais entes federados.

Desta forma, e considerado o fato de que tais medidas deveriam ser articuladas nacionalmente, o ideal é que, de lege ferenda, o art. 3º, VII, fosse “transferido” do art. 3º, § 7º, III para o art. 3º, § 7º, I, ou para o art. 3º, § 7º, II, para fins de que as requisições administrativas, respectivamente, ou fossem de competência privativa do Ministério da Saúde, ou, ao menos, demandassem a autorização deste quando de iniciativa dos gestores locais. 

V. Considerações finais:

Muitos de nós passaram pelos bancos das Faculdades de Direito acreditando que as lições sobre o conceito, a natureza jurídica e os pressupostos do instituto da requisição administrativa seriam apenas mais um capítulo dos manuais que o Professor de Direito Administrativo deveria referir, estritamente para fins de cumprimento curricular. Contudo, o COVID-19 inadvertidamente jogou luz sobre os mais díspares elementos da vida prática de pessoas e instituições, e o Direito Administrativo constitui parte determinante do cotidiano daquelas, destacadamente em um Estado com tantos compromissos para com seus cidadãos e empresas.

O presente ensaio buscou, a partir da caracterização da requisição administrativa e da análise crítica da legislação editada para enfrentar a crise do Coronavírus, evidenciar os riscos do emprego moderno e descuidado dessa antiga ferramenta à disposição da Administração Pública. Ainda é cedo para saber ou mesmo supor a extensão dos impactos do COVID-19 sobre o Direito Administrativo. Nada obstante, a retomada de discussões relevantes, mas esquecidas em curtas seções de obras colossais, é certa, assim como a necessidade de debate sobre o que caracteriza(rá) o “Direito Administrativo da Crise”.

Ps. Este texto foi escrito a seis mãos, pelos Professores RAFAEL MAFFINI, GUILHERME CARVALHO e GABRIEL HELLER. Por restrições do sistema, registrou na abertura apenas o primeiro autor. Cabe apresentar também os demais co-autores. 

GUILHERME CARVALHO é Doutor em Direito Administrativo e Mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração.

GABRIEL HELLER é Mestre em Direito pela Uniceub; Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF).



Por Rafael Da Cás Maffini (RS)

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