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Prazo dos Contratos Administrativos: o que a Constituição tem a ver com isso?

ANO 2018 NUM 402
Ricardo Marcondes Martins (SP)
Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. Líder do grupo de pesquisa "Ponderação no direito administrativo e contrafações administrativas".


06/06/2018 | 12802 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

A Lei 8.666/93, Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, disciplina a duração dos contratos no artigo 57. Do “caput” extrai-se a regra geral: a duração dos contratos é adstrita à duração dos respectivos créditos orçamentários. Nos incisos, há quatro “aparentes” exceções: I – projetos contemplados nas metas estabelecidas no plano plurianual; II – serviços a serem executados de forma contínua; III – aluguel de equipamentos e utilização de programas de informática; IV – hipóteses de dispensa de licitação relacionadas às Forças Armadas. Na prática administrativa, esse artigo é amaldiçoado.

Muitos juristas consideram-no um irracional obstáculo ao exercício da função administrativa. Um obstáculo estabelecido pelo Legislador numa demonstração de falta de sensibilidade para atuação da máquina pública. Se o Legislador criou o problema, dizem muitos, nada impede que o resolva. E o fez, para as empresas estatais, no artigo 71 da Lei 13.303/16 (Estatuto das Empresas Estatais): os contratos terão prazo não superior a cinco anos, podendo esse prazo ser ultrapassado quando os projetos estiverem contemplados no plano de negócios e investimentos da empresa ou quando a fixação de prazos superiores for prática rotineira de mercado e a imposição do prazo de cinco anos inviabilizar ou onerar excessivamente a realização do negócio.

Pretendo nesta coluna explicar a razão de ser da regra do “caput” do art. 57 da Lei 8.666/93. Trata-se, antecipo, de um desdobramento de regras constitucionais. Ao indicar o fundamento constitucional da regra legislativa, espero evidenciar que a Constituição deixou, no tema, estreito campo ao Legislador. Alterações substanciais do regime estabelecido no referido art. 57 violam a Constituição. Por isso, o art. 71 da Lei das Estatais é, a meu ver, manifestamente inválido. Espero que esta coluna ajude a tornar o tema da duração dos contratos administrativos menos obscuro e, assim, menos suscetível a manipulações indevidas.

O tema importa alguns conhecimentos de Direito Financeiro, matéria infelizmente pouco estudada no Brasil. Lamentavelmente, ainda hoje, muitos cursos de graduação não possuem a matéria em sua grade curricular. Pois bem, vigora no Brasil o princípio da estrita legalidade da despesa pública, expresso no art. 167, incisos I, II, V e VI, da Constituição Federal. A regra é que toda despesa pública passe pelo crivo do Poder Legislativo, dependa de expressa autorização parlamentar. Insisto: o Poder Executivo não pode realizar despesa sem prévia autorização do Poder Legislativo. A Constituição só admite uma exceção, prevista no §2º do artigo 167: os créditos extraordinários, somente admitidos para atender despesas “imprevisíveis e urgentes”, “como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública”. O dispositivo condiciona a abertura de créditos extraordinários à observância do artigo 62, vale dizer à posterior aprovação parlamentar. E note-se: não ficou apenas nos conceitos vagos da “imprevisibilidade” e da “urgência”, impôs uma interpretação analógica. Após a formulação genérica, o Constituinte valeu-se de uma sequência casuística, exigindo, assim, que os conceitos vagos sejam interpretados de acordo com os casos enumerados. Dito isso, concluo: a Constituição não admite despesa pública sem autorização legislativa e não admite exceção a essa proibição; a regra é que a autorização seja prévia; excepcionalmente, em hipóteses bastante incomuns, como a guerra e a imprevisível calamidade pública, admite a autorização posterior.

Para compreensão dos desdobramentos dessa imposição constitucional há que se atentar para as fases da despesa pública. Ela deve ser instituída ou fixada na Lei Orçamentária. Quer dizer: necessita ser inserida no orçamento. Para entender essa assertiva faz-se necessário um breve exame das leis orçamentárias.

A Constituição prevê a edição de três leis orçamentárias, cuja a vigência, os prazos, a elaboração e a organização devem ser estabelecidas em lei complementar (art. 165, §9º, I). A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00) pouco estabeleceu sobre elas, de modo que o assunto continua, em grande medida, não regulado. O referido dispositivo constitucional determina também que a lei complementar discipline o exercício financeiro. Nesse caso, houve a recepção da Lei Federal 4.320/1964, que estabelece, no artigo 34, que o exercício financeiro coincidirá com o ano civil. Enquanto não alterada a regra do art. 34 da Lei 4.320/64, pelo quórum necessário para aprovação de lei complementar, o exercício financeiro vigora de 01/01 a 31/12.

Em relação à vigência das leis orçamentárias, enquanto não editada a lei complementar referida no art. 165, §9º, inciso I, da CF/88, a própria Constituição disciplinou o assunto no art. 35, §2º, do ADCT. Todas as despesas que ultrapassem o exercício financeiro devem estar previstas no Plano Plurianual (PPA), que tem a duração de quatro exercícios. Nos termos do inciso I do §2º do art. 35 do ADCT, o PPA vigora a partir do segundo ano do mandato do Chefe do Executivo até o final do primeiro ano do mandato subsequente. Trata-se de uma evidente concretização do princípio da continuidade administrativa.

As despesas realizadas em cada exercício devem estar previstas na Lei Orçamentária Anual (LOA), que vigora de 01/01 a 31/12. A edição da LOA é preparada pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), também anual. O projeto de LDO deve ser encaminhado, nos termos do inciso II do §2º do art. 35 do ADCT, até 8 meses e meio antes do encerramento do exercício financeiro (como o exercício acaba em 31/12, deve ser encaminhado pelo Executivo ao Congresso até 15/04). Encaminhado o projeto, o Parlamento deve aprová-lo e, pois, “devolvê-lo para a sanção” até o final do primeiro período da sessão legislativa. Pelo texto originário do artigo do 57 da CF/88, o primeiro período da sessão legislativa iniciava-se em 15/02 e encerrava-se em 30/06. A Emenda 50/06 alterou o dispositivo: antecipou-a para 02/02 e estendeu-a até 17/07. Logo, a LDO deve ser devolvida ao Executivo até essa data.

Editada a LDO, o Poder Executivo está habilitado a elaborar o projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA), que deve ser encaminhado ao Parlamento, nos termos do inciso III do §2º do art. 35 do ADCT, até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro (quer dizer, como o exercício encerra-se em 31/12, até 31/08). O Parlamento deve aprovar o projeto da LOA e devolvê-lo à sanção do Presidente da República até o encerramento do segundo período da sessão legislativa. Pelo texto originário do art. 57, ele iria de 01/08 a 15/12 e, hoje, pelo texto resultante da Emenda 50/06, vai de 01/08 a 22/12. Sancionada a LOA, ela vigerá a partir do início do ano seguinte, de 01/01 a 31/12.

Esses prazos, em decorrência do princípio da simetria, aplicam-se aos Estados e Municípios. Sem embargo, muitas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas estabelecem prazos diferenciados. A aplicação do princípio da simetria pelo STF, conforme expus no capítulo 3 de meu “Estudos de Direito Administrativo Neoconstitucional”, não segue, infelizmente, rigor científico.

Retomo: as despesas públicas devem ser inseridas na Lei Orçamentária, com a respectiva dotação. Uma vez instituída a despesa, ela deve ser realizada. O artigo 8º da LRF (Lei Complementar 101/00) exige que a despesa seja programa, primeiro estágio da realização da despesa. Após a programação da despesa, segue-se a realização do processo licitatório ou do procedimento administrativo de contratação direta por dispensa ou inexigibilidade. Após, segue-se o empenho da despesa. Empenho é o ato administrativo que autoriza a realização da despesa pública. Pressupõe a verificação de prévia dotação orçamentária e do cumprimento das formalidades para escolha do contratado (realização de licitação ou formalidades exigidas para dispensa ou inexigibilidade). Regra geral, todo contrato administrativo configura empenho de despesa pública e o empenho exige a reserva de recursos orçamentários. Após o empenho, deve-se efetuar a liquidação da despesa, quer dizer, a verificação do cumprimento contratual da obrigação; se, por exemplo, o bem comprado foi entregue, o serviço contratado foi prestado. Liquidada a despesa, expede-se a ordem de pagamento e efetua-se o efetivo desembolso dos recursos.

Explicadas as leis orçamentárias e os estágios de realização da despesa pública, é possível retomar o tema desta coluna: a Administração Pública não pode se comprometer a realizar despesas públicas sem que tenham sido previamente autorizadas pelo Legislador. Logo, o empenho sempre deve ser precedido de prévia dotação orçamentária. Noutras palavras: não se assina contrato administrativo sem que haja indicação da dotação orçamentária que lhe dê arrimo. Onde o Poder Legislativo autoriza a realização da despesa? Na Lei Orçamentária Anual (LOA). E qual a duração da LOA? Vigora por um exercício financeiro, de 01/01 a 31/12. Conclusão: os contratos administrativos, regra geral, só podem durar de 01/01 a 31/12.

Não importa em que data tenha sido celebrado, o contrato só poderá durar até o final do exercício. Assim, se um contrato, por exemplo, é celebrado em 01/03, só poderá durar até 31/12; se é celebrado em 01/10, só pode durar até 31/12; se é celebrado em 30/12, só pode durar até 31/12. Isso porque o contrato autoriza a realização da despesa (rectius, empenha), e despesa (ou, mais precisamente, empenho) não pode ser realizada sem prévia autorização legislativa. Esta, porém, dura até o final da vigência da lei autorizadora, vale dizer, até o final do exercício financeiro, que, atualmente, dá-se em 31/12.

Poder-se-ia dizer: é assim por força da regra legislativa, do caput do artigo 57 da Lei 8.666/93. Espero ter demonstrado que a assertiva não é verdadeira. É assim porque a Constituição exige a prévia autorização legislativa, que se dá, regra geral, na Lei Orçamentária Anual.

Poder-se-ia questionar: mas é possível a autorização legislativa em créditos adicionais. Os créditos suplementares somente vigoram no exercício financeiro em que foram abertos, têm sua vigência atrelada à dotação suplementada (Lei Federal 4.320/64, art. 45). Noutras palavras: também duram até 31/12. Os créditos especiais e extraordinários, como regra, também vigoram até o final do exercício. O §2º do art. 167 da CF/88 abre uma exceção: se forem autorizados nos últimos quatro meses do exercício, podem ser reabertos, no exercício seguinte, nos limites dos seus saldos, sendo, nesse caso, incorporados ao orçamento do ano seguinte. Se reabertos, durarão até o final do exercício seguinte. Trata-se de uma exceção: exigem a prévia aprovação legislativa, no caso de créditos especiais, ou posterior, no caso de créditos extraordinários, e submetem-se a um limite temporal, a autorização deve ser promulgada nos últimos quatro meses do exercício.

Feita a ressalva, retomo a conclusão: a duração dos contratos não decorre da regra legislativa, mas das regras constitucionais. O Legislador pode alterar essa duração? Sim, se alterar a duração do exercício financeiro. O Constituinte permitiu que a Lei Complementar defina a vigência do exercício financeiro. Nada impede a alteração do artigo 34 da Lei 4.320/64. Se o Legislador mudar a duração do exercício financeiro, poderá alterar a duração dos contratos administrativos. O que não pode fazer, sob pena de direta ofensa à Constituição, mantida a coincidência do exercício financeiro com o ano civil, é autorizar empenho de despesa por mais de um ano, como o fez no artigo 71 da Lei 13.303/16.

As supostas exceções do art. 57 da Lei 8.666/93 são apenas “aparentes”. Trata-se, na verdade, de mero reforço da regra do caput. Existem contratos cujo objeto, por sua própria natureza, pressupõe despesas que serão liquidadas em mais de um exercício. Pode o contrato administrativo ser celebrado nesses casos? Sim, desde que as despesas que ultrapassem um ano estejam previstas no plano plurianual. A previsão no PPA importa no afastamento da regra do caput do art. 57? Evidente que não! O contrato terá vigência adstrita à respectiva autorização orçamentária, mas poderá ser prorrogado. Com efeito: as despesas que serão liquidadas no exercício devem estar, necessariamente, previstas na LOA.

Assim, suponha-se a celebração de um contrato de obra pública, com previsão de execução em três anos. O contrato é assinado em 01/07/18. Terá vigência inicial até 31/12/2018, data em que se encerra a vigência da autorização orçamentária. Como está prevista no PPA, o contrato poderá ser prorrogado por mais um ano, desde que a despesa a ser liquidada em 2019 esteja prevista na LOA de 2019. A vigência da prorrogação limitar-se-á a 31/12/2019. Poderá ser prorrogado por mais um ano, mas a vigência limitar-se-á a 31/12/2020. Em suma: a vigência do contrato está adstrita à autorização orçamentária anual, admitindo-se a prorrogação.

A segunda previsão — serviços executados de forma contínua — deve ser compreendida da mesma forma. Trata-se de serviços que são continuamente prestados. Sabe-se, hoje, que amanhã continuará sendo necessário o serviço de limpeza, de manutenção de elevadores, de segurança. Pois bem: qual a vigência desses contratos? A vigência dos respectivos créditos orçamentários. Celebrado o contrato em 01/12, ele vigerá até 31/12. O que o inciso III do art. 57 admite não é a violação do caput, mas a prorrogação do contrato. Com o término da vigência da autorização legislativa do crédito orçamentário e, pois, do respectivo contrato, pode-se prorrogá-lo, desde que, no exercício seguinte, também haja dotação orçamentária, na respectiva LOA, que dê arrimo à prorrogação. O contrato é prorrogado por um ano, de 01/01 a 31/12. No exercício seguinte pode ser prorrogado novamente, caso haja dotação orçamentária na LOA seguinte, que dê arrimo à prorrogação. A Lei permite a prorrogação por 48 meses e, excepcionalmente, mediante motivação específica, por 60 meses (Lei 8.666/93, art. 57, §4º).

Afora essas regras, é possível a prorrogação do contrato para além do exercício? Sim, desde que a despesa não liquidada seja inscrita em restos a pagar. Suponha-se que se contrate, em 01/07/18, um serviço para ser executado até 01/07/19. O contrato, de início, terá vigência até 01/12/2018. Deve ter dotação para toda a despesa empenhada, ou seja, para toda a despesa objeto do contrato. Por evidente, só será liquidada em 2018 a despesa referente ao que foi executado em 2018. Metade do serviço será executado em 2019. Ao final de 2018, restará liquidar a despesa referente às obrigações não executadas. O que fazer? Essas despesas devem ser inseridas em restos a pagar. São despesas autorizadas no orçamento de 2018, mas que só serão liquidadas quando da vigência do orçamento de 2019.

É bastante comum, infelizmente, a violação dessa regra: a Administração empenha a despesa, mas só reserva dotação da despesa que liquidará no respectivo exercício. Limita-se a prometer inserir no próximo orçamento a despesa que será liquidada no exercício seguinte. A prática, bastante comum, viola a Constituição. Insisto: não é válido empenhar despesa sem prévia dotação orçamentária, ainda que a despesa seja liquidada no exercício seguinte.

Essas regras se aplicam à concessão de serviço público? Apesar de ser um erro bastante comum, mesmo entre especialistas, concessão não é contrato administrativo. No contrato, há duas relações jurídicas: uma entre Administração-contratante e administrado-contratado e outra entre Administração e usuário. Inexiste relação jurídica autônoma entre administrado-contratado e usuário. Quem paga o contratado é a própria Administração, com recursos orçamentários. Na concessão há três relações jurídicas autônomas: uma entre concedente e concessionário, outra entre concedente e usuário, e outra entre concessionário e usuário. Há, pois, uma relação jurídica autônoma entre concessionário e usuário. E isso porque a remuneração do concessionário decorre da própria exploração do serviço, ele cobra a tarifa do usuário.

Perceba-se: regra geral, as receitas da concessão decorrem da própria exploração do serviço, da cobrança de tarifas (ou da venda de anúncios publicitários), e não do orçamento. Quando o Legislador autoriza a concessão, autoriza o estabelecimento dessa relação jurídica entre concessionário e usuário, e o estabelecimento dessa receita oriunda da exploração do serviço enquanto vigente a concessão. Logo, a duração não está adstrita à lei orçamentária. Na concessão, o Poder Público não realiza despesa: o concessionário presta o serviço e por meio da prestação remunera-se e amortiza seus investimentos.

Mas e as parcerias público-privadas? São deturpações, contratos (ilícitos) disfarçados de concessão. Deixo o exame dessa triste deturpação para outra coluna.



Por Ricardo Marcondes Martins (SP)

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