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Qual o Futuro do Direito Administrativo?

ANO 2019 NUM 427
Ricardo Marcondes Martins (SP)
Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. Líder do grupo de pesquisa "Ponderação no direito administrativo e contrafações administrativas".


20/06/2019 | 5536 pessoas já leram esta coluna. | 6 usuário(s) ON-line nesta página

Em 14.06.19 tive oportunidade de participar de um debate, na Escola Superior da Procuradoria Geral de Estado, no curso magistralmente coordenado por André Luiz dos Santos Nakamura, Fábio Mauro de Medeiros e Míriam Regina Cabral Aurélio, sobre o futuro do Direito Administrativo. Na tentativa de salvar as enunciações verbais da efemeridade que lhes é inerente, registro aqui o resultado de minhas reflexões.

Falar sobre o futuro é fazer futurologia e, esta, por motivos evidentes, é bastante problemática. Em geral, quem fala do futuro de um ramo jurídico acaba preso às suas próprias expectativas. Sem desprezar esse fato, proponho, para realizar essa empreitada, olhar para o passado. E o faço imbuído da convicção de que só uma perspectiva histórica permite conjecturas sobre o porvir.

Em relação à história da doutrina do Direito Administrativo brasileiro, proponho, de modo bastante esquemático, dividi-la em três fases. A primeira foi marcada pelo domínio do Poder político. O conceito-chave foi, coerentemente a esse domínio, o conceito de “poder”. A doutrina do direito administrativo voltou-se para a teorização sobre o “poder” hierárquico, o “poder” vinculado, o “poder” discricionário, o “poder” regulamentar, o “poder de polícia”. Nesse momento histórico, raros foram os doutrinadores que, a partir da sólida contribuição de Leon Duguit, atentaram para o fato de que o poder estatal é sempre ancilar de um dever, não possuindo, portanto, autonomia.

Os estudos doutrinários dessa fase tiveram como preocupação principal o funcionamento da Administração Pública, sua operacionalização, sem preocupação com a coerência. A fase foi marcada também pelo Legalismo: pela excessiva reverência à lei. Administrar, nessa fase, era simplesmente aplicar a lei de ofício. De modo que a doutrina do Direito Administrativo se limitava, em geral, a compreender a literalidade dos textos legais para viabilizar a atuação prática da Administração.

A segunda fase, decorrente da criação, primeiro de Cursos de Especialização em Direito Administrativo, depois, de Cursos de Mestrado e Doutorado, foi marcada por uma preocupação científica. Mais do que compreender a literalidade das leis, o fundamental passou a ser compreender os alicerces do regime jurídico — então chamados de princípios jurídicos — responsáveis por fazer o conjunto de normas sobre a Administração Pública um verdadeiro sistema, vale dizer, um ordenamento jurídico.

A fase foi marcada também pelo Constitucionalismo: a Constituição passou a ser o grande parâmetro para o exame da validade das leis e dos atos administrativos. O administrativista deixou de ser um mero compendiador de textos legais; assumiu a postura de um cientista encarregado de, observados certos pressupostos hermenêuticos, identificar as normas vigentes, compreender seu sentido e alcance e verificar quais são válidas e quais são inválidas.

Nessa fase, adotou-se uma perspectiva normativista do fenômeno jurídico. A partir da contribuição kelseniana, como pressuposto para uma análise científica, restringiu-se o objeto do Direito administrativo, que passou a ser considerado um conjunto de normas sobre a Administração Pública, vigentes em determinado território e em determinado momento histórico. Coerentemente com essa visão, o conceito-chave do Direito Administrativo passou a ser o “ato administrativo”, conceito instrumental, associado às normas ou decisões administrativas. Assumiu-se a pressuposição de que haveria interpretações corretas e incorretas sobre a existência, validade e eficácia dessas normas. Daí o caráter científico, próprio dessa fase: tendo por parâmetro a Constituição, a doutrina do Direito administrativo assumiu a tarefa de apurar qual a interpretação “correta” das normas que regem a Administração Pública.

É bem comum que o governante, independentemente do partido político, queira alienar o patrimônio público. Na primeira fase, bastava a autorização legislativa, vale dizer, para o Executivo vender um imóvel público bastava que o Parlamento o autorizasse; na segunda fase, não basta a “vontade” do Legislador. A lei tem que ser constitucional e, por isso, a alienação deve ser justificada por razões de interesse público. A atuação administrativa muda radicalmente da Era do Legalismo para a Era do Constitucionalismo.

Vivenciamos, porém, uma terceira fase, marcada pelo domínio do Poder econômico. Nessa fase, a preocupação científica foi posta de lado. Para defender os interesses dos detentores do poder econômico, muitos administrativistas passaram a negar a existência de uma interpretação correta e, pois, de uma coerência normativa. Pelo contrário, o Direito administrativo passou a ser visto como uma “caixa de ferramentas”. Nesse cenário, o ato administrativo entrou em “crise”, deixando de despertar o interesse dos estudiosos. A doutrina passou a se debruçar sobre os temas que interessam ao Poder econômico, mais precisamente às parcerias em sentido amplo com os particulares: infraestrutura, contratos e concessões, parcerias com o Terceiro setor. O interesse da doutrina voltou-se para tudo que envolve um “negócio privado” em sentido amplo, deixando de lado os assuntos instrumentais, como a teoria da existência, validade, eficácia do ato, dos atributos do ato etc.

A terceira fase é marcada também pelo Neoconstitucionalismo. Após a Segunda Guerra Mundial, boa parte da comunidade jurídica percebeu que a aplicação do Direito apenas pela subsunção é desastrosa, levando a injustiças e a irracionalidades. O Direito foi considerado não apenas um conjunto de regras, mas também de valores positivados, que devem ser aplicados por ponderação. Eis a situação atual do Direito Administrativo: por um lado, dominado pelo Poder econômico; por outro, em pleno apogeu do Neoconstitucionalismo.

 O resultado é, atualmente, catastrófico para a segurança jurídica: ao negar a existência de uma Ciência do Direito e de uma interpretação correta, os juristas acabaram prejudicando o próprio interesse de seus clientes. Se, por um lado, tudo pode; por outro, nada pode. Quer dizer: paralelamente à ampla admissibilidade dos interesses, propugnada por advogados e políticos, seguiu-se a uma ampla inadmissibilidade propugnada pelos órgãos de controle. Nada mais natural: se não existe interpretação correta para a Administração ativa, também não existe interpretação correta para a Administração controladora. A Ciência não é condutora da atuação nem de uma, nem da outra.   

A insegurança decorrente desse cenário de negação científica foi drasticamente intensificada pelo Neoconstitucionalismo. Em decorrência de suas premissas, proibições e obrigações normativas são facilmente extraídas da implicitude. A letra da lei não é parâmetro seguro. Por meio da ponderação, os órgãos de controle podem exigir muito mais do que exigiam no passado.

A terceira fase é, também, marcada por uma intensificação da “fuga para o Direito privado”. Para defender os interesses do Poder econômico, os doutrinadores passaram a legitimar o afastamento dos obstáculos ao mau exercício funcional. O Direito administrativo — erigido como um conjunto normativo protetor do interesse do povo — foi diuturnamente destruído em prol do interesse privado.

Substituiu-se o ato administrativo, pelo contrato, clamando-se pela “Administração Consensual ou Concertada”. Clamou-se pela possibilidade — sempre e para todos os temas — do negócio. Se o particular quer violar o meio ambiente natural ou urbano, se quer violar a ordem econômica, ou se já o fez, se quer pagar menos tributos, se não quer ser punido disciplinarmente, tudo se resolve pela celebração de um negócio.

Ademais, desencadeou-se um desenfreado movimento de privatizações. A substituição da prestação direta pela indireta, e o aumento de concessões. No campo social, do mesmo modo, deu-se a substituição da atuação direta pela atuação do Terceiro Setor, com a privatização dos serviços sociais. Com a privatização, afasta-se a realização de concursos públicos e licitações públicas.

Em relação aos profissionais da Administração Pública, primeiro, ocorre o amesquinhamento e aviltamento do regime estatutário, segundo, o aumento e a generalização do regime celetista e, numa degradação sem limites, terceiro, a difusão da terceirização, com a radical privatização da profissão pública.

Toda essa fuga para o Direito Privado gerou um descomunal aumento da corrupção. Por óbvio: quanto mais se afastam as amarras ao mau exercício funcional, mais se afrouxam os entraves à corrupção. A satisfação desenfreada do poder econômico, sem preocupação científica e com afastamento das restrições estabelecidas contra o mau exercício funcional, tem, infelizmente, esse efeito deletério.

Traço essa análise histórica sobre o passado e o presente do Direito administrativo, para falar do futuro. Como antecipei, minha visão sobre o futuro é indissociável de minhas expectativas pessoais. Contudo, não considero que minha proposta se fundamente apenas numa posição ideológica. Volto à perspectiva histórica antes de enunciar minhas conjecturas.

Belmiro Valverde Jobim Castor, em seu magistral “O Brasil não é para amadores”, observa que a história da Administração Pública brasileira se baseia numa “dinâmica da reforma-contrarreforma” (p. 150). Surgem vozes em prol de uma maior modernização e flexibilização, de afastamento das amarras, dos obstáculos — erigidos em prol da adequada tutela dos interesses do povo —, que emperram a máquina pública, atrasando e dificultando sua atuação. São os arautos da modernidade, responsáveis pelo, nas palavras de Castor, “ethos modernizante”.

Afastados esses obstáculos, o resultado é evidente: um aumento desenfreado da corrupção e o desperdício de recursos públicos. Logo aparecem então vozes em prol da centralização administrativa, do prestígio burocrático. É o “ethos moralizante”, nas palavras de Castor. Erigidos novamente os obstáculos ao mau exercício funcional, a máquina torna-se menos ágil. Logo surgem, como uma fênix, diz Castor, as vozes em prol da modernização e, pois, segue-se um novo ciclo do “ethos modernizante”. E tudo se repete, num incessante fluxo de reforma-contrarreforma.

A partir da constatação histórica do experiente Professor Belmiro, parece-me indiscutível — apesar do clamor midiático e popular fazer parecer o contrário — que vivenciamos um “ethos modernizante”.  As leis aprovadas nas últimas décadas consagram institutos da “administração gerencial”, em detrimento da burocracia. Em prol da “modernização”, clamam-se por parcerias, terceirização, negócios e por mais direito privado e menos direito público. Se estamos no clímax do ciclo modernizante e num catastrófico cenário de corrupção, é fácil supor o que virá.

Finalmente respondo à pergunta: qual o futuro do Direito Administrativo? A resposta é, sim, própria de minhas expectativas, mas não é fruto de um anseio tolo e arbitrário. Fortes argumentos racionais a justificam. Tudo leva a crer que vivenciaremos no futuro um ciclo do “ethos moralizante”.

A doutrina do Direito administrativo retomará, com mais ênfase do que no passado, a preocupação científica. O “ato administrativo” voltará à centralidade do Direito Administrativo, tendo em vista a necessidade de um exame técnico, apurado e sério do regime jurídico da Administração Pública. Os assuntos de interesse do Poder econômico — parcerias, contratos, concessões etc. — voltarão a ser estudados tendo em vista uma busca da coerência conceitual, do respeito a princípios estruturantes, e sempre submissos à análise técnico-instrumental, tendo em vista a teoria da norma e, pois, a teoria do ato. O “ethos moralizante” clamará pela retomada da preocupação científica e pela não irracional e imoral subserviência aos interesses econômicos privados.

Não apenas isso: estancar-se-á a fuga para o Direito Privado. No futuro, será retomado o método burocrático, na organização e exercício da atuação administrativa, com afastamento do desastroso método gerencial. O regime estatutário será revalorizado: os alicerces necessários ao bom exercício da função administrativa — dentre eles as prerrogativas imunizadoras à malévola influência política e econômica, como a estabilidade funcional e remuneratória — serão restabelecidos.

Haverá a retomada da atuação estatal de atividades incompatíveis com o regime privado — ou pela inerente essencialidade ou pela necessidade de gratuidade. A infraestrutura básica, como energia e transporte, é incompatível com a atuação livre. Basta imaginar a prestação de serviços de telefonia móvel, fornecimento de água potável, esgotamento sanitário ou transporte coletivo de passageiros serem interrompidos quando a vontade privada assim desejar, para se evidenciar o disparate do discurso privatizante.

Ademais, todos na sociedade sabem que a benemerência privada, em relação aos serviços sociais, não é suficiente para atender toda a necessidade social. Educação, saúde e assistência sem o Estado, em países socialmente pobres, é uma tragédia de graves proporções. A prestação estatal, com gastos controlados, mediante respeito ao direito financeiro e às licitações públicas, será uma exigência do ciclo moralizante.

Não se preconiza para o futuro a retomada do Constitucionalismo, muito menos do Legalismo. O Neoconstitucionalismo veio para ficar. Não é possível, nem hoje, nem no futuro, supor que a invalidação de um ato administrativo se dê por meio apenas da subsunção, com desprezo das circunstâncias fáticas e jurídicas, em especial dos efeitos já gerados. Os artigos 21 e 22 da LINDB (Decreto-lei 4.657/42, introduzidos pela Lei 13.655/18) apenas tornaram expresso um caminho sem volta: a correção de um ato inválido exige ponderação.

Em 2008, ao publicar minha Dissertação de mestrado (“Efeitos dos vícios do ato administrativo”, Ed. Malheiros) afirmei que — da mesma forma que ocorre com a invalidação da lei — a invalidação do ato administrativo exige verificar se é ou não o caso de efetuar a “modulação de efeitos”, sendo possível quatro possibilidades: invalidação “ex nunc”, “ex tunc et ab initio”, “ex tunc et non ab initio” e “pro futuro”. Naquela época, pela minha pesquisa, eu era uma voz isolada. Recentemente, o Decreto 9.830/19, ao regulamentar as alterações da LINDB, tornou expressa, no §4º do art. 4º, a possiblidade de modulação de efeitos da invalidação dos atos administrativos. Ora, só a ponderação das circunstâncias fáticas e jurídicas dá racionalidade à modulação. É o que basta para tornar evidente que o Neoconstitucionalismo veio para ficar.

Contudo, haverá no futuro uma correção de trilhos: um sensível amadurecimento da ponderação. Vale dizer: o Neoconstitucionalismo, no Direito Administrativo, será exercido com pretensão científica. Buscar-se-á, à exaustão, pela coerência na compreensão e aplicação das normas jurídicas. É meu anseio, sim, mas, mais do que isso, é uma exigência da segurança jurídica. A sociedade brasileira não tolerará por muito tempo as mazelas do neoconstitucionalismo desatrelado da Ciência jurídica. O próprio Poder Econômico lutará por mais segurança jurídica. Daí a conclusão: no futuro haverá mais ponderação, mas com mais técnica, com mais seriedade e com mais comprometimento científico.



Por Ricardo Marcondes Martins (SP)

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