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Reforma da previdência e servidores públicos: uma sucessão de catástrofes

ANO 2017 NUM 334
Ricardo Marcondes Martins (SP)
Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. Líder do grupo de pesquisa "Ponderação no direito administrativo e contrafações administrativas".


23/02/2017 | 21941 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

Esta coluna trata da reforma da previdência, mas não apenas da atual. Farei um breve exame do regime da previdência dos servidores públicos estabelecido no texto originário da Constituição de 1988, da Emenda Constitucional n. 20/98, aprovada no Governo FHC, da Emenda Constitucional n. 41/03, aprovada no Governo Lula, e da PEC 287/2016, proposta pelo Governo Temer. O meu objetivo principal é explicar a razão de ser do chamado “regime próprio” e demonstrar como esse regime vem sendo destruído pelas sucessivas reformas. Pretendo também conjecturar sobre as consequências dessa destruição. Espero evidenciar o porquê do título: uma sucessão de catástrofes!

Em relação à previdência, o texto originário de 1988 possui uma coerência conceitual esplêndida. Previu dois regimes: o regime geral de previdência social, para o setor privado, integrado à seguridade social e disciplinado nos artigos 201 e 202, e o regime próprio, para os servidores públicos, disciplinado no art. 40. Regime próprio e geral assentam-se em premissas teóricas radicalmente distintas, muitas vezes não compreendidas sequer por especialistas de escol. Para entendê-las há que se ater às diferenças profundas entre o exercício profissional público e o privado.

A diferença entre ambos é abissal. Em que pese certa divergência na doutrina do Direito do Trabalho, prevalece o entendimento de que a relação empregatícia é “contratual”. O regime jurídico do emprego é estabelecido a partir de um acordo de vontades entre empregado e empregador, acordo esse restringido por várias normas de ordem pública, asseguradoras de uma atividade laboral digna. Em assonância com a natureza contratual do vínculo, o regime do emprego privado é próprio da esfera da liberdade, restringida por normas proibitivas e impositivas. No âmbito da liberdade, o particular tem assegurada a possibilidade de realizar várias escolhas a partir de seu livre-arbítrio e, pois, concretizar um “projeto de vida”.

A partir dessas escolhas, na atividade profissional privada, é possível que consiga enriquecer. Enfatizo: é inerente à atividade privada a possibilidade de enriquecimento. Não estou, por óbvio, a afirmar que na sociedade capitalista todos conseguirão enriquecer; é próprio do capitalismo a concentração de renda, sendo o enriquecimento uma possibilidade cada vez mais remota. Apesar disso, o fato é que juridicamente a possibilidade existe. A depender das escolhas, da inteligência, da sagacidade pessoal e de uma boa dose de sorte, é possível que um particular filho de pobres se torne rico. Ao revés, também é possível que um particular filho de ricos se torna pobre. Juridicamente, portanto, no âmbito da liberdade, o Direito brasileiro assegura aos profissionais privados a possibilidade de enriquecimento.

Tudo é diferente em relação à profissão pública. Trata-se de atividades exercidas no âmbito da função e não no âmbito da liberdade. Muitos professores de Direito Administrativo não conseguem compreender as implicações conceituais dessa diferença. O regime jurídico da relação profissional não é estabelecido — em absolutamente nada — pela vontade do servidor e pela vontade dos agentes da Administração Pública, não há, pois, acordo de vontades. O regime é fixado pela Constituição, pelas leis e pelos regulamentos administrativos. Daí o nome: é “estatutário”! O servidor aceita se submeter a esse regime, daí os conceitos propostos por Duguit: trata-se de dois atos (ato união), um subjetivo — a manifestação de vontade do servidor — que é condição (ato condição) para a incidência do estatuto (ato objetivo). Nem a manifestação de vontade do servidor, nem os atos proferidos no exercício da função pública pelos agentes encarregados da realização do concurso, da correção das provas, da prolação do ato de provimento, da realização da posse (atos esses que obviamente não são volitivos, não são, em rigor, manifestações de vontade) estabelecem o regime jurídico da relação. O regime é unilateralmente fixado pelo Estado — na verdade, pelos agentes normativos competentes (poder constituinte, reformador, legislador, regulamentador) —, e aceito pelo servidor quando de sua posse.

Como disse, é manifesto que muitos juristas não compreendem as bases teóricas do regime estatutário. Há, por exemplo, quem defenda o fim do regime estatutário, o que indica, na minha opinião, com sincero respeito pelos defensores dessa corrente, uma absoluta incompreensão do tema. É algo similar a reivindicar para o Estado a situação jurídica de um particular: o Estado, por óbvio, não possui liberdade, jamais pode decidir pelo livre-arbítrio. Ademais, o regime de emprego público é mal compreendido pela doutrina: por evidente, o empregado público não estabelece “contratualmente” com os agentes da administração o regime da relação. O emprego público é tão estatutário quanto o regime estatutário, a diferença não está na natureza jurídica do vínculo, mas nas normas jurídicas incidentes. Os dois exemplos — a corrente doutrinária que pugna pelo fim do regime estatutário e a incompreensão generalizada da natureza do emprego público — são suficientes para fundamentar a assertiva: a teoria do regime estatutário é nebulosa até mesmo para muitos especialistas. 

O regime estatutário é fruto de uma simbiose de prerrogativas e de restrições, estabelecidas para o bom desempenho da função pública e, pois, para o cumprimento do interesse público. Dentre as restrições, destaco uma que é fundamental para o tema desta coluna: o servidor público abdica de modo radical da possibilidade de enriquecer. Por mais que seja sagaz, inteligente, por mais que estude, por mais que se desenvolva profissionalmente, um servidor público não se tornará rico, pois a Constituição estabelece um “teto remuneratório”. Valho-me do exemplo da área jurídica, que me é mais familiar: qualquer advogado pode, durante sua vida profissional, enriquecer; um magistrado, um promotor público, um advogado público, ao revés, jamais enriquecerá: receberá, no máximo, o teto constitucionalmente estabelecido. Uma pergunta natural é: por que um estudante de direito esforçado, inteligente e sagaz optará por um caminho profissional que o impeça, de maneira radical, de enriquecer?

A resposta está na coerência conceitual aludida: o regime estatutário compreende uma série de restrições importantes, mas também compreende uma série de garantias. Muitas delas estabelecidas para imunizar o agente público da malévola influência do poder político e do poder econômico. O agente público deve ser impessoal, moral, primar pelo cumprimento da lei. Para tanto, só pode perder seu cargo se praticar falta funcional grave: possui estabilidade. O que me interessa nesta coluna não é essa estabilidade, funcional, bastante explorada nos livros de doutrina, mas outra, que, ao contrário, é muito desprezada.

Quem opta por ser um profissional do Estado, opta por trabalhar em prol do interesse público, realizar função pública e, para tanto, deve optar por abdicar, de modo radical, da possibilidade de enriquecer. Mas, em contrapartida, o sistema normativo lhe assegurava uma estabilidade econômica. Primeiro: é praticamente certo (ressalvados os casos de supina irresponsabilidade governamental que levaram certas entidades federativas a problemas graves de desequilíbrio orçamentário) que ao final do mês o servidor receba sua remuneração. Para quem trabalha na iniciativa privada, essa segurança inexiste: quem é profissional autônomo pode não ganhar o suficiente para pagar as contas do mês; quem é empregado pode ser a qualquer momento demitido sem justa causa. Eis a coerência do regime constitucional originário: dois caminhos profissionais distintos, cada um com seus atrativos.

Feitas essas explicações, posso retomar o tema desta coluna. O regime geral da previdência social é um regime pensado para as profissões privadas. Trata-se, no texto originário, de um regime contributivo, similar a um seguro. Numa absoluta simplificação: recolhe-se a contribuição previdenciária para, a partir do recolhimento, ter direito a certos benefícios previdenciários, sendo o principal deles a aposentadoria. Quem contribui para um seguro de vida, após sua morte, tem assegurado ao beneficiário o pagamento de determinada quantia, havendo uma vinculação entre a quantia paga e a contribuição pactuada. A lógica da aposentadoria no regime geral de previdência segue a lógica de um contrato de seguro. Há uma particularidade digna de nota: vigora um teto para os benefícios. Por mais que se recolha a contribuição previdenciária, o beneficiário não receberá mais do que certo limite, que hoje é de R$ 5.531,31. Perceba-se o pressuposto teórico: o benefício previdenciário tem a finalidade de assegurar o “mínimo vital” ao aposentado. O profissional privado teve a vida profissional inteira para enriquecer; se não conseguiu enriquecer, terá, caso tenha contribuído para tanto, direito a uma aposentadoria que lhe assegure o mínimo vital.

O regime próprio da previdência é totalmente distinto. Trata-se de uma decorrência da estabilidade econômica a que me referi. O profissional do Estado abdica, ao optar pelo exercício de uma função pública, da possibilidade de se tornar rico, mas em contrapartida, tinha assegurada uma situação econômica absolutamente estável. Não apenas tinha a certeza de que ao final do mês, caso não praticasse falta funcional grave, receberia o valor pecuniário previsto como remuneração para o seu cargo, como também tinha a certeza de que o receberia até a sua morte. E mais: seus dependentes continuariam recebendo o mesmo valor. A aposentadoria e a pensão, para os profissionais do setor público, não seguiam a lógica de um contrato de seguro, eram “prerrogativas do cargo”, decorrentes da estabilidade econômica que lhes era assegurada. Em suma: quem optasse pela profissão pública sabia que iria receber a remuneração do cargo até o dia de sua morte. Daí a afirmação: as bases teóricas, no texto constitucional originário, dos regimes de previdência eram absolutamente distintas, regime geral de previdência para os profissionais privados, regime próprio de previdência para os profissionais públicos.

Os governantes brasileiros voltaram-se contra o regime próprio. O primeiro ataque ocorreu com a Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.1998, aprovada durante o Governo de FHC. Alterou-se o “caput” do artigo 40 para qualificar o regime próprio como um “regime contributivo”, similar ao regime geral. Acresceram-se e estenderam-se os pressupostos para a aposentadoria: idade, tempo de contribuição, tempo no cargo público. Possibilitou-se aos entes federativos a instituição do regime de previdência complementar e, caso o fizessem, à extensão para o regime próprio do teto estabelecido para o regime geral de previdência. A EC 20 importou num sensível amesquinhamento ao princípio da estabilidade remuneratória dos servidores públicos. Foi, na minha opinião, um crime contra o funcionalismo público brasileiro. Sem embargo, era apenas o começo de uma história de terror.

A Emenda Constitucional n. 41, de 16.12.03, editada durante o Governo Lula, importou num amesquinhamento muito mais profundo. Alterou a redação do §3º do art. 40 para modificar o cálculo do valor da aposentadoria: antes, integral, levava em consideração o valor da remuneração do servidor; agora, leva em consideração as remunerações utilizadas como base para contribuição do servidor ao regime. Reduziu, para quem recebe acima do teto estabelecido para o regime geral, o valor da pensão, antes equivalente ao valor da aposentadoria. Alterou a redação do §8º do art. 40 para acabar com paridade: pelo texto originário, sempre que a remuneração do cargo fosse alterada, o provento da aposentadoria seria igualmente alterado, garantindo-se paridade entre ambos. A regra era uma decorrência direta do princípio da estabilidade pecuniária: nos termos aqui expostos, garantia-se ao servidor até a sua morte o recebimento do valor atribuído ao respectivo cargo. A EC/41 pôs fim à paridade, garantindo apenas o reajuste anual do valor do provento. Como a regra constitucional do reajuste anual é descumprida por todos os governantes brasileiros sem qualquer constrangimento, é fácil intuir o que a alteração importou, de fato, para o funcionalismo público. Outrossim, impôs, em aviltante afronta às cláusulas pétreas expressas, uma contribuição previdenciária a quem já estava aposentado. O crime agora, cometido contra o funcionalismo brasileiro, foi muito mais grave. E foi cometido, para infelicidade daqueles que possuíam convicções ideológicas, por um governo que se dizia protetor das prerrogativas dos servidores públicos.

A destruição do regime próprio ainda não está completa. O governo atual, chefiado pelo aclamado constitucionalista Michel Temer, pretende aprovar nova Reforma Constitucional: a PEC 287/2016. Em entrevista à rádio CBN, em 11.10.16, Temer afirmou não haver sentido nas diferenças entre o regime geral e o regime próprio. De fato, seu projeto destrói o que havia sobrado deste último: pela nova redação que se pretende ao §2º do art. 40 os proventos de aposentadoria do regime próprio não poderão ter valores diferentes dos estabelecidos para o regime geral. De minha parte, custo a acreditar que os governantes, ainda mais quando possuem formação jurídica, desconheçam as bases teóricas que exigem a diferenciação entre os regimes. Mais difícil ainda é acreditar que eles ignoram as consequências das reformas pretendidas. E quais são as consequências?

Ao aniquilar a estabilidade pecuniária, o Governo brasileiro retirará do regime estatutário uma de suas principais garantias. Como dantes afirmado, a Constituição de 1988, em seu texto originário, consagrou um regime estatutário bastante equilibrado em restrições e prerrogativas. No artigo 3º previu como objetivo fundamental da República brasileira, dentre outros, a erradicação da pobreza e da marginalização; no “caput” do art. 170 atribuiu à ordem econômica brasileira a finalidade de assegurar a todos existência digna. Bastam os dois exemplos para evidenciar que a Constituição de 1988 erigiu um verdadeiro Estado Social. Por outro lado, o Texto Maior, com o fortalecimento do Ministério Público e a extensão das competências das Cortes de Contas, apenas para também dar dois exemplos, evidencia uma nítida preocupação com o combate à corrupção. Pois bem: combate à corrupção e erradicação de pobreza só são viáveis com um funcionalismo público bem aparelhado. A tinta gasta no texto originário com as prerrogativas do regime estatutário foi absolutamente coerente com os fins estabelecidos para o Estado.

As reformas constitucionais configuraram um processo, bastante eficiente, de amesquinhamento do regime estatutário. Várias regras importaram numa sensível redução remuneratória: extensão do teto às vantagens pessoais, proibição de todo e qualquer tipo de replique, imposição do regime de subsídio a várias categorias profissionais. A destruição do regime próprio é, sem dúvida alguma, o clímax do aviltamento. Retomo o exemplo da área jurídica, que me é mais familiar. Um estudante de Direito, dedicado aos estudos, tem hoje, ao final da graduação os dois caminhos referidos: o público e o privado, as profissões estatais ou a advocacia privada. Na advocacia privada, poderá enriquecer e muito; nas profissões estatais, receberá no máximo R$ 33.763,00 (valor atual do teto) e quando se aposentar receberá no máximo R$ 5.531,31 (valor atual do teto estabelecido para o regime geral da previdência). É fácil supor qual o caminho será escolhido pelos mais talentosos? Com o aviltamento das garantias, os benefícios de um caminho tornam-se desproporcionais em relação aos do outro. O resultado é óbvio: um funcionalismo público cada vez mais despreparado para o exercício da função pública.

Quem ganha com o aviltamento do princípio da estabilidade pecuniária dos servidores? Para mim, a resposta é evidente: o detentor do capital. Darei um exemplo bastante singelo: suponhamos que alguém queira realizar um empreendimento que encontre obstáculos na legislação urbanística, ambiental etc. Imaginemos dois cenários: num, os servidores públicos são valorizados, recebem muitíssimo bem, têm situação econômica garantida; noutro, os servidores públicos recebem pouquíssimo, não têm minimamente garantida sua estabilidade econômica. Em qual cenário será mais fácil contornar as exigências legais? A resposta me parece evidente: o detentor do capital tende a ganhar mais numa sociedade em que as instituições estatais estejam enfraquecidas. A redução da pobreza e o combate à corrupção, com o funcionalismo reduzido à mingua, tornam-se palavras vazias.

O fim do regime próprio significa isto: servidores públicos menos preparados e, a partir disso, menos cumprimento da lei, menos atuação impessoal, mais imoralidade. Por conseguinte, mais concentração de renda e mais riqueza para poucos, maior pobreza e marginalização para muitos.

Faço, em homenagem aos mentores da reforma, uma ressalva. Talvez eles não tenham antevisto esse cenário. É possível que seu objetivo não tenha sido amesquinhar, com a máxima intensidade possível, os servidores brasileiros em prol do enriquecimento de alguns corruptos. Como antecipei, a EC 20/98 permitiu às entidades federativas a extensão ao regime próprio do teto do regime geral, desde que instituíssem o regime de previdência complementar. A Emenda não exigiu que a previdência complementar instituída pelas entidades federativas fosse de natureza pública. Poderia ser entregue aos bancos privados. A EC 41/03, no §15 introduzido no art. 40, impôs que as referidas entidades de previdência complementar fossem fechadas e de caráter público, vale dizer, autárquico. A Reforma ora em tramitação, na nova redação dada ao §15 do art. 40, suprime o condicionamento. A previdência complementar instituída pelas entidades federativas, se aprovada a reforma tal como se encontra na proposta encaminhada pelo Governo Temer, poderá ser atribuída a entidades privadas.

Talvez esteja aí a resposta para as questões que me afligem. Por que o governo desconsidera toda teoria que exige a diferenciação entre o regime próprio e o regime geral de previdência? Por que desconsidera os efeitos funestos para o país decorrentes do amesquinhamento das garantias do regime estatutário? Talvez porque no fundo a única preocupação seja dar mais lucro aos bancos privados. Como antecipei: uma sucessão de catástrofes!



Por Ricardo Marcondes Martins (SP)

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