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Guerra, comoção intestina, calamidade pública. Sobre os créditos extraordinários do governo federal.

ANO 2016 NUM 274
Rodrigo Kanayama (PR)
Doutor em Direito do Estado. Professor Adjunto de Direito Financeiro da UFPR, Advogado em Curitiba.


11/10/2016 | 10568 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

Desde o último artigo neste espaço, refletimos sobre o excesso de poder de remanejamento do orçamento pelo chefe do Poder Executivo. De fato, há preponderância do Presidente da República na condução dos negócios fiscais. E não há dúvida de que os chefes do Poder Executivo Brasil a fora são proeminentes na definição das despesas e receitas públicas.

A Constituição de 1988 concedeu, originalmente, competências legislativas fortes ao Presidente da República, cuja maior ferramenta é a medida provisória. Ainda que tenha ela sido limitada pela Emenda 32, mantém-se como poderoso ato normativo, com força de lei, e também faz acelerar o processo legislativo no seio do parlamento.

Em matéria orçamentária, a iniciativa legislativa pertence ao Presidente da República, e o processo legiferante é o ordinário (com algumas peculiaridades). A ignição deste processo não pode ser dar por iniciativa popular, nem por delegação legislativa, e, em regra, inviável a adoção de medidas provisórias.

No último caso, autoriza-se, somente, a abertura de créditos extraordinários por medida provisória. O permissivo constitucional, contudo, é condicionado a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna e calamidade pública. A exigência não é de 1988, mas existia antes da criação das medidas provisórias, pela Lei 4.320/64. A clareza redacional é patente. Guerra, comoção interna e calamidade pública. Erro de planejamento e maquiagem orçamentária não são, s.m.j., guerra, comoção interna e calamidade pública. Mesmo sob antiga letra da Lei 4.320/64 – guerra, comoção intestina, calamidade pública – não é possível forcejar qualquer sentido mirabolante.

Unindo as hipóteses numerus clausus de cabimento de créditos extraordinários, com a competência delimitada do Presidente da República para edição de medidas provisórias, pensemos: – "o que pode dar errado nisso?". Engana-se quem responder “nada!”.

Voltemos a dezembro de 2007. No dia 18 daquele mês, pouco antes do Natal, o então Presidente da República Lula abriu créditos extraordinários pela Medida Provisória 405, "em favor da Justiça Eleitoral e de diversos órgãos do Poder Executivo, no valor global de R$ 5.455.677.660,00". Indicou recursos necessários – prática incomum, pois a legislação não exige indicação de fonte de recursos em créditos extraordinários.

Diante do não cumprimento dos requisitos constitucionais, foi proposta, em março de 2008, pela oposição (o PSDB), a ADI 4048 (Relator Ministro Gilmar Mendes), que obteve medida cautelar. Na decisão, o STF julgou que há "possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade" e que "além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevistas e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, §3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões 'guerra', 'comoção interna' e 'calamidade pública' constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, §3º c/c o art. 62, §1º, inciso I, alínea 'd' da Constituição. 'Guerra', 'comoção interna' e 'calamidade pública' são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de consequências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias". Nesse sentido, como a MP 405 serviu para "prover despesas correntes", desvirtuou-se o instrumento.

O Ministro Celso de Mello, no mesmo julgamento, afirmou que as medidas provisórias de créditos extraordinários, em 2007, somavam 10% do orçamento de 2007. Verdadeiro orçamento paralelo. De fato, a abertura de créditos extraordinários é manobra para, além de fazer acrescer dotações ao orçamento vigente, transportar dotações de um orçamento para outro, pois, se o ato que os abrirem for promulgado nos últimos 4 meses do exercício financeiro, poderão ser reabertos no subsequente, no limite dos seus saldos.

Depois do entendimento ter se firmado, em 2008, nas mãos do STF, esperava-se retidão do Poder Executivo. Engano nosso. A irresponsabilidade prosseguiu, em altos valores, e para situações comuns, sem a urgência ou imprevisibilidade requeridas.

Para verificação fática, levantamos os dados do mandato da Presidente Dilma Rousseff (2011-2016). Observamos a seguinte situação, aqui apresentada sinteticamente:

  1. Entre 2011 e 2016, foram editadas 45 medidas provisórias que abriram créditos extraordinários.
  2. O valor total foi de R$243.662.172.021,00.
  3. Em Reais, a maior quantidade observou-se em 2014: R$124.587.835.152,00 (mais da metade do valor no período analisado).
  4. O trimestre com maior quantidade, em Reais, foi o 1º de 2014: R$74.918.975.280,00.
  5. Somando-se as importâncias dos trimestres de cada ano, o 4º trimestre (de 2011 a 2016) teve o maior valor de créditos extraordinários: R$120.470.194.968,00.
  6. A maior parte (não em números absolutos, mas em pecúnia) das medidas provisórias não foi convertida em lei.

Diante dos dados, podemos – em exame preliminar, e que depende de aprofundamento – afirmar:

  1. A legislação não exige indicação de fonte de recursos, o que pode levar a um orçamento paralelo (possível majorar a despesa total), com poucas preocupações ulteriores.
  2. Créditos extraordinários cuja medida provisória tenha sido promulgada nos últimos 4 meses podem ser reabertos, nos limites dos seus saldos, no exercício financeiro subsequente (art. 167, §2º, Constituição). Tal autorização leva a aberturas de créditos extraordinários nos últimos 4 meses, visando o inchamento do orçamento do exercício financeiro subsequente. Observou-se acúmulo, em Reais, no último trimestre de cada ano, somando-se todos os últimos trimestres.
  3. Os créditos extraordinários podem ter sido utilizados em 2014 para impulsionar o orçamento escasso, sobretudo em razão do ano eleitoral.
  4. Não foram observados, em grande parte das medidas provisórias, os requisitos definidos na Constituição Federal e delimitados pelo STF (por exemplo, há "reaparelhamento da Polícia Rodoviária Federal, por meio da compra de motocicletas", na Medida Provisória 573/2012).

Não concluiremos, aqui, o estudo, que está em andamento no Núcleo de Direito e Política do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFPR (DIRPOL-UFPR). De todo modo, resta-nos reavaliar como as finanças públicas deverão ser tratadas nos anos vindouros. Certamente, devemos pugnar pela organização, equilíbrio e retidão das contas do governo.



Por Rodrigo Kanayama (PR)

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