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A Ana e a Federação por Água Abaixo: notas sobre o novo marco legal do saneamento.

ANO 2020 NUM 467
Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas (RJ)
Mestre em direito constitucional pela PUC-RJ, Doutor em direito público pela Universidade de Coimbra, Procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado


31/08/2020 21:50:35 | 6501 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

INTRODUÇÃO

O “novo marco legal do saneamento” (por que certas leis no Brasil passaram a ser chamadas de “marco” bem merecia uma explicação), ou Lei n. 14.026/20, sancionada no último dia 15 de julho, traz alterações importantes, mas não exatamente estruturantes (para justificar o adjetivo de “novo”), na Lei do Saneamento Básico (Lei n. 11.445/07). A nova lei também traz diversas e possivelmente “desestruturantes” mudanças nas atribuições da Agência Nacional de Águas – ANA, alterando a respectiva Lei (Lei nº 9.984/00) e ainda promove alterações em outras leis importantes, em especial na já confusa Lei de Consórcios Públicos (Lei 11.107/05), no inconstitucional Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/15) e na Lei de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10).

Pois bem, a importância do tema é inegável. A quantidade de gente que ainda morre por péssimas condições de saneamento é enorme. Ainda assim, nem tudo que é conveniente do ponto de vista da gestão (normas uniformes de boa qualidade técnica) ou do ponto de vista econômico (capacidade de investimento) pode, numa federação, ser imposto pelo ente central. Este – já adiantamos – nos parece o grande defeito do novo marco legal do saneamento básico.

Vamos tratar aqui de dois pontos que a mídia (por exemplo, O Globo, caderno de economia de 25.06.20 p. 21, matéria de Glauce Cavalcante) tem incluído entre os “pilares principais para mudar o setor”: o “novo” processo de regulação (ou de criação de “diretrizes técnicas” para o setor) e a obrigatoriedade de licitação, que a oposição denomina de “privatização da água”. Além destes pontos trataremos rapidamente de algumas outras mudanças.

Neste trabalho chamaremos o “novo marco legal do saneamento básico” de “NMLSB”. A Lei do Saneamento Básico será denominada de “LSB” e a Lei da Agência Nacional de Águas será denominada de Lei da ANA.

Lembramos que, tanto pela limitação de tempo e espaço, como pelo volume de alterações trazidas pelo NMLSB, muitas mudanças importantes não serão comentadas (incluindo as significativas alterações na definição dos serviços de saneamento). Certamente o debate sobre o tema está só começando.

Para tratar dos temas propostos precisamos antes enfrentar um que é essencial para entender os demais, e que o NMLSB tentou ignorar, quais são as competências constitucionais em matéria de saneamento.

COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS EM MATÉRIA DE SANEAMENTO BÁSICO

Compreender a repartição constitucional de competências em matéria de saneamento básico é especialmente difícil porque ela decorre de dispositivos isolados da Constituição que, para piorar, não seguem a divisão – presente em outros assuntos – entre competência legislativa e competência executiva e raramente se referem explicitamente a “saneamento básico”.

Assim, o art. 21 – que trata de competências essencialmente materiais – estabelece em seu inciso XX que compete à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos.

A instituição de diretrizes deve ser feita por lei mas a diretriz é um tipo de norma com um grau de concretização que se situa entre a abertura dos princípios e a maior concretude das regras. Assim, poder baixar diretrizes é uma competência legislativa, mas uma competência bastante limitada que, a nosso ver, obriga a União a ser ainda mais contida do que deveria ser – mas não é – quando legisla segundo as regras do condomínio legislativo do art. 24 da Constituição Federal.

Outra fonte de competência legislativa sobre o saneamento básico é o artigo 22, XXVII, que trata da competência privativa da união para legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III.” Trata-se de competência amplamente reconhecida como sujeita às regras dos §§ do art. 24, da CRFB, da qual decorre a competência da União para legislar sobre os contratos de saneamento básico ou, ao menos, sobre os contratos entre os titulares do serviço e seus prestadores.

Mas há outra fonte constitucional para o exercício de competência legislativa sobre o setor de saneamento básico. É que nos parece que todo ente (União, Estados ou Municípios) titular de um determinado serviço público – e não há dúvida que saneamento é serviço público – tem competência legislativa para dispor sobre tal serviço, ainda que tal competência tenha que conviver com outras competências legislativas explícitas. E assim entendemos por duas razões: pela capacidade de auto-organização (artigos 18, 25 e 29 da CF), que inclui o poder para organizar os serviços dos quais é titular e pelo próprio princípio da legalidade administrativa (37 caput).

Neste ponto já verificamos que existe algum espaço para a atuação legislativa da União em matéria de saneamento básico, mas este espaço deve conviver com a atuação legislativa dos titulares do serviço. Traçar as linhas que separam estas competências é questão complexa pois envolve operações distintas: saber exatamente sobre o que se está legislando e em que intensidade. Quanto à 1ª questão não basta responder: “sobre saneamento básico”; é necessário ir mais além e especificar, se a lei pretende dispor sobre a qualidade da água, se dispõe sobre o contrato de concessão, se fala da licitação, ou se aborda um aspecto técnico do serviço. Quanto à 2ª questão é preciso saber se a norma é principiológica, é uma diretriz, é norma geral, suplementar ou específica. De toda forma, analisando de forma panorâmica, é difícil sustentar que a LSB – antes e sobretudo depois do NMLSB – tenha se limitado a adotar o que possa ser razoavelmente considerado como “diretrizes”.

De todo modo, para o que nos interessa, algumas questões devem ser reconhecidas como decisões exclusivas do titular do serviço. E dentre estas incluímos aquelas que, ainda que veiculadas (ou não) pela via legislativa, na verdade são decisões jurídico-políticas sobre a melhor forma de organizar um serviço, incluindo: (i) como ele será prestado, ou seja, diretamente, por intermédio de ente público (controlado ou não pelo titular) ou por meio de empresa privada; (ii) quem será o responsável por sua fiscalização; (iii) qual o critério para eventual licitação (melhor outorga, menor tarifa, maior investimento, uma combinação destes fatores); (iv) qual a estrutura tarifária.

É também importante lembrar que todo serviço público tem que ter um – e somente um – titular (ainda que coletivo, como no caso das regiões metropolitanas), que organiza o serviço, ou seja, aprova as normas que guiarão sua prestação e fiscalização. É verdade que certa jurisprudência ignora esta realidade e condena “solidariamente” entes públicos a executarem serviços públicos atribuídos a outros entes. Trata-se de mais um dos males de nossa jurisprudência da competência a la carte com base na gramática dos direitos fundamentais (eu condeno quem eu quero e ponto final) cujo prejuízo à efetiva viabilidade dos serviços públicos ainda precisa ser melhor debatido.

Pois bem, quem é o titular dos serviços de saneamento, mais especificamente dos serviços de fornecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto? A resposta a esta pergunta (clássica em concursos públicos) teve que aguardar por 15 anos o STF julgar a adin (sei que a moda hoje é “adi”) 1.842-RJ que questionava a Lei que criava a Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Pois bem, tal Adin foi julgada e, a nosso ver, o que decidiu o STF foi o seguinte: quando o ciclo do saneamento básico se der no território de um mesmo município, o titular será o município. Quando isso não for possível, o titular será o colegiado representativo da região metropolitana ou microrregião na qual os municípios estiverem inseridos. Por “ciclo” do saneamento consideramos a captação, tratamento e distribuição da água e a coleta, transporte, tratamento e disposição do esgoto.

Em suma, em qualquer canto do território nacional o titular dos serviços de saneamento pode ser o município ou a região metropolitana (ou microrregião). Em nenhuma hipótese este titular será a União.

(Registre-se que ao menos o NMLSB reconhece “formalmente” a decisão do STF na nova redação que dá ao artigo 8º da LSB, o que não ocorria na versão da MP 844 e 868).

Pois bem, caro leitor, a esta altura é normal se perguntar: se a União não é a titular do saneamento, como ela pode se apresentar como a principal ou, talvez, exclusiva responsável por estabelecer normas sobre o tema? A pergunta é boa, será respondida a seguir, mas já adiantamos que a solução contou com significativa acrobacia jurídica.

A ANA:  NOVA (QUASE) AGÊNCIA REGULADORA DO SANEAMENTO E A GRANA

Para “regular” nacionalmente o saneamento básico o NMLSB alterou a Lei da ANA, renomeada como Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, introduzindo um artigo (4º-A), segundo o qual a ANA instituirá (um novo tipo normativo denominado) “normas de referência” para “a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras”, tudo, é claro, “observadas as diretrizes para a função de regulação estabelecidas na LSB alterada.

E sobre que temas versarão essas “normas de referência”? Três ou quatro aspectos mais importantes do saneamento básico, pensará aquele que ainda acredita que o legislador federal respeita a federação. Não, as tais normas versarão sobre tudo, até sobre a padronização de instrumentos contratuais.

Deixaremos o leitor com os enormes parênteses dedicados à matéria sobre as quais tais normas disporão, convidando-o a nos reencontrar mais a frente (padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico; regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico, ...; padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços ...  firmados entre o titular do serviço público e o delegatário, os quais contemplarão metas de qualidade, eficiência e ampliação da cobertura dos serviços, bem como especificação da matriz de riscos e dos mecanismos de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das atividades; metas de universalização dos serviços públicos de saneamento básico ...; critérios para a contabilidade regulatória; redução progressiva e controle da perda de água; metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados; governança das entidades reguladoras, ...reúso dos efluentes sanitários tratados, ...; parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços ...; normas e metas de substituição do sistema unitário pelo sistema separador absoluto de tratamento de efluentes; sistema de avaliação do cumprimento de metas de ampliação e universalização da cobertura dos serviços ...; conteúdo mínimo para a prestação universalizada e para a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos de saneamento básico).

Se serve de consolo, vale registrar que todas estas normas serão produzidas com o devido estudo de impacto regulatório.

Pois bem, mas qual a densidade normativa dessas “normas” de “referência”? Elas vinculam os titulares do serviço? A resposta inicial é simples: não. Não sendo a União a titular dos serviços de saneamento e não sendo tais normas meras diretrizes impostas por lei (como, ao menos em parte, é o caso da própria LSB) e sim normas detalhadas que tendem a esgotar toda a matéria, a União não pode atribuir a uma de suas agências reguladoras que imponha normas diretamente vinculantes aos entes públicos titulares.

Mas o NMLSB criou (na verdade aperfeiçoou) um mecanismo que ainda será objeto de estudos de alta teoria do direito. Trata-se da “força pecuniária vinculante”, ou, em português castiço, “eu pago, você me obedece”. Com efeito, a leitura do novo artigo 4º-B da Lei da ANA combinada com o artigo 50, III da LSB alterado pelo NMLSB (Art. 50. A alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União serão ... condicionados: ... III – à observância das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico expedidas pela ANA), deixa claro o seguinte: quem não seguir as normas de referência em questão não poderá receber recursos da União.

Note-se que a União já fez algo parecido – mas bem mais tímido – ao condicionar o repasse de recursos federais ao cumprimento por estados e municípios deste ou daquele compromisso (por exemplo no art. 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal). A prática já era discutível. Mas agora (na vigência do slogan “Mais Brasil menos Brasília”) a ousadia é grande. Como condição para acesso a financiamentos federais a União simplesmente pretende (na prática) transferir a regulação dos serviços de saneamento dos titulares definidos pela Constituição (interpretada pelo STF) para ela própria.

Em suma, as normas em questão serão obedecidas por quem quiser, em especial por quem quiser receber recursos da União, o que certamente constitui a grande maioria de estados e municípios.

Mas atenção, para receber tais recursos não basta (abrir mão de sua autonomia e) obedecer tais normas. Com efeito, o NMLSB (na nova redação do artigo 50 da LSB) estabeleceu tantas outras condições de difícil comprovação para o recebimento de recursos federais que (em tempos de apagão das canetas e de justificado medo dos servidores públicos, tema já tratado em outro artigo neste mesmo espaço), dificilmente algum estado ou município conseguirá comprovar que atende todos os requisitos (ocasião em que ouviremos dizer que dinheiro para saneamento existe, o que não existe são bons projetos, uma boa forma de colocar a culpa nos estados e municípios).

Importante registrar que a ANA, além das atribuições normativas recebe outras atribuições típicas de agências reguladoras, já que a ela caberá (§ 5º do art. 4º-A da nova redação da LSB) disponibilizar “em caráter voluntário e com sujeição à concordância entre as partes, ação mediadora ou arbitral nos conflitos que envolvam titulares, agências reguladoras ou prestadores de serviços públicos de saneamento básico”. Por quanto tempo essa atribuição restará facultativa não sabemos. 

Voltando à atividade “normativa”, o NMLSB afirma que no seu exercício a ANA “zelará pela uniformidade regulatória do setor de saneamento básico e pela segurança jurídica na prestação e na regulação dos serviços”. Ora, uniformidade regulatória, ou, no caso, uniformidade normativa é a antítese do federalismo.

Vale lembrar que se uma empresa europeia (ou, porque não, brasileira) pretende atuar nos E.U.A. ela deverá se adaptar ao direito de cada um dos Estados federados. Aliás, nos E.U.A. há uma saudável prática de estabelecimento de minutas de normas padrão sobre vários temas (sobre os quais uma maior uniformidade é útil) que são sugeridas aos Estados (que em boa medida as adotam, ainda que com adaptações). Este modelo poderia ter sido seguido pelo NMLSB. Seria mais simpático, constitucional e possivelmente tão ou mais efetivo. Mas não, aqui, as atribuições legislativas de Estados e Município já são imensamente menores e, ainda assim, querem reduzir ainda mais este já diminuto espaço. É difícil pensar em golpe mais direto à autonomia dos municípios e estados.

Mas o problema não é “só” esse. Essa extravagância do NMLSB é feita à custa do funcionamento da ANA, agência que já tinha a difícil e importante missão de cuidar dos recursos hídricos nacionais. Neste ponto, há de se perguntar qual a expertise da ANA para cuidar de saneamento. A resposta é: muito pouca. A ANA nunca regulou serviços públicos. Sua expertise – a água enquanto recurso hídrico captado nos cursos hídricos – é o objeto e meio dos serviços de fornecimento de água, e também compõe o esgoto que ao final será jogado em outro corpo hídrico. Mas tudo isso tem (parafraseando Marcio Moreira Alves) uma relação distante e cerimoniosa com a extrema complexidade dos serviços de saneamento. Ora, o que fez o NMLSB é o equivalente a alterar a lei do DNIT, que tem expertise em estradas, e dizer que por causa dessa expertise doravante ele irá regular o transporte urbanos de passageiros por ônibus (que passam por estradas). Não se sabe se a ANA conseguirá resolver os problemas de saneamento, mas é certo que sua capacidade para cuidar do sistema nacional de recursos hídricos vai diminuir.

A OBRIGATORIEDADE DE LICITAÇÃO

Saudada como a solução para todos os males, o novo NMLSB de fato faz uma opção clara pela atuação privada no setor de saneamento.

Esta opção está revelada na nova redação que o NMLSB deu ao artigo 8º da LSB que começa por enunciar que a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico é exercida pelos “Municípios e o Distrito Federal, no caso de interesse local” ou pelo “Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum”.

O § 1º do dispositivo afirma-se que o exercício da titularidade dos serviços de saneamento também poderá ser realizado por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação (o que já tinha sido admitido pelo STF no julgamento da Adin 1842), ficando “admitida a formalização de consórcios intermunicipais de saneamento básico, exclusivamente composto de Municípios, que poderão prestar o serviço aos seus consorciados diretamente, pela instituição de autarquia intermunicipal”. Ou seja, o NMLSB admite que consórcios de municípios prestem diretamente os serviços por meio de autarquia intermunicipal. A forma autárquica, aliás, é muito utilizada em pequenos municípios (em geral com a denominação de serviços municipais de águas e esgotos). Logo em seguida o dispositivo afirma que aos consórcios intermunicipais de saneamento básico é “vedada a formalização de contrato de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública, ou a subdelegação do serviço prestado pela autarquia intermunicipal sem prévio procedimento licitatório”.

Em seguida, a nova redação do artigo 10 da LSB, estabelece que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária.

Aqui, ao menos, o NMLSB admite que um ente titular do serviço pode criar uma empresa e outorgar a ela a concessão do saneamento básico. O que ele não pode fazer é contratar a empresa criada por outro ente, por exemplo pelo estado, situação que ocorre em todo o Brasil.

Como compromisso político para atenuar estas proibições, o artigo 16 do NMLSB permitia que os contratos vigentes e as situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, assim consideradas aquelas em que tal prestação ocorra sem a assinatura, a qualquer tempo, de contrato de programa, ou cuja vigência esteja expirada, pudessem ser reconhecidas e formalizadas ou renovados mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022. Estabelecia ainda que tais contratos reconhecidos e os renovados teriam prazo máximo de vigência de 30 (trinta) anos. Tal dispositivo, no entanto, foi vetado. 

Pois bem, as restrições criadas pelo NMLSB à possibilidade de os titulares contratarem diretamente empresas estatais são válidas?

A resposta, a nosso ver, é negativa. Em primeiro lugar o texto não proíbe esta prática quando a estatal é criada pelo próprio ente. Tampouco proíbe, ao menos expressamente, no caso de regiões metropolitanas, quando a empresa for controlada pelo estado criador da região (que, ao menos indiretamente, compõe a pessoa do titular que é, a rigor, o colegiado deliberativo da região metropolitana que é integrado pelo estado).

(Aliás o § 2º do novo artigo 10-A da LSB faz uma “pequena concessão” às empresas estaduais de saneamento detentoras de outorga de recursos hídricos permitindo – quanta gentileza – que elas continuem a prestar o serviço público de produção de água com a assinatura de contrato de longo prazo entre esta empresa produtora de água e a empresa operadora da distribuição de água para o usuário final).

A proibição explícita então se dirige aos municípios (não integrantes de regiões metropolitanas), que não poderão – segundo o NMLSB – contratar diretamente empresas estatais.

Pois bem, tal proibição nos parece inconstitucional por violar a autonomia constitucional que o município tem para escolher a forma de prestação de um serviço do qual ele é titular. Se é incontestável que o município pode criar uma autarquia ou mesmo uma empresa para prestar tais serviços – liberdade que nem mesmo o NMLSB ousou violar – também nos parece inviável, sob qualquer desenho de federalismo cooperativo, impedir que ele possa optar por contratar diretamente empresa estatal criada por outro ente.

A opção por maior ou menor participação privada em serviços de saneamento envolve sérias discussões econômicas e ideológicas que não cabe desenvolver neste trabalho. Não concordamos nem com a necessária ineficiência dos entes públicos (que em grande medida são ineficientes por terem que obedecer normas que privilegiam a forma e por estarem expostos a controles que nem sempre guardam uma relação próxima com a exequibilidade, sem excluir os casos de loteamento político) nem com a necessária eficiência dos entes privados (cuja atuação pode ser excelente ou desastrosa a depender da forma em que se der a concessão e da efetiva capacidade do titular em fiscalizar seus termos).

A União, com um governo que ganhou as eleições com um programa claramente privatista, teria toda legitimidade para, respeitada a Constituição, promover alterações legislativas para aumentar a participação privada nos serviços públicos de titularidade da União que, aliás, são muitos. Mas a União não pode impor este modelo em relação a serviços públicos dos quais ela nem remotamente é a titular.

Em relação às regiões metropolitanas o fato do texto do NMLSB não ser expresso permite uma interpretação conforme a Constituição mas, para quem não admitir tal caminho, a proibição seria inconstitucional pelas mesmas razões.

Em suma, entendemos que tanto os municípios como as regiões metropolitanas podem continuar a contratar diretamente empresas estatais, mesmo não sendo seus controladores, para prestar serviços de saneamento. Aliás, além dos argumentos já expostos, vale lembrar que permissão neste sentido (ainda que de aplicabilidade polêmica a serviços públicos) se encontra em dispositivo (art. 24, VIII) da própria Lei de Licitações (Lei 8.666/93), que não foi alterado pelo NMLSB.

Também vale registrar que, após a Constituição de 1988, o STF tem oscilado entre a timidez e a extrema timidez em fazer valer as novas (em parte revividas da Constituição de 1946) competências de estados e municípios face ao avanço centralista da União. Pois bem, estamos em tempos de “timidez diminuída”. Isso se evidencia não apenas em relação à denominada jurisprudência da covid (que afirmou a competência de Estados e Municípios para conduzir o enfrentamento da pandemia, por ex, adin 6341), que poderia ser considerada circunstancial e específica, como em um julgamento deste ano que, por unanimidade, reconheceu as competências do estado especificamente em matéria de gestão de recursos hídricos (adin 3336-RJ). Em suma, há esperanças de que o STF passe a exercer com mais intensidade o papel de tribunal da federação.

Por fim, é bom lembrar que o conceito de saneamento (historicamente limitado a “água” e “esgoto”), atualmente inclui (desde a versão original da LSB) um serviço – de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos – que sempre foi tipicamente municipal. Pois bem, em grande medida (mas isso seria matéria para outro trabalho), as violações à autonomia do município também incluem tal serviço.

OUTRAS MUDANÇAS

Em aulas sobre contratos de saneamento de acordo com a “velha” LSB já sustentávamos que é difícil encontrar um contrato com tantas condições de validade e possibilidades de anulação como os contratos de saneamento básico. Com efeito, o artigo 11 da LSB trazia quatro – e agora são cinco – as (por vezes bastante complexas) condições de validade dos contratos de saneamento básico: existência de plano de saneamento básico;  de estudo que comprove a viabilidade técnica e econômico-financeira da prestação dos serviços, nos termos estabelecidos no respectivo plano de saneamento básico; de normas de regulação que prevejam os meios para o cumprimento das diretrizes da LSB, incluindo a designação da entidade de regulação e de fiscalização; realização prévia de audiência e de consulta públicas sobre o edital de licitação, no caso de concessão, e sobre a minuta do contrato e a existência de metas e cronograma de universalização dos serviços de saneamento básico. 

Pois bem, além de incluir a última condição, o NMLSB inovou ao incluir condição “retroativa”. Bem sei que o leitor, já cansado deste artigo, pensa que deve ter lido errado. Mas foi exatamente isso que o novo artigo 10-B da LSB fez ao estipular que: “os contratos em vigor, incluídos aditivos e renovações, autorizados nos termos desta Lei, bem como aqueles provenientes de licitação para prestação ou concessão dos serviços públicos de saneamento básico, estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, por recursos próprios ou por contratação de dívida, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços na área licitada até 31 de dezembro de 2033”. É verdade que o dispositivo remete aos “termos do § 2º do art. 11-B” da LSB, que tenta atenuar a retroatividade, mas é curioso que o NMLSB esteja sendo saudado por alguns como a norma que trará segurança jurídica para o setor! Nunca vi segurança jurídica ser trazida por norma que viola de forma tão flagrante a proteção constitucional do ato jurídico perfeito.  

O NMLSB também trouxe uma espantosa – e lamentável – mudança na redação do artigo 45 da LSB que trata da obrigação de conexão às redes de saneamento existentes. Vejamos. Se uma prestadora (de capital público ou privado), investe para fazer com que a rede de saneamento chegue a área até então não atendida, é óbvio que ela espera que todos aqueles que até então se abasteciam de outra forma (poços artesianos, em especial) passem a se conectar à rede. A sustentabilidade do sistema depende disso. Pela antiga redação do artigo 45 da LSB essa conexão já é claramente obrigatória. No entanto, infelizmente é comum que grandes condomínios usem água de poços artesianos mesmo após a chegada de rede pública, recusando-se a se conectar a tal rede e continuando a consumir água de graça. A prática já foi considerada ilegal pelo STJ (Ag em RESP nº 201.051) mas o artigo 45 continua sendo solenemente ignorado (por exemplo pela jurisprudência majoritária do TJRJ).

Pois bem, a redação que o NMLSB deu ao caput do artigo 45 parece trazer um reforço nesta obrigação ao estabelecer de forma impositiva que as “edificações permanentes urbanas serão conectadas às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis e sujeitas ao pagamento de taxas, tarifas e outros preços públicos decorrentes da disponibilização e da manutenção da infraestrutura e do uso desses serviços”. E não é só, os §§6º e 7º do mesmo artigo estabelecem que a entidade reguladora ou o titular dos serviços públicos de saneamento básico deverão estabelecer prazo não superior a um ano para que os usuários conectem suas edificações à rede de esgotos, onde disponível, sob pena de o prestador do serviço realizar a conexão mediante cobrança do usuário. Além disso a entidade reguladora ou o titular dos serviços públicos de saneamento básico deverá, “sob pena de responsabilidade”, até 31 de dezembro de 2025, verificar e aplicar o procedimento de conexão a todas as edificações implantadas na área coberta com serviço de esgotamento sanitário

Muito bem, mas o reforço trazido pelo caput é contornado por outros parágrafos do dispositivo, dentre os quais destacamos o surpreendente § 11 segundo o qual as edificações para uso não residencial ou os condomínios “poderão utilizar-se de fontes e métodos alternativos de abastecimento de água, incluindo águas subterrâneas, de reúso ou pluviais, desde que autorizados pelo órgão gestor competente e que promovam o pagamento pelo uso de recursos hídricos, quando devido”. Ou seja, na contramão da necessidade de dar sustentação financeira ao sistema, na contramão da segurança jurídica, na contramão da necessidade de preservação e gestão dos recursos hídricos, em especial dos aquíferos, o NMLSB faz uma opção que privilegia os proprietários de condomínios em localidades não atendidas pelas redes de saneamento (aí incluídos os proprietários de residências de veraneio). Trata-se, sem dúvida, de clara manifestação de avanço do retrocesso.  

Para não dizer que não há elogios, destacamos a vedação (trazida pela nova redução do § 5º do art. 11 da LSB) da “distribuição de lucros e dividendos, do contrato em execução, pelo prestador de serviços que estiver descumprindo as metas e cronogramas estabelecidos no contrato específico da prestação de serviço público de saneamento básico”. Essa efetivamente é uma norma que pode ter um efeito altamente positivo no cumprimento de tais metas. Por óbvio que sua efetividade real dependerá da criação de estrutura de acompanhamento e auditoria dos respectivos contratos.   

Outro ponto digno de elogios foi uma modificação no artigo da LSB que trata do licenciamento ambiental (art. 44), segundo o qual a autoridade ambiental competente estabelecerá metas progressivas para que a qualidade dos efluentes de unidades de tratamento de esgotos sanitários atenda aos padrões das classes dos corpos hídricos em que forem lançados, a partir dos níveis presentes de tratamento e considerando a capacidade de pagamento das populações e usuários envolvidos. Além disso, está previsto que a agência eguladora competente estabelecerá metas progressivas para a substituição do sistema unitário pelo sistema separador absoluto. Estes dois comandos reconhecem a inviabilidade de soluções instantâneas em matéria de saneamento e talvez colaborem para reduzir a judicialização do tema, que tantos prejuízos tem causado à segurança jurídica e à racionalidade na prestação dos serviços.

CONCLUSÃO

Adoraríamos ter feito só elogios ao NMLSB. Ainda tentamos acreditar que ele irá ajudar a reduzir a imensa dívida social brasileira em matéria de saneamento. Mas o fato é que boas intenções e a seriedade do problema a ser resolvido não justificam gambiarras (in)constitucionais. Considerar o problema da segurança pública sério (quem duvidaria) e necessitado de coordenação federal não justificaria subordinar os comandantes das polícias estaduais ao comandante militar de cada região (sob pena de não repasse de verbas federais) pois isso significaria o fim da federação. Na verdade, o equívoco em entender que a União sempre decide melhor ficou grosseira e claramente evidente com o desastre humanitário causado pela forma como a União, por seu chefe, vem gerindo a crise da pandemia do COVID-19. Não fosse o STF ter reconhecido o espaço de atuação de estados e municípios e a perda de vidas seria ainda maior. Inútil procurar, em qualquer outro lugar, um melhor lembrete da necessidade e utilidade em preservar a autonomia de estados e municípios.  



Por Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas (RJ)

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