Colunistas

O Impeachment é Golpe?

ANO 2016 NUM 159
Sílvio Luís Ferreira da Rocha (SP)
Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Doutor e Livre-Docente em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor na graduação e pós-graduação da PUC-SP. Juiz Federal em São Paulo.


30/04/2016 | 5193 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Acerca da crise institucional que assola o país a respeito do processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef dizia a amigos que faltava racionalidade ao debate. Ao recordar os estudos de filosofia encontrei em Marilena Chauí a confirmação daquilo que a intuição me mostrara. A razão é a capacidade intelectual para pensar e exprimir-se correta e claramente, uma maneira de organizar a realidade e torna-la compreensível a partir da ordenação, da reflexão e ponderação.

 Opõe-se à razão o conhecimento ilusório, advindo, por exemplo, da tradição e dos costumes; as emoções, as paixões, cujas expressões são desordenadas; a crença religiosa, que fundamenta a verdade das coisas na revelação; e o êxtase místico, que seria abandonar a razão para mergulhar numa experiência religiosa. Quem acompanhou as manifestações públicas em seus diversos espaços: Congresso, Judiciário, Sites, Redes Sociais pode facilmente constatar a predominância da argumentação irracional, como o senso comum (conhecimento ilusório: os políticos são corruptos); as emoções e paixões (que desbordaram para agressões morais); a crença religiosa (Deus, como disse a imprensa estrangeira foi o argumento mais utilizado para aprovar o impeachment da Presidenta na Câmara dos Deputados) e até o êxtase místico (precisamos acabar com a República da cobra).

Procuremos, então, ordenar as coisas segundo a razão e não segundo as paixões, crenças religiosas ou mesmo o êxtase místico. Proponho, assim, outra questão bastante controvertida: O impeachment da Presidenta Dilma Rousseff é golpe?

Em seu sentido etimológico, Golpe deriva de Kolaphos, de que se formou a palavra latina colaphus (bofetada, murro), e, assim, exprime ação violenta. Na linguagem política golpe de Estado designa o ato de força posto em prática para derribar o governo ou o poder instituído, compondo outro em seu lugar (Plácido e Silva, volume I, p.357).

Já o Impeachment é processo político-criminal para apurar responsabilidade do Presidente da República, entre outros.

A Presidenta da República e seus simpatizantes, diria assim, manifestaram-se publicamente pela afirmação de que o seu processo de impeachment é um golpe, cuja violência, no entanto foi escondida pelos aspectos de aparente legalidade. Daí a expressão golpe brando.

Outros, no entanto, discordam. Dizem que o impeachment não é golpe, pois é um processo previsto na Constituição, cujo procedimento está sendo observado, segundo as regras previamente prescritas e o que foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ações judiciais de controle. 

Os que assim pensam – isto é não identificam o procedimento em curso de impeachment como golpe - usam alguns dos princípios racionais, isto é, os princípios pelos quais a razão opera, entre eles, o princípio da identidade e o da não contradição.  Assim, uma coisa é Golpe outra coisa é o Impeachment (Princípio da Identidade) e um Golpe não pode ser um Impeachment e um Impeachment não pode ser um Golpe (Princípio da não-contradição). Esquecem-se, no entanto, de um terceiro princípio racional, importante para o deslinde da questão. Refiro-me ao princípio da razão suficiente ou o princípio de causalidade que “afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão (causa ou motivo) para existir ou para acontecer, e que tal razão (causa ou motivo) pode ser conhecido pela nossa razão. Este princípio indica que a razão afirma a existência de relações ou conexões internas entre as coisas, entre fatos, ou entre ações e acontecimentos e pode ser enunciado da seguinte maneira: “Dado A, necessariamente se dará B” (Marilena Chaui, Convite à Filosofia, pág. 61).

No âmbito jurídico o princípio da causalidade é substituído pelo princípio da imputação. Hans Kelsen percebeu que o princípio da causalidade seria mais adequado para as questões das ciências naturais e  que para o Direito, enquanto produto cultural, prevaleceria o princípio da atribuição ou da imputação. Tal princípio, no entanto, não invalida o princípio da causalidade, apenas o enriquece com a ideia de que para a ciência jurídica a causa, razão ou motivo na maioria das vezes é aquele explicitado previamente pelo legislador.

O princípio da causalidade/imputação é de extrema importância para a ciência jurídica. Ela o incorporou com denominações diversas, mas sempre com a mesma função, isto é, o de dar suporte ou fundamentação a constituição ou desconstituição de uma dada situação jurídica e seus efeitos. O princípio da causalidade está presente em institutos como “a causa de pedir próxima e remota” no processo civil e mesmo no processo penal; os motivos enquanto pressuposto do ato na teoria dos atos administrativos e a noção de justa causa no direito processual penal.

No Direito processual, a causa de pedir é a exposição dos fatos e dos fundamentos jurídicos do pedido. Os fundamentos jurídicos compõem a causa de pedir remota; autorizam mediatamente o pedido e configuram o direito ao qual parte reconhece estar investido. Os fundamentos de fato compõem a causa de pedir próxima e constituem a ameaça ou a violação do direito.

No Direito administrativo o motivo é o pressuposto de fato que autoriza ou exige a prática do ato. É, pois, a situação do mundo empírico que deve ser tomada em conta para a prática do ato. Corresponde, na realidade, à consideração do fato em face do Direito, que influi sobre a vontade do agente para fazê-lo decidir-se pela prática do ato ou sobre o modo de praticá-lo, isto é, ao seu fundamento (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Princípios Gerais do Direito Administrativo, 3ª edição, vol. I, p.533).

No Direito penal e processual penal a justa causa consubstancia-se no lastro probatório mínimo e firme, indicativo da autoria e da materialidade da infração penal. A justa causa existe para evitar a instauração de processos levianos, temerários, desprovidos de um lastro mínimo de elementos de informação, provas cautelares que sustentem à acusação.

No processo de responsabilidade do Presidente da República não é diferente, pois o Presidente responde por atos caracterizados como crimes definidos em lei especial (art. 85, parágrafo único da C.F). Logo, não se pode instaurar o procedimento sem a presença indiscutível de justa causa. Nesse aspecto é que recaem as principais dúvidas acerca da legitimidade do procedimento do impeachment, pois alguns especialistas já se pronunciaram sobre a manifesta atipicidade das condutas descritas na petição acolhida para deflagrar o processo de impeachment como crime contra as leis orçamentárias, em especial a de que não se pode confundir operação de crédito com o surgimento de um crédito em decorrência de um inadimplemento contratual ou que a abertura de crédito suplementar por decreto não constitui violação à lei orçamentária quando houver alteração do superávit primário pelo Congresso Nacional (Cito, a título de exemplo, artigo do professor Ricardo Lodi Ribeiro, “A  hiperintegração do equilíbrio orçamentário e o golpe parlamentar do impeachment” publicado em 28.03.16 na seção Colunistas no site da Revista de Direito do Estado).

Note-se que a análise do tema da justa causa não é uma antecipação do mérito, mas um juízo abstrato, objetivo, acerca da tipicidade ou atipicidade da conduta imputada ao denunciado, cujo exame é feito, frequentemente, pelo Poder Judiciário com a consequência de, por inúmeras vezes, trancar o andamento de inquéritos policiais e ações penais. Desta forma, salvo melhor juízo, o Supremo Tribunal Federal precisa se manifestar se há ou não justa causa para deflagrar o processo de impeachment. Essa análise não se confunde com o mérito do processo de impeachment e nem pode ser relegada para a fase final, depois do pronunciamento definitivo do Senado Federal. Urge que dela o conheça com seriedade e imparcialidade invulgar. Se não houver justa causa deverá trancar o procedimento na fase em que se encontra, de modo a evitar medidas constritivas irreparáveis, como o afastamento da Presidenta do cargo para a qual foi legitimamente eleita e a degradação do ambiente político. Se considerar que há justa causa, o processo deve seguir, segundo o rito previamente estabelecido.

O impeachment é golpe? Depende. Se há justa causa para o processo de impeachment a resposta é não. Se não há justa causa para o processo de impeachment a resposta é sim. Os atores institucionais envolvidos que se pronunciaram deveriam refletir melhor sobre o tema e rever as respectivas estratégias de aguardar o pronunciamento do Congresso para depois provocarem o respectivo exame. A Presidenta deveria provocar o debate agora pela Corte Constitucional, pois se trata de uma questão prévia, preliminar ao próprio mérito do processo de impeachment e a Corte Constitucional não deveria recusar-se a examinar e debater com seriedade os argumentos apresentados a respeito. Da decisão da Corte Constitucional sairá à resposta para questão proposta.



Por Sílvio Luís Ferreira da Rocha (SP)

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