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Caminhos para a regionalização do saneamento básico no Brasil

ANO 2021 NUM 479
Thiago Marrara (SP)
Professor de Direito Administrativo da USP-Ribeirão Preto. Doutor em Direito Público pela Ludwig Maximilians Universität - LMU de Munique, Alemanha. Editor da Revista Digital de Direito Administrativo (RDDA) da USP. Consultor.


18/04/2021 12:30:09 | 2308 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

A revisão da legislação de saneamento básico em 2020 apresenta três diretrizes centrais muito evidentes: a uniformização da regulação criada por dezenas de agências locais e estaduais; o incentivo à desestatização, ou seja, o estímulo à entrada de agentes privados em detrimento de empresas estaduais que atuam por instrumentos de cooperação firmados com os Municípios e, finalmente, a regionalização, que pode ocorrer no âmbito do planejamento, da regulação e da prestação dos serviços.

A preocupação da reforma de 2020 com a regionalização da prestação revela-se inicialmente no art. 3º da Lei de Diretrizes Nacionais de Saneamento Básico – LDNSB. Somaram-se a esse artigo inúmeras definições adicionais. É verdade que ele já previa a gestão associada dos titulares como associação voluntária entre entes federativos por consórcio ou convênio de cooperação e a regionalização como situação em que um único prestador atende a dois ou mais titulares. Isso mostra que a regionalização não é novidade! Porém, com a Lei 14.026, essa técnica foi significativamente expandida e detalhada.

O art. 3º, inciso VI, na versão atual, trata a regionalização como “modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes” dos serviços de saneamento em “determinada região cujo território abranja mais de um Município”. Nota-se aqui um ponto interessante: a regionalização não necessita envolver o serviço como um todo. O legislador permite que se execute parte do serviço de modo isolado, enquanto outros “componentes” operam de forma conjunta.

Além disso, o mesmo inciso VI define caminhos para a regionalização, buscando elucidar a principal dúvida dos gestores e governantes. Afinal, como fazer?

O primeiro caminho consiste na prestação conjunta no âmbito das chamadas unidades regionais, ou seja, regiões metropolitanas e aglomerações urbanas criadas de acordo com o art. 25, § 3º da Constituição e nos termos do Estatuto da Metrópole. Essas unidades envolvem necessariamente Municípios limítrofes e o Estado da federação em que se localizam. Os componentes do saneamento lançados à competência da unidade regional por sua lei complementar de criação caracterizam-se como “funções públicas de interesse comum” ou “serviços de saneamento básico de interesse comum” (art. 3º, XIV da LDNSB). A titularidade deixa de ser isolada e passa a ser compartilhada entre os Municípios e o Estado. Com isso, espera-se que os entes políticos envolvidos compartilhem infraestruturas e instalações vinculadas ao serviço, além de realizarem sua organização articulada. Em conjunto, eles também podem planejar e privatizar o serviço, valendo-se, por exemplo, de uma PPP interfederativa nos termos do Estatuto da Metrópole. 

O segundo caminho da regionalização se dá por meio de uma figura nova: a “unidade regional de saneamento”. Em contraste com as regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, de acordo com as modificações da Lei n. 14.026, essa nova unidade é instituída por Lei Ordinária do Estado (não por Lei Complementar), além de poder envolver Municípios que não façam fronteira. Essas unidades servem para viabilizar econômica e tecnicamente os serviços, principalmente em Municípios menos favorecidos. Contudo, é de duvidosa constitucionalidade a invenção, pela Lei 14.026, de uma unidade regional não prevista no art. 25, § 3º da Constituição e formada de modo dissonante ao que esse comando exige. A figura abre espaço para eventuais limitações estaduais à autonomia municipal de utilidade questionável e sem respaldo constitucional.

A unidade regional não se confunde, entretanto, com a figura da Região Integrada de Desenvolvimento (Ride), regida pelo art. 43 da Constituição. Essas regiões são criadas pela União para articular sua ação num mesmo complexo geoeconômico e social. Agora, a LDNSB permite que a Ride adote técnicas de prestação regionalizada desde que os Municípios participantes ofereçam sua anuência (art. 3º, § 5º da LDNSB).

O terceiro caminho para a regionalização, segundo o art. 3º, inciso VI, consiste no polêmico bloco de referência, novidade definida pela lei como “agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes estabelecido pela União… e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares”. O bloco não é impositivo, mas meramente reconhecido pela União em ato formal, contanto que os Municípios titulares desejem participar de gestão associada. Assim como ocorre na unidade regional de saneamento, aqui não é obrigatória a continuidade territorial dos envolvidos, ou seja, Municípios que não façam fronteira entre si podem operar no mesmo bloco.

Em essência, essa figura nova e polêmica não parece representar novidade organizacional, mas sim – como é comum no direito administrativo atual – um rótulo indicativo de situação jurídica! A LDNSB passou a indicar o bloco para que a União – e não apenas os Estados – possa estimular a regionalização, a atuação conjunta, no intuito de conduzir os Municípios ao compartilhamento de infraestruturas, à geração de economias de escala e à criação de um ambiente mais atrativo a investimentos e projetos de desestatização.

E como isso funciona se a adesão dos titulares é voluntária? É simples. Tal como faz para estimular que agências estaduais e locais absorvam as normas de referência da ANA, aqui também a União vale-se de seus vultosos recursos de financiamento e fomento como isca. O art. 48, XVII da LDNSB estabelece como diretriz para as ações federais a priorização de planos, programas e projetos que visem a implantação e ampliação de serviços integrados. Já o art. 49, inciso XIV, estabelece como objetivos da política federal de saneamento a promoção da regionalização por meio do apoio à formação dos blocos e à sustentabilidade econômico-financeira. O art. 50, nessa linha, afirma que a alocação dos recursos federais ou geridos por órgãos federais ocorrerá em linha com as diretrizes e objetivos mencionados. Além disso, a alocação ficará condicionada à “estruturação de prestação regionalizada” e à “adesão dos titulares… à estrutura de governança… nos casos de unidade regional de saneamento, blocos de referência e gestão associada”. O §1º do mesmo artigo impõe a priorização de investimentos de capital para viabilizar serviços regionalizados por blocos regionais quando a sustentabilidade financeira não for possível com recursos de tarifa ou taxa de serviço.

Além das figuras das unidades regionais e dos blocos de referência, a LDNSB destaca formas de cooperação preexistentes. O art. 3º, §1º deixa claro que os Municípios poderão exercer a titularidade do serviço por gestão associada, valendo-se de convênio ou consórcio (art. 241 da Constituição). Veda, porém, que os consórcios, estruturados em autarquias interfederativas, venham a formalizar contratos de programa com empresas estatais prestadoras de serviços de saneamento ou a subdelegar suas tarefas sem licitação. A despeito dessa proibição, o que importa observar é que a gestão associada, por esse quarto caminho, independe de qualquer lei ou ato autorizativo do Estado ou da União. A cooperação é estabelecida pelos Municípios principalmente com base nos requisitos da Lei n. 11.107/2005.

Como se vê, pois, a Lei n. 14.026 de 2020 não inventou a regionalização, mas abriu e pavimentou caminhos para viabilizá-la. E isso por razões evidentes: a regionalização leva os Municípios a racionalizar o uso de recursos naturais e infraestruturas de saneamento; a articular-se melhor; e, principalmente, a aumentar a escala de atendimento, o que tende a facilitar a sustentabilidade econômico-financeira do serviço e a tornar certas localidades do país mais atrativas a investimentos.



Por Thiago Marrara (SP)

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