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Licitações na União Europeia (I): panorama das reformas e aplicabilidade do direito comunitário

ANO 2016 NUM 74
Thiago Marrara (SP)
Professor de Direito Administrativo da USP-Ribeirão Preto. Doutor em Direito Público pela Ludwig Maximilians Universität - LMU de Munique, Alemanha. Editor da Revista Digital de Direito Administrativo (RDDA) da USP. Consultor.


03/02/2016 | 9182 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Olhar para fora serve para perceber a si mesmo. Num momento em que o Brasil vive tantos desafios em matéria licitatória e o Congresso mobiliza esforços para modernizar e aprimorar o modelo de contratações públicas, o exame de experiências estrangeiras no campo das licitações ganha enorme importância. Por conseguinte, é nesse contexto que se torna oportuna a observação das inúmeras transformações ocorridas no direito comunitário europeu em 2014 e que se incorporarão aos ordenamentos dos países membros até 18 de abril de 2016.

No intuito de contribuir com a investigação e a compreensão dessas modificações pelos especialistas brasileiros, o presente texto inaugura uma sequência de breves considerações sobre as licitações na União Europeia e, para tanto, aponta as justificativas da reforma, o panorama geral das Diretivas atuais e o complexo sistema de aplicabilidade as normas comunitárias sobre contratações estatais.

Até 2014, o direito comunitário das licitações apoiava-se especialmente nas Diretivas 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho. A primeira tratava da contratação por entidades dos setores de água, energia, transportes e serviços postais; a segunda, de contratos de obras, bens e serviços, os chamados contratos instrumentais da Administração. Uma Diretiva geral para a contratação de concessões não existia até então.

Após quase uma década, considerou-se imprescindível rever e modernizar essa legislação, mormente para esclarecer noções e conceitos básicos; promover mais segurança jurídica; sedimentar a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia; incrementar a eficiência na gestão da despesa pública; facilitar a participação das pequenas e médias empresas (PME) em contratações estatais e viabilizar o emprego mais adequado dos contratos administrativos para fomentar objetivos sociais comuns. Com isso, em 2014, editaram-se três novos diplomas normativos.

A Diretiva 2014/23 inseriu a disciplina geral das concessões de obras e serviços no direito comunitário, definidas como contratos onerosos, escritos, mediante o qual uma autoridade ou entidade adjudicante (contratante) confia a execução de uma obra ou a prestação e gestão de um serviço a um ou mais agentes econômicos e cuja contrapartida consiste quer unicamente no direito de exploração da obra ou do serviço, quer nesse direito acompanhado de um pagamento (art. 5º, 1). Para essa definição, portanto, os conceitos de serviço público e de bem público são prescindíveis. O elemento peculiar da concessão europeia reside na remuneração do contratado, a qual obrigatoriamente se comporá de receitas derivadas da exploração de um serviço ou bem.

A seu turno, a Diretiva 2014/24 substituiu a Diretiva 2004/18. Com isso, assumiu a disciplina jurídica dos contratos públicos, i.e. contratos onerosos, escritos, celebrados por “organismos públicos” com um ou mais agentes econômicos e que tenham por objeto a execução de obras, a prestação de serviços ou o fornecimento de produtos, devendo-se compreender o “fornecimento” como as mais diferentes formas de aquisição, incluindo contratos de compra, de locação e de leasing. Nesses tipos contratuais, em distinção à concessão, os contratados são remunerados de modo integral pelo ente estatal.

Já a Diretiva 2014/25 revogou a Diretiva 2004/17, passando a disciplinar, em seu lugar, os contratos públicos celebrados pelas entidades que operam no setor de água, energia, transporte e serviços postais.

Dentre as três novas normativas, o protagonismo cabe inquestionavelmente à Diretiva 2014/24, pois nela se abordam os contratos mais corriqueiros da Administração Pública. No cenário europeu, seu papel equivale ao da Lei n. 8.666/1993 no Brasil e, por isso, a compreensão do modelo licitatório deve partir de suas normas.

Em termos estruturais, referido diploma se estende por V títulos, que abarcam um total de 94 artigos e aos quais se somam 15 anexos. Contudo, nem todos esses dispositivos influenciarão as licitações e os contratos administrativos realizados nos mais diversos países membros, como França, Alemanha, Espanha etc. Isso, porque a Diretiva contém regras complexas que restringem a aplicabilidade de suas normas quer por meio da seleção dos tipos de contrato e de definições legais, quer pelo estabelecimento de valores contratuais mínimos (limiares), quer por isenções explícitas.

Em primeiro lugar, a Diretiva 2014/24 se limita a contratos públicos de aquisição de obras, bens e serviços e suas respectivas licitações, incluindo os celebrados por entidades federais (ou centrais), regionais ou locais (ou subcentrais), organismos de direito público e associações formadas por uma ou mais deles. Para evidenciar essa limitação, é preciso compreender o objeto contratual e as entidades que os realizam. Quanto ao primeiro aspecto, o legislador europeu explicitou definições de contrato público, contrato de empreitada de obras públicas, obra, contratos de fornecimento e contratos de serviços (art. 2º). Tratou, ainda, dos contratos mistos (mercadorias + serviços) de modo bastante detalhado (art. 3º) e esclareceu que contratos de fornecimento de bens não se resumem à aquisição por compra, pois incluem também a locação e leasing (art. 2º). Ademais, a Diretiva esmiuçou o conceito de “organismos de direito público” como pessoas jurídicas destinadas a satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, e majoritariamente “financiadas pelo Estado, por autoridades regionais ou locais ou por outros organismos de direito público”, cuja gestão se sujeite a controle por parte dessas autoridades/organismos ou cujos órgãos de administração, direção ou fiscalização tenha a maioria de seus membros designados pelo Estado (art. 2º).

Em segundo lugar, além de restrições derivadas do conteúdo contratual e das definições legais, a aplicabilidade da Diretiva 2014/24 é condicionada ao valor do contrato. Isso ocorre, porque o direito comunitário se vincula às disposições do Tratado sobre Contratações Públicas da OMC (conhecido na sigla GPA em inglês), acordo multilateral assinado pela União Europeia.

Como a Diretiva 24/2014 visa a dar concretude ao Tratado, suas normas de padronização dos ordenamentos nacionais incidem sobre contratos mais expressivos em termos econômicos, os quais despertam interesse de agentes econômicos estrangeiros e exigem normas de proteção da isonomia e da concorrência. Exatamente por isso, a Diretiva estabeleceu montantes limiares a partir dos quais suas normas deverão ser aplicadas. Esses montantes variam, de modo que, para certos contratos, as normas europeias incidirão de modo mais abrangente. Numa escala decrescente, a Diretiva 24 atinge com maior intensidade os contratos de fornecimento e de serviços de autoridades federais (com valor a partir de 134 mil Euros), os contratos de fornecimento e de serviços de autoridades subnacionais (a partir de 207 mil Euros); os contratos de serviços sociais, certos serviços jurídicos, de hotelaria e restauração e outros (a partir de 750 mil Euros, valor sobre o qual entra em jogo o regime especial simplificado determinado pela Diretiva no art. 74 e seguintes c.c. Anexo XIV). Já os contratos de obras apenas se sujeitarão à Diretiva quando superarem o valor de 5.186.000 Euros, limiar que claramente mantém o mercado de engenharia ainda bastante fechado.

Em terceiro lugar, é preciso levar em conta que a Diretiva 2014/24 prevê inúmeras isenções, ou seja, tipos contratuais imunes às suas determinações. Com efeito, apenas para exemplificar, seu regime de contratação não abrangerá: a) serviços decorrentes de contratos laborais ou atividades executadas por força de lei (como serviços judiciários, legislativos, diplomáticos, serviços de interesse geral sem caráter econômico, concessões, serviços sociais obrigatórios, etc.); b) serviços de comunicação social de natureza audiovisual e radiofônico, dado que se revestem de importância cultural e social, desde que relacionados a compra, desenvolvimento ou produção de programas; c) serviços de arbitragem, conciliação e outras formas alternativas de solução de conflitos; d) serviços jurídicos quando incompatíveis com licitação; e) serviços de fomento financeiro; f) serviços emergenciais prestados por entidades sem fins lucrativos; g) contratos de cooperação entre entes públicos; h) contratos entre ente público e entidade controlada, mas desde que esta realize mais de 80% de suas atividades no cumprimento de funções estipuladas pela entidade contratante e controladora ou por outras entidades controladas pela contratante. No entanto, esta isenção não vale para beneficiar entidades controladas com participação acionária de agentes econômicos privados, pois se entende que a contratação sem licitação nesse caso ofenderia o equilíbrio concorrencial. Diferentemente, o fato de haver participações privadas na entidade contratante não afeta a isenção.

Sem querer esgotar toda a complexidade da Diretiva 2014/24, o que se pretende demonstrar com as considerações expostas até aqui é que o modelo licitatório europeu constitui um sistema tríplice, ou melhor, um sistema de três camadas de regimes jurídicos.

No nível mais elevado, estão os contratos regidos pelas Diretivas, sobretudo a Diretiva 2014/24, e superiores aos seus limiares de aplicação. Esse seletivo bloco contém contratos de alto valor e considerável significância para o mercado, daí porque se submete ao direito europeu de modo mais intenso, ou seja, subordina-se ao direito comunitário secundário e a seu regime de padronização. No nível intermediário, posicionam-se os contratos relevantes para o mercado europeu, mas excluídos das Diretivas quer em razão de seu objeto, quer por não atingirem os valores contratuais mínimos, por exemplo, estabelecidos na Diretiva 2014/24. Isso não significa que tais contratos se sujeitem unicamente ao direito nacional. O fato de apresentarem relevância à zona de integração exige que sejam celebrados e executados mediante observância, pelas autoridades contratantes nacionais, do direito comunitário primário e seus princípios estruturais (como a transparência, a não discriminação etc.). Enfim, no nível mais básico e mais abrangente, permanecem os contratos tidos como irrelevantes ao funcionamento do mercado europeu e, por isso, sujeitos unicamente ao direito nacional, como os contratos de baixíssimo valor celebrados por muitos entes locais. 



Por Thiago Marrara (SP)

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