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Licitações na União Europeia (V): habilitação e exclusão de licitantes e técnicas de comprovação dos requisitos para contratar em favor da concorrência transfronteiriça

ANO 2016 NUM 316
Thiago Marrara (SP)
Professor de Direito Administrativo da USP-Ribeirão Preto. Doutor em Direito Público pela Ludwig Maximilians Universität - LMU de Munique, Alemanha. Editor da Revista Digital de Direito Administrativo (RDDA) da USP. Consultor.


20/12/2016 | 3518 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

A fase de “habilitação” nas licitações para obras, serviços e bens na União Europeia ora se mostra muito mais rígida, ora mais flexível que a tratada pela legislação brasileira. De uma parte, os requisitos de controle da participação de agentes de mercado na licitação são muitos mais amplos e exigentes que os nossos. A Diretiva 2014/24 requer não apenas a comprovação da capacidade de contratar, mas extrema lisura e seriedade por parte dos licitantes, dentro e fora do ambiente de contratação. Daí a razão pela qual impõe a exclusão de licitantes vinculados ao terrorismo e permite que se os afaste por comportamento anticoncorrencial ao longo do certame. Para compensar essa rigidez, o direito europeu, de outro lado, apresenta inúmeras técnicas assaz interessantes de comprovação de capacidade do agente econômico desejoso de contratar com o Estado, desde documentos únicos até técnicas de “empréstimo” de requisitos de habilitação.

A mistura normativa entre rigidez e flexibilidade procedimental não é impensada, involuntária. Ao se examinar os requisitos de contratação na Diretiva 2014/24, a todo o momento se nota que o objetivo do legislador comunitário foi o de incrementar, continuamente, a tutela de interesses públicos primários e o grau de competição nas licitações dos países-membros que se submetem ao modelo europeu. A flexibilidade e a rigidez são empregadas, portanto, sob escopos precisos, o que se perceberá na apresentação panorâmica da “habilitação” e, em seguida, dos curiosos mecanismos de comprovação da situação dos licitantes.

Ao disciplinar a contratação de fornecimento de bens, prestação de serviços e realização de obras, a Diretiva 2014/24 estabeleceu um conjunto de critérios formais de participação que ultrapassa de modo significativo aquele presente na tímida fase de habilitação das licitações brasileiras. O que chamamos de fase de habilitação no Brasil envolve, no direito comunitário, a verificação de múltiplos “motivos de exclusão”, de “critérios de seleção” e, eventualmente, a observância de limites de participação estipulados pela autoridade contratante em casos especiais.

Para que se possa celebrar um contrato com a Administração, não basta, pois, que a proposta apresentada esteja em conformidade com os requisitos, as condições e os critérios legais e constantes do ato convocatório (“anúncio de concurso”, na terminologia portuguesa). É preciso que incontáveis requisitos de ordem subjetiva se cumpram, ou seja, que a proposta provenha de um proponente “que não se encontre excluído” (nos termos do art. 57), que cumpra os critérios de seleção (do art. 58) e que respeite eventualmente os critérios não discriminatórios (do art. 65). Assim como se vislumbra nas leis brasileiras mais recentes, nas licitações europeias abertas, tanto os critérios de exclusão quanto os de seleção poderão ser examinados antes ou após a fase de julgamento das propostas (art. 56, 2).

Para poder contratar um agente econômico que participe das diferentes modalidades licitatórias europeias, compete à Administração Pública dos Países-Membros inicialmente verificar se o licitante deve ser excluído do certame e se, por razões adicionais sujeitas a ponderação, o próprio órgão contratante deseja excluí-lo, de ofício ou a pedido de outro país-membro. Grosso modo, os chamados “motivos de exclusão” dividem-se em compulsórios (art. 57, 1) e facultativos (art. 57, 4). Configurados os primeiros, a decisão administrativa será vinculada, embora aceite exceção; se verificado algum dos segundos, a exclusão será discricionária.

Os motivos de exclusão obrigatória do licitante dividem-se em dois grandes grupos:

  • No primeiro, incluem-se os condenados em decisão final transitada em julgado, por exemplo, por participação em organização criminosa, corrupção, fraude, infrações terroristas ou relacionadas com atividades terroristas, lavagem de dinheiro e finan­ciamento do terrorismo, trabalho infantil ou outras formas de tráfico de seres humanos. O motivo de exclusão também incidirá caso a pessoa condenada for membro de órgãos administrativos, de direção ou de supervisão, do licitante ou tiver poderes de representação, decisão ou controle daqueles órgãos. O art. 57, 3, entretanto, alberga a possibilidade de a legislação nacional afastar a exclusão compulsória por “razões imperiosas de interesse público, como a saúde pública ou a proteção do ambiente”.
  • No segundo, enquadram-se os licitantes que não tenham cumprido suas obrigações em matéria de pagamento de impostos ou contribuições para a seguridade social conforme decisão judicial ou administrativa transitada em julgado com efeito vinculante. No entanto, a própria Diretiva relativiza a exigência de prévia condenação na situação em que o ente contratante puder demonstrar, “por qualquer meio adequado”, que o licitante descumpriu referidos deveres. Em contrapartida, para viabilizar a participação, a Diretiva reconhece que o motivo de exclusão ficará afastado caso o licitante tenha cumprido suas obrigações mediante pagamento direto ou celebração de acordo para viabilização da quitação de seus débitos. Assim como no caso anterior, aqui se permite aos Estados-membros derrogarem o motivo de exclusão compulsória por força de interesse público. Ademais, a exclusão poderá ser evitada com base no princípio da proporcionalidade, por exemplo, quando a dívida do licitante for diminuta.

De outra parte, a Diretiva cuida de hipóteses de exclusão facultativa. Isso inclui um rol bastante extenso de situações que, apenas para ilustrar, ocorrem quando: 1) o licitante descumprir as normas do art. 18, 2, referente a obrigações de ordem ambiental, social e laboral estabelecidas pelo direito da União Europeia, pela legislação nacional, por convenções coletivas e disposições internacionais em matéria ambiental, social e laboral; 2) os bens do licitante estiverem sob a administração judicial ou caso suas atividades estejam suspensas em razão de estado de insolvência; 3) a autoridade contratante demonstrar, por qualquer meio adequado, que o licitante cometeu falta profissional grave que coloque em dúvida sua idoneidade; 4) a autoridade tiver “indícios suficientemente plausíveis” para concluir que o licitante celebrou acordos com outros no intuito de distorcer a concorrência; 5) houver conflito de interesses que não possa ser eficazmente corrigido por outras medidas menos invasivas; 6) verificarem-se deficiências significativas ou persistentes na execução de um contrato público anterior, inclusive de concessão, que tenham levado à rescisão antecipada, à condenação por danos ou a outras sanções comparáveis; 7) o licitante apresentar declarações ou informações falsas para a verificação dos motivos de exclusão ou o cumprimento dos critérios de seleção; 8) o licitante tiver diligenciado no sentido de influenciar indevidamente o processo de tomada de decisão da autoridade contratante, de obter informações confidenciais suscetíveis de lhe conferir vantagens indevidas na licitação ou tiver prestado informações errôneas e capazes de influenciar materialmente as decisões de exclusão, seleção ou adjudicação.

Como se vislumbra, as causas de exclusão, obrigatórias ou facultativas, são amplíssimas e abrem espaço para que um licitante seja excluído do certame com ou sem base em uma condenação anterior transitada em julgado. Isso significa que, em certos casos, a Diretiva afasta a presunção de inocência anterior à condenação e permite formas de exclusão cautelar. No entanto, ela claramente resguarda o direito de ampla defesa dos interessados nesses casos (art. 57, 6). Para resguardar seus interesses, poderá o agente econômico fornecer provas de sua probidade e lisura, as quais, se consideradas suficientes, afastarão a exclusão. Ademais, o art. 57, 3 prevê que, quando a informação ou documentação apresentada, for ou parecer incompleta ou incorreta, ou quando faltarem documentos específicos, as autoridades adjudicantes poderão, salvo disposição em contrário da legislação nacional, solicitar aos licitantes que apresentem, acrescentem, clarifiquem ou completem a informação ou a documentação pertinentes num prazo adequado – respeitados, sempre, os princípios da igualdade de tratamento e da transparência. Fora isso, para proteção da lisura dos procedimentos, a Diretiva determina que os Estados membros especifiquem as condições de aplicação dos motivos de exclusão por normas nacionais e estabeleçam de modo claro que o prazo de exclusão de licitações não superará cinco anos da condenação (nos casos de exclusão obrigatória) e três anos a contar da data do fato pertinente (nos casos de exclusão facultativa).

Embora deflagrem semelhante efeito procedimental, ou seja, ocasionem o afastamento de um licitante, os critérios de seleção não se confundem com os motivos de exclusão acima abordados. Nos termos do art. 58, a Diretiva restringe os critérios de seleção a três grupos, os quais serão empregados pelas autoridades contratantes como condição de participação respeitando-se a regra da necessidade – ou seja, não poderão exigir mais que o necessário para verificar que o licitante poderá cumprir o contrato administrativo. Referidos grupos se relacionam com:

  • 1) a habilitação para o exercício de atividade profissional, quanto à qual a autoridade contratante poderá exigir comprovação de que o licitante está inscrito num dos registros profissionais ou comerciais de seu país ou outro autorizado no anexo VI da Diretiva;
  • 2) a capacidade econômica e financeira, em relação à qual as autoridades poderão exigir que os licitantes comprovem um determinado volume anual de negócios na área do contrato (e, como regra geral, no máximo, até 2x o valor do contrato) e forneçam suas informações contábeis, além de seguro contra riscos profissionais, e
  • 3) a capacidade técnica e profissional, de acordo com a qual cada licitante deverá atestar nível suficiente de experiência por referências adequadas em relação a contratos já executados.

Diferentemente dos motivos de exclusão, os critérios de seleção, como apontados, não se afastam muito daquilo que já se conhece no direito brasileiro. Destarte, para fins de comparação jurídica, mais interessante que analisar seus conteúdos é apontar os interessantes mecanismos que a Diretiva 2014/24 oferece aos licitantes para comprovar tanto os requisitos de seleção, quanto a não incidência dos motivos de exclusão. Nesse particular, por buscarem facilitar a comprovação da situação dos licitantes, sobretudo num contexto em que se almejar estimular a concorrência transfronteiriça nos mercados públicos, as seguintes técnicas e normas merecem destaque e reflexão:

  • DOCUMENTO EUROPEU ÚNICO DE CONTRATAÇÃO: O DEUCP, previsto no art. 59, configura “uma declaração sob compromisso de honra atualizada, como elemento de prova preliminar, em substituição dos certificados emitidos por autoridades públicas ou por terceiros”. Ele se destina a atestar que o licitante não se encontra nas situações de exclusão, que cumpre os critérios de seleção (ou melhor, habilitação) e outras condições relevantes de participação estabelecidas no art. 65 – que trata de redução de licitantes. Além disso, o DEUCP, elaborado de acordo com um formulário eletrônico padrão da Comissão Europeia, identifica as autoridades públicas ou os terceiros responsáveis pela emissão dos comprovantes e inclui informações de bases de dados (inclusive endereços de internet) nas quais a autoridade contratante poderá diretamente obter os documentos que deseja. O DEUCP pode ainda ser utilizado para várias licitações, desde que suas informações estejam atualizadas. Para garantir a lisura da licitação, as autoridades públicas têm o poder de solicitar, a qualquer momento do procedimento, que o licitante apresente o original dos documentos referidos no DEUCP. Já após o julgamento e antes da adjudicação, a autoridade deverá solicitar os documentos comprobatórios ao vencedor, exceto aqueles que podem ser diretamente obtidos por acesso a uma base de dados gratuita de qualquer Estado-membro. O particular, portanto, não está obrigado nem a juntar documentos acessíveis gratuitamente, nem aqueles que as autoridades já tenham em sua posse.
     
  • MECANISMOS ADICIONAIS DE COMPROVAÇÃO: Além do DEUCP, a Diretiva cuida de outros meios de prova que as autoridades contratantes poderão exigir ou aceitar para fins de comprovação dos critérios de não-exclusão e de seleção. Nesse intuito, o texto age como um flexibilizador procedimental, na medida em que permite à autoridade substituir suas exigências, em casos específicos, a título de ilustração, por declarações do próprio licitante ou outros documentos que considere adequados para comprovar o que deseja verificar. Ademais, exige a normativa que os Estados nacionais disponibilizem a outros toda a informação relativa aos motivos de exclusão e de seleção. Isso mostra que o direito comunitário se baseia em extrema flexibilidade e atribui aos órgãos públicos um papel relevante na produção, disponibilização e circulação de informação, além de impor às autoridades públicas uma forte ação de ofício no intuito de comprovar os requisitos de seleção e não-exclusão, reduzindo o ônus probatório dos licitantes.
     
  • E-CERTIS: Com o objetivo de facilitar a apresentação de propostas e favorecer a concorrência transfronteiriça, a Diretiva trata igualmente do e-Certis (art. 61) e imputa aos Estados-membros o dever de assegurar a atualização permanente de informações relativas a certificados e outros documentos comprobatórios nesse sistema geral criado pela Comissão Europeia. Para valorizar o sistema e impedir exigências desnecessárias pelas autoridades organizadoras da licitação, a Diretiva ainda impõe que elas recorram aos documentos e provas do e-Certis antes de solicitar algo aos licitantes. Vale lembrar, como dito, que a Diretiva veda tanto aqui como em normas outras que uma autoridade solicite aos licitantes os documentos que de que disponha em arquivos públicos ou que possa acessar em outras bases gratuitas.
     
  • RECURSO À CAPACIDADE ALHEIA: Outro interessante mecanismo previsto na Diretiva é o de “recurso às capacidades de outras entidades” (art. 63). Como a expressão já revela, permite-se que, no tocante a critérios relativos à situação econômico-financeira e à capacidade técnico-profissional, o licitante se valha de capacidades de outro agente econômico, a despeito da natureza jurídica do vínculo que com ele possua. Para se beneficiar do “empréstimo”, o licitante deverá demonstrar que dispõe dos recursos necessários à execução do contrato, por exemplo, mediante a apresentação de um compromisso do terceiro que o suporta. A seu turno, à autoridade contratante compete diligenciar no intuito de verificar se a entidade que empresta sua qualificação atende critérios de seleção relevantes e se não incide em causas de exclusão. Para tanto, poderá até mesmo exigir que o licitante substitua uma entidade que não cumpra tais requisitos e estabelecer, como condição do “empréstimo”, que a responsabilidade pela execução do contrato seja assumida solidariamente pelo licitante e a entidade que o apóia. Nada impede, também, que a autoridade estabeleça certas “tarefas críticas” em contratos de obras, serviços ou fornecimento de bens, cuja execução competirá exclusivamente ao licitante vencedor.
     
  • LISTAS OFICIAIS E CERTIFICAÇÕES: enfim, a Diretiva permite que os Estados-membros instituam ou mantenham listas oficiais de empreiteiros, fornecedores ou prestadores de serviços ou prevejam certificação por organismos estatais ou particulares que cumpram as normas europeias, devendo comunicar à Comissão e aos restantes Estados os responsáveis pela certificação ou listagem. De modo geral, as informações obtidas a partir da inscrição na lista oficial ou da certificação não poderão ser contestadas pelo órgão de contratação sem justificativa. Para se garantir a livre competição, porém, a certificação ou o registro em lista jamais poderão ser impostos como condição de um Estado-membro para que agentes econômicos estrangeiros participem de licitações, cabendo aos entes públicos reconhecerem os certificados, listas e outros meios de prova equivalentes que provenham de outros Estados.     

Em síntese, ao longo desse breve panorama acerca da etapa formal de contratação, ao mesmo tempo em que se pretendeu demonstrar que o direito comunitário europeu é extremamente rigoroso no tocante às condições subjetivas do licitante, objetivou-se acentuar a flexibilidade e as facilidades que se conferem aos órgãos públicos e aos licitantes para comprovarem suas condições de contratar com o Estado, promovendo-se assim uma mais efetiva concorrência transfronteiriça nos contratos públicos regidos pelo direito europeu em favor das liberdades fulcrais que sustentam o bloco de integração.



Por Thiago Marrara (SP)

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