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Covid-19: um grande teste de fogo para a aplicação da LINDB

ANO 2020 NUM 466
Thiago Priess Valiati (PR)
Doutorando em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Especialista em Direito Empresarial pela Fiep. Advogado em Curitiba/PR.


25/08/2020 11:54:31 | 3317 pessoas já leram esta coluna. | 7 usuário(s) ON-line nesta página

Em momentos de crise como a provocada pela pandemia do coronavírus (Covid-19), gestores públicos devem tomar decisões sensíveis em curto espaço de tempo. Como exemplo, cite-se a compra de máscaras e respiradores mecânicos, de cuja aquisição dependem as vidas das pessoas que desempenhem atividades essenciais ou, ainda, que estejam internadas em unidades de terapia intensiva. Foi exatamente em meio a este contexto que foi editada a Lei n.º 13.979/2020, que dispõe sobre medidas como a dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da crise do coronavírus.

Para além do referido diploma legal, é essencial dotar o gestor público de instrumentos que lhe assegurem uma proteção reforçada em tempos de crise, mediante a eliminação ou, quando menos, a mitigação do risco de externalidades negativas que possam resultar da ação de órgãos de controle externo, como os Tribunais de Contas dos Estados e da União.

A proposta do presente ensaio é voltar os olhos para a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a LINDB, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13.655/2018, voltada a conferir maior segurança jurídica e eficiência nas relações de direito público. Com o fim de dar mais segurança à atuação dos agentes públicos, um dos principais objetivos da Lei consistiu na confiança e na proteção reforçada conferida ao gestor honesto, a fim de permitir que a atuação administrativa não seja excessivamente alvo de responsabilização pessoal desmedida pelos órgãos de controle. Diante de todos os desafios ocasionados pela pandemia, até parece que a Lei n.º 13.655/2018 foi editada antevendo um momento de crise e de instabilidade como este.

Nesse sentido, o caput do artigo 22 da LINDB, por exemplo, prevê que “na avaliação de determinada decisão tomada pelo gestor público serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

 O dispositivo possui o objetivo de sensibilizar os órgãos de controle frente às dificuldades que o agente enfrenta na gestão pública. Trata-se, pois, da consolidação de um verdadeiro “dever de empatia” do controlador em relação às decisões sensíveis que são tomadas pelo gestor público.

E nada mais representativo de um contexto de obstáculos e dificuldades reais enfrentados na gestão pública que os desafios impostos pela crise sanitária. Em verdade, o momento atual consistirá em um verdadeiro laboratório para a aplicação do artigo 22 da LINDB, vez que inúmeras decisões trágicas dos gestores públicos estão recaindo e ainda recairão para o controle dos Tribunais de Contas; decisões que, como dito, precisam ser tomadas de forma imediata e urgente, sob o risco de perda de vidas.

Além disso, devido ao circunstancial aumento de demanda, os gestores públicos deparam-se com a elevação de preços: se antes uma máscara de proteção custava centavos, agora pode custar dezenas de reais. Por óbvio, ilícitos e irregularidades associados a comportamentos imbuídos de dolo ou erro grosseiro continuarão sendo responsabilizados (como os casos de superfaturamento, que têm ocorrido de forma frequente). Mas os obstáculos e as dificuldades reais do gestor honesto, além das exigências das políticas públicas decorrentes do cargo, impostas pela crise, deverão ser obrigatoriamente consideradas pela decisão controladora.

Com o fim de complementar o disposto no artigo 22, o artigo 28 da LINDB dispõe que “o agente público só será responsabilizado pessoalmente por suas decisões ou opiniões em caso de erro grosseiro ou dolo”.

O dispositivo em questão prevê que somente a conduta eivada de erro grosseiro ou dolo é que poderá ser responsabilizada, com a finalidade de evitar a chamada paralisia decisória na Administração Pública (o fenômeno também costuma ser denominado de “apagão das canetas”).

Um exemplo emblemático desta situação de medo na gestão pública consiste em uma coletiva concedida pelo ex-Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, logo no começo da crise. Quando indagado, na oportunidade, sobre quem seria o fornecedor de testes rápidos que o governo federal estava adquirindo, o ex-Ministro chamou atenção para o cenário de emergência e destacou que os técnicos do Ministério da Saúde receavam proferir decisões com medo de serem responsabilizados pessoalmente por superfaturamento etc. O ex-Ministro destacou, então, que poderiam ser cometidos erros, mas que a atuação estava sendo pautada na tentativa de acerto. Afinal, na inovação espera-se o erro, desde que ele não seja grosseiro, pois é assim que problemas são identificados e endereçados. Portanto, se antes da crise já era possível identificar uma paralisia na Administração, em tempos de pandemia esse “apagão das canetas” é, naturalmente, acentuado.

Foi esse contexto que estimulou a edição da MP 966/2020. Apesar da retórica que caracterizaram as críticas realizadas ao seu texto, contaminadas pelo momento político, a MP possui a virtude de atrelar as circunstâncias de dificuldades de atos de agentes públicos à pandemia do coronavírus e, assim, reforçar a proteção daquele gestor que age de boa-fé. Ademais, além da tentativa de conceituar o erro grosseiro em seu artigo 2º (um tanto aberta e frustrada, é verdade, já que meramente repete o conceito previsto no artigo 12, §1º do Decreto n.º 9.830/2019), a MP elenca em seu artigo 3º os fatores que devem ser considerados pela decisão para que o erro grosseiro possa ser caracterizado, como os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; é dizer, a MP aproxima o disposto no artigo 28 da LINDB ao seu artigo 22. Por fim, a MP 966 poderá – caso não perca a sua eficácia – servir como um estímulo para o TCU rever o seu posicionamento de que a responsabilidade do agente público pela reparação de eventuais danos ao erário não está abrangida pelo artigo 28 da LINDB (e.g., Acórdão 2.391/18, Acórdão nº 11.762/18 e Acórdão 14.130/19), tendo em vista que o texto do novo diploma abarca, expressamente, a responsabilidade civil em seu artigo 1º.

Assim, a despeito de repetir a LINDB em muitos aspectos (ou, talvez, dar mais densidade aos seus preceitos), a MP 966 possui o mérito de reforçar as disposições já existentes no sentido de proteger o gestor público que age de boa-fé, inclusive no âmbito de Estados e Municípios. Logo, não procedem as críticas no sentido de que o seu texto consistiria em uma tentativa escusa ou oportunista de eximir de responsabilidade os atos cometidos pelo Chefe do Poder Executivo Federal. Como bem pontuou o professor Carlos Ari Sundfeld, o objetivo é evitar não somente um “apagão das canetas”, mas um verdadeiro “apagão do oxigênio”. Os gestores que agem com dolo ou erro grosseiro – como as atitudes que contrariem orientações científicas no combate ao coronavírus, de que é exemplo a estipulação de protocolos médicos ou medidas de relaxamento do isolamento social que se baseiem unicamente em convicções ideológicas ou pessoais, sem a observância de critérios técnicos – continuarão sujeitos à responsabilização.

Aliás, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se pronunciar sobre o texto da MP 966/2020. No julgamento do dia 21 de maio de 2020, o Tribunal examinou a constitucionalidade das novas regras de responsabilidade por ela instituídas e, por meio de interpretação conforme, fixou critérios para a responsabilização dos agentes públicos. Em suma, o julgamento da Corte foi no sentido de incluir proibição expressa aos gestores públicos que tomem medidas sem qualquer base técnica e científica durante a pandemia. A decisão do STF, portanto, reforça a defesa do gestor responsável que age de boa-fé e afasta de proteção o agente que age sem qualquer critério técnico e científico. A decisão gera uma verdadeira via de mão-dupla, pois ao mesmo tempo em que impõe aos controladores um ônus argumentativo, aos gestores, por sua vez, abre a necessidade de um agir responsável e pautado em parâmetros técnicos, sem erro grosseiro. Portanto, a MP 966/2020 nada tem de inconstitucional. Seu mérito é justamente reforçar os preceitos já dispostos na LINDB.

Dessa forma, tanto os dispositivos da MP 966 (na hipótese de não perder a sua eficácia, cujo prazo expira em setembro) quanto o artigo 28 deverão receber uma atenção especial por parte dos órgãos de controle quando da revisão de medidas administrativas implementadas durante a crise do coronavírus. Em tempos de Covid-19, mais do que nunca, apenas as condutas dos gestores que possam ser efetivamente caracterizadas como dolo ou erro grosseiro é que serão possíveis de ser responsabilizadas. A régua do controle precisa de novos parâmetros para momentos excepcionais. Mas, evidentemente, a régua continuará existindo para gestores irresponsáveis e desonestos. E aí entra a importância da atuação dos órgãos de controle em construir uma jurisprudência segura para conferir parâmetros concretos à definição de erro grosseiro. Espera-se, aliás, que o julgamento do STF sobre a MP 966 influencie positivamente a jurisprudência dos demais órgãos de controle da Administração Pública.

Ainda, o caput do artigo 24 da LINDB prevê que “a revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas”.

Será essencial, portanto, a consideração das “orientações gerais” vigentes durante a crise sanitária, como as regras da Lei n.º 13.979/2020 e a jurisprudência em vigor durante o período, como a definição da caracterização de erro grosseiro para fins de responsabilização em tempos de pandemia. Trata-se de manifestação um tanto óbvia, mas que deve receber especial atenção por parte do controlador quando da revisão de atos dos gestores praticados durante o atual contexto.

Finalmente, o caput do artigo 30 da LINDB prevê que “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”.

Como dito, a jurisprudência dos órgãos de controle será essencial para a construção de um ambiente de segurança para os gestores públicos durante a pandemia. O artigo 30, nesse contexto, desponta como um importante instrumento para a consolidação de entendimentos, por meio de respostas a consultas realizadas pelos próprios agentes públicos. Os órgãos de controle, assim, precisam ser provocados e incitados a se posicionar durante a crise, a fim de conferir um ambiente seguro e previsível para a atuação dos gestores durante este período.   

Os Tribunais de Contas, portanto, possuem uma função relevante na maturação e consolidação dos dispositivos acrescentados à LINDB pela Lei n.º 13.655/2018. E eles já vinham sendo aplicados antes da pandemia –  com muita timidez, é verdade. No Acórdão n.º 1.643/18, por exemplo, o TCU utilizou o artigo 22 para absolver de multa os titulares dos Ministérios da Educação e do Planejamento em relação à suposta má-gestão dos recursos orçamentários do Fies e reconheceu os obstáculos reais dos gestores públicos (TCU - RA: 02443420140, Relator: BENJAMIN ZYMLER, Data de Julgamento: 18/07/2018, Plenário). Em outros casos, todavia, o TCU tem restringindo o alcance da LINDB, como a já indicada exclusão da responsabilidade civil dos parâmetros de responsabilidade previstos em seu artigo 28.

Em abril de 2020, o TCU aprovou uma resolução com novas regras sobre as deliberações editadas pela Corte (Resolução n.º 315/2020). A resolução incorpora algumas das diretrizes da LINDB com o objetivo de simplificar o controle, como a necessidade de a unidade técnica ouvir os comentários do gestor antes da proposição de determinações e recomendações, à luz do previsto no artigo 22 da Lei. Trata-se de mais um relevante passo para a consolidação da LINDB no dia-a-dia dos Tribunais de Contas.

Mas é preciso ir além. A LINDB consiste em uma importante ferramenta para respaldar a atuação do poder público contra os efeitos da pandemia. A crise, assim, pode servir como um importante laboratório para a aplicação da LINDB por parte dos órgãos de controle e possibilitar uma experiência de aprendizagem, forçando a reconsideração de padrões existentes que a LINDB procurou justamente desafiar. A MP 966/2020, apesar das críticas de que ela abriria margem para a impunidade – aliás, assim como exatamente ocorreu em relação à LINDB antes de sua sanção presidencial –, reforça esse cenário. Apesar da iminente perda de eficácia da MP 966, espera-se que o TCU reveja o seu posicionamento acerca da exclusão da responsabilidade civil do âmbito de abrangência do artigo 28 da LINDB, a fim de proporcionar mais segurança para os gestores de boa-fé.

A Lei n.º 13.655/2018 foi elaborada, sobretudo, com o objetivo de trazer um impacto cultural para as relações de direito público. Espera-se que, com o tempo e maturação da Lei n.º 13.655/2018 (e aí entra o papel essencial dos advogados na utilização da LINDB como fundamento de defesa dos gestores de boa-fé), os parâmetros interpretativos influenciem cada vez mais a sua aplicação pelos órgãos de controle.

É preciso, afinal, um grau maior de empatia dos controladores em relação às decisões tomadas pelos gestores públicos durante a pandemia. A crise instaurada pela Covid-19 é um grande teste de fogo para a aplicação da LINDB pelos órgãos de controle. Que a pandemia do coronavírus, então, diga que a LINDB veio pra ficar.

 

 



Por Thiago Priess Valiati (PR)

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