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O impacto da Nova Lei de Introdução (L.13.655/18) na aplicação da LIA: o desestímulo ao direito administrativo do medo

ANO 2018 NUM 416
Thiago Priess Valiati (PR)
Doutorando em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Especialista em Direito Empresarial pela Fiep. Advogado em Curitiba/PR.


02/10/2018 | 14270 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

No último mês de abril foi editada a Lei n.º 13.655/2018, diploma legal que incluiu novas disposições na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (diploma tradicionalmente restrito a normas de Direito Privado), com o objetivo de elevar os níveis de segurança jurídica e de eficiência na criação e aplicação do Direito Público. Com a sanção presidencial, a Lei acrescentou à LINDB dez novos dispositivos que tratam da aplicação e interpretação de normas públicas.  

Entre as inovações mais comentadas da Lei está o seu artigo 28, que prevê que: “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Com efeito, a redação do artigo valoriza o administrador público honesto e possibilita um espaço de atuação para que o gestor inove e contribua com soluções criativas e eficientes para a Administração Pública, combatendo-se a paralisia decisória.

Vale ressaltar também o polêmico artigo 20, que dispõe que: “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. O dispositivo procura conferir maior segurança jurídica na aplicação de normas de conteúdo aberto e indeterminado, como é o caso, por exemplo, do artigo 11, da Lei de Improbidade Administrativa, que prevê a possibilidade de configuração de ato ímprobo por afronta aos princípios da Administração Pública, conceito legal demasiadamente amplo.

Apesar de ter o objetivo de combater a ineficiência e o arbítrio nas relações de Direito Público, a Lei recebeu pesadas críticas dos controladores (sobretudo, do TCU) que a acusaram de favorecer o enfraquecimento do controle da Administração Pública. Além disso, alegou-se que o Projeto foi pouco debatido e aprovado às pressas no Congresso Nacional. Houve também, por parte da doutrina, quem dissesse que “a Lei não mudou nada” e que, na verdade, ela só traria mais insegurança jurídica.

Na realidade, o que a Lei traz é justamente a imposição de uma atividade mais responsável por parte dos órgãos de controle, contribuindo para o seu necessário aperfeiçoamento, por meio do estabelecimento de novas balizas interpretativas para os decisores no âmbito do Direito Público. Cabe destacar, ainda, que a Lei derivou de Projeto de Lei elaborado pelos professores de Direito Administrativo Floriano de Azevedo Marques Neto e Carlos Ari Sundfeld, após intensa pesquisa empírica desenvolvida por anos no âmbito da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).  Ademais, foi aprovada sem dissenso no Congresso Nacional, com expressivo apoio político. Dessa maneira, as críticas quanto à velocidade da elaboração e aprovação da Lei definitivamente não merecem subsistir.  

Como dito, um dos principais pressupostos da Nova Lei de Introdução consiste na confiança no gestor público de boa-fé para inovar na Administração. Assim, a Lei reflete a necessidade de se conferir maior segurança para a atuação dos gestores, que atualmente temem serem alvo de responsabilização pessoal por mero entendimento divergente do controlador, sobretudo diante da intensa proliferação legislativa no que toca à possibilidade de incidência de sanções aos servidores públicos. Hoje, no Brasil, gestores frequentemente percebem sua capacidade de inovar na Administração ser tolhida por orientações de controladores que simplesmente discordem de sua interpretação.

Tem-se, assim, a chamada paralisia decisória: gestores públicos não decidem e não tomam medidas mais ousadas porque possuem o medo (ou seria pavor?) de que o controlador enquadrará a conduta como ilegal, ou como ímproba, em face do amplíssimo artigo 11 da LIA. Trata-se do denominado “Direito Administrativo do Medo”, temática que foi exaustivamente abordada no XIX Congresso Paranaense de Direito Administrativo e que instigou a elaboração deste ensaio, sobretudo diante de algumas injustas críticas que a Lei n.º 13.655/2018 recebeu de alguns palestrantes.

A edição da Lei n.º 13.655/2018, ao assumir como um dos seus objetivos principais a valorização do agente público probo, apresenta grande e indiscutível relevância na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n.º 8.429/1992). Aliás, tendo em vista o impacto na aplicação e configuração dos atos de improbidade, parece muito forçado defender que a nova lei “não mudou nada”. Assim, é exatamente sobre esse contexto (impacto interpretativo da Nova Lei de Introdução na aplicação da Lei de Improbidade) que o presente ensaio passa a se atentar.

Em primeiro lugar, tem-se, com a edição do já mencionado artigo 28 da Nova Lei de Introdução, a releitura do artigo 10 da Lei n.º 8.429/1992, que admite em seu caput a modalidade culposa de ato de improbidade administrativa. Vale dizer, há uma patente incompatibilidade entre os referidos dispositivos, na medida em que o artigo 10 da Lei de Improbidade admitia a configuração de ato de improbidade por culpa simples, enquanto o artigo 28 afasta tal possibilidade ao exigir, no mínimo, dolo ou erro grosseiro na conduta do agente público.

Por um lado, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no mesmo sentido da doutrina majoritária, já vinha se posicionando no sentido de exigir a caracterização de dolo na conduta do agente ou, ao menos, da culpa grave para a configuração do ato de improbidade. Nesse sentido, a doutrina se pronuncia no sentido de que a improbidade não é sinônimo de ilegalidade; isto é, a ilegalidade só adquire o status de improbidade administrativa quando a conduta antijurídica é coadjuvada pela má-intenção do administrador.  

Porém, parcela da jurisprudência do STJ, de forma retrógrada, tem apresentado um afastamento desta orientação, admitindo a condenação por ato de improbidade decorrente de conduta culposa, na modalidade da culpa simples. Como exemplo concreto desse entendimento jurisprudencial, tem-se a decisão proferida no Agravo Interno em Recurso Especial nº 1.598.591 – RN, que expressamente reputa a conduta minimamente culposa como suficiente à configuração de ato de improbidade em relação ao artigo 10. Nos termos da referida decisão (inclusive, posterior à edição da Lei n.º 13.655/2018), o STJ expressou que: “no caso dos autos, restaram claramente demonstrados a [...] conduta no mínimo culposa da recorrente, o que, nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é suficiente para caracterizar o ato de improbidade administrativa de que trata o art. 10 da Lei nº 8.429/1992”.

Assim, o advento da Lei n.º 13.655/2018 possui o intento de afastar a controvérsia jurisprudencial, traçando novos parâmetros interpretativos (pela via legislativa) em relação ao artigo 10 da Lei de Improbidade, de forma a excluir a possibilidade de responsabilidade pessoal do agente público, pelo menos na modalidade por culpa simples. A despeito de ainda permitir a configuração de ato de improbidade por culpa grave, a Lei, em manifesta valorização ao agente público de boa-fé, confere ao administrador a segurança necessária ao desenvolvimento do seu agir e à inovação na gestão pública, combatendo-se a paralisia decisória e restringindo-se o âmbito da responsabilização administrativa.

A despeito disso, mesmo após a edição da Lei n.º 13.655/2018, a jurisprudência do STJ continua admitindo a possibilidade de cometimento de ato de improbidade por culpa simples. Espera-se que, com o tempo e maturação da Lei (e aí entra o papel essencial dos advogados na utilização da Nova LINDB como fundamento indispensável de defesa dos gestores públicos de boa-fé), os novos parâmetros interpretativos gerados pela Lei redirecionem a jurisprudência do STJ, de modo a expurgar do Direito brasileiro, definitivamente, a possibilidade de cometimento de ato de improbidade por culpa simples.

Ademais, repise-se que previamente à sanção da Presidência da República, a proposta normativa apresentava três parágrafos ao artigo 28 que, entre outras previsões, pretendiam conferir contornos jurídicos concretos aos ditames do caput e maior segurança jurídica à atuação dos gestores públicos. Com efeito, perdeu-se uma excelente oportunidade de proporcionar maior segurança jurídica com os dispositivos vetados, por meio da indicação precisa, por exemplo, do que não pode ser configurado como um “erro grosseiro”, haja vista que a Lei n.º 13.655/2018, a despeito de afastar a possibilidade de cometimento de ato ímprobo por culpa simples, continua a admitir a modalidade de ato de improbidade por culpa grave (erro grosseiro), que configura um conceito de relativa indeterminação.

Assim, sem a existência de parâmetros legais para delimitar o enquadramento do que se entende como erro grosseiro (ou, pelo menos, o que não seria erro grosseiro), manteve-se um grande espaço para que os controladores continuem determinando o próprio parâmetro de controle.

E foi exatamente o que aconteceu no âmbito do Acórdão 1628/2018 do Plenário do TCU, de Relatoria do Ministro Benjamin Zymler, no qual a Corte de Contas decidiu que: “a conduta culposa do responsável que foge ao referencial do ‘administrador médio’ utilizado pelo TCU para avaliar a razoabilidade dos atos submetidos a sua apreciação caracteriza o ‘erro grosseiro’ a que alude o art. 28”. E, afinal, o que seria o “administrador médio” referenciado pelo TCU? Ninguém sabe. Possivelmente sua configuração derive da apreciação subjetiva do julgador que, na maioria dos casos, nunca ocupou um cargo na Administração Pública.

Vale dizer, sem os parâmetros e contornos concretos operados pela via legislativa, o controlador acaba tendo amplo espaço de atuação para definir o que configura um “erro grosseiro”, limitando a capacidade de inovação do gestor público (afinal, se tudo pode ser enquadrado como “erro grosseiro”, o administrador simplesmente não age e não inova). 

Assim, com o veto, operou-se um verdadeiro paradoxo: de um lado a Lei tem a finalidade de evitar a aplicação irrestrita de conceitos jurídicos indeterminados mediante a redação do seu artigo 20; de outro lado, entretanto – com o veto em relação ao parágrafo primeiro do artigo 28 –, acabou por dar vida a um conceito amplo e que alarga o espaço de atuação dos controladores (“erro grosseiro”). Todavia, mesmo com estas ressalvas, o artigo 28 traz importante contribuição à valorização do gestor de boa-fé perante o sistema normativo nacional, pois afasta, como dito, a possibilidade da configuração de ato ímprobo por culpa simples.

Além das inovações trazidas pelo artigo 28, o já citado artigo 20 da Nova Lei de Introdução também suscita um relevante impacto na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Esse dispositivo impõe a necessidade de consideração das consequências práticas de decisões baseadas em princípios ou conceitos jurídicos indeterminados, de modo a ampliar o ônus argumentativo dos controladores na aplicação de sanções administrativas aos agentes públicos. Trata-se, portanto, de um dever de motivação reforçado, por parte do controlador, na hipótese de utilização de conceitos jurídicos indeterminados.

A referida disposição, conjugada com o disposto pelo artigo 28, impacta especialmente na interpretação do artigo 11 da Lei de Improbidade, que tipifica os atos de improbidade consubstanciados na violação dos princípios da Administração Pública. Tal dispositivo, por possuir redação demasiadamente aberta, deixa margem para que a imoralidade administrativa, enquanto um conceito jurídico indeterminado e extremamente amplo, tenha a sua aplicação delimitada a critério estrito dos controladores. Isso porque o tipo aberto do mencionado artigo dá azo à perigosa interpretação de que qualquer violação aos princípios da Administração Pública poderia configurar um ato de improbidade administrativa, o que não parece ser a conduta mais acertada.

É exatamente esse amplo espaço de atuação do controlador que a Nova Lei de Introdução visa a coibir. A nova racionalidade decisória vem barrar esse tipo de interpretação, porquanto passa a exigir do controlador que demonstre através de provas concretas e consequências práticas que o ato praticado pelo agente público estaria eivado da intenção de ferir a probidade administrativa. Amplia-se, assim, o ônus de fundamentação do controlador para acusações de atos de improbidade baseadas na alegação genérica de violação aos princípios da Administração Pública, tipificados no artigo 11 da Lei n.º 8.429/1992.

O artigo 22 da Lei n.º 13.655/2018 também possui um impacto relevante na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. O artigo prevê, em seu caput, que: “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

Por meio deste dispositivo exige-se, do mesmo modo que ocorre em relação ao artigo 20, um ônus argumentativo acentuando do controlador, que deve levar em consideração, antes da aplicação de qualquer sanção (sobretudo as decorrentes de atos ímprobos pautados nos tipos abertos do artigo 11, da Lei de Improbidade), os obstáculos, as dificuldades reais do gestor público, bem como as exigências de políticas públicas. Afinal, é muito mais fácil interpretar e tomar uma decisão dentro do gabinete, isolado, sem considerar as dificuldades reais e trágicas que o administrador precisa lidar no seu dia-a-dia nem as múltiplas demandas urgentes da população. Assim, o dispositivo em questão possui o objetivo de sensibilizar o controlador frente às dificuldades que o agente público enfrenta rotineiramente na gestão pública, sobretudo no âmbito das chamadas decisões trágicas, possibilitando o desenvolvimento e a capacidade de inovação na Administração.

Finalmente, tem-se o artigo 27, que dispõe que: “a decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos”. O referido dispositivo, na mesma toada, valoriza o agente público honesto e possui influência significativa no contexto de aplicação da Lei de Improbidade Administrativa.

O artigo mencionado possui um enfoque processual, voltado ao tratamento dos efeitos colaterais negativos do processo, na medida em que enuncia a possibilidade de compensação por prejuízos anormais ou injustos que dele resultem. Como se sabe, a mera proposição de uma ação de improbidade administrativa gera prejuízos anormais e injustos aos gestores públicos que, muitas vezes, acabam inocentados ao final do processo. A consequência do mero ajuizamento da ação e a necessidade de se defender por anos de acusações injustas é devastadora, tanto pelo aspecto político quanto pelo aspecto econômico. Dessa forma, para tais casos, o dispositivo em questão permite a discussão em torno de um possível dever de ressarcimento do agente público inocente pelo Estado, em face dos eventuais prejuízos anormais ou injustos que venha a sofrer em decorrência do ajuizamento de uma ação de improbidade administrativa.

Com efeito, o afã desmedido em alcançar a qualquer custo a punição do gestor público como uma forma de resposta à sociedade brasileira frente à insatisfação generalizada pelas frequentes notícias de corrupção, sobretudo após o advento da Operação Lava-Jato, deve ser reprovado pelos intérpretes do Direito. Ao mesmo tempo em que se procura penalizar a todo custo os agentes públicos desonestos, corre-se o perigoso risco de condenação dos gestores honestos, contribuindo, assim, para o enfraquecimento da já desmoralizada política brasileira. Ou seja, corrompe-se o sistema de garantias constitucionais e de segurança jurídica sob o argumento de combate à corrupção.

A Lei de Improbidade Administrativa, estruturada justamente para coibir os atos ilícitos e a corrupção, pode, ao contrário, servir de perigoso instrumento para a condenação de administradores públicos honestos e, assim, possibilitar a manutenção de agentes corruptos na sociedade brasileira. É o que se tem, por exemplo, com a possibilidade de ato de improbidade administrativa cometido por culpa simples, nos termos do artigo 10, da Lei n.º 8.429/1992. Ou a aplicação [desmedida e sem qualquer critério do artigo 11], por meio de tipos abertos extremamente amplos (cometimento de ato ímprobo por “ofensa aos princípios da Administração”).

A partir da perigosa utilização desmedida da Lei de Improbidade, instaura-se o medo na Administração. O cenário de “apagão das canetas” prejudica a capacidade de inovação na gestão pública e acaba por ocasionar, por exemplo, o travamento de investimentos nos setores de infraestrutura no país. Como já alertou o próprio Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, “a hipertrofia do controle gera a infantilização da gestão pública”.

Nesse contexto, a edição da Lei n.º 13.655/2018 consiste em relevante instrumento de valorização e confiança no gestor público honesto. A despeito das exageradas e injustas críticas, a Lei n.º 13.655/2018 possui múltiplos aspectos positivos e com capacidade para aprimorar a qualidade da decisão administrativa e conferir maior segurança jurídica no âmbito das relações que envolvem a Administração Pública, sobretudo no âmbito da aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, a fim de desestimular um cenário que fomenta o denominado “Direito Administrativo do Medo”. Que, na verdade, diante do atual estado da arte, parece cada vez mais próximo de um verdadeiro estado de terror na Administração Pública...



Por Thiago Priess Valiati (PR)

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