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Liberdade Religiosa e Administração Pública no Direito Brasileiro

ANO 2016 NUM 141
Vladimir da Rocha França (RN)
Advogado. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Associado II do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


12/04/2016 | 13007 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Todo brasileiro e todo estrangeiro residente no Brasil tem a permissão de ter ou de não ter uma religião, em face do Estado, consoante o art. 5º, caput, VI a VIII, da Constituição Federal. 

Caso o administrado opte por uma crença religiosa, ser-lhe-á assegurado: (i) o direito de promover o culto religioso ou dele participar; (ii) a garantia de não ser privado de direitos em razão de sua convicção religiosa; e, (iii) o direito à assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

Também não deve ser negada ao administrado o direito de expressar de modo desembaraçado os seus dogmas religiosos e correspondentes desdobramentos, à luz do art. 5º, IV e IX, e § 2º, da Constituição Federal.  Igualmente lhe é garantida a liberdade de reunião religiosa, nos termos do art. 5º, XVI, § 2º, da Lei Maior.

Não se pode olvidar o imperativo de consciência religiosa, que constitui exceção ao serviço militar obrigatório, previsto no art. 143, § 1º, da Constituição Federal.

Dentre as pessoas jurídicas de Direito Privado, reconhece-se as organizações religiosas, conforme o art. 44, IV, do Código Civil.  Segundo o art. 44, § 1º, desse diploma legal, há liberdade para a sua criação, organização, estruturação interna e funcionamento, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. 

Em rigor, essa disciplina legal tem amparo no art. 5º, VI, e o art. 19, I, ambos da Constituição Federal.  De todo modo, as normas constitucionais que dispõem sobre a liberdade de associação não deixam de incidir nas organizações religiosas, no que naturalmente lhes for compatível, tomando-se por base o disposto no art. 5º, XVII a XXI, e § 2º, do texto constitucional.

Embora o Preâmbulo do texto constitucional invoque a proteção de Deus, o seu art. 19, I, proíbe expressamente os entes federativos de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Mesmo assim, as organizações religiosas gozam de imunidade tributária em relação aos impostos, no que concerne ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com as finalidades essenciais dessas entidades.  É o que determina o art. 150, VI, “b”, e § 4º, da Constituição Federal.

As organizações religiosas podem prestar livremente serviços sociais como o ensino, a saúde e a assistência social.  Ao fazê-lo, poderão atuar sob o fomento estatal, pelo que se vê no disposto no art. 199, caput, §§ 1º e 2º, no art. 204, I, no art. 209, no art. 210, e no art. 213, todos da Constituição Federal. 

Caso atuem nesses campos da ordem social sem finalidade lucrativa, gozarão da imunidade tributária constante do art. 150, VI, “c”, e § 4º, da Lei Maior.

Ainda na ordem social, o art. 226, § 2º, da Constituição Federal, reconhece ao casamento religioso a eficácia de casamento civil, conforme parâmetros a serem estabelecidos em lei.

Vê-se que, em regra, a Administração Pública tem deveres de não fazer e de suportar em face das organizações religiosas, contrapartes lógicas dos direitos que essas instituições e seus crentes têm no sistema do Direito Positivo.

Merece destaque que a Administração Pública deve se abster de financiar o exercício da liberdade de reunião de cunho religioso, sob pena de se violar frontalmente o disposto no art. 19, I, da Constituição Federal.  Nesse aspecto, o Poder Público deve se limitar a garantir: (i) a ordem e a segurança públicas; e, especialmente, (ii) a liberdade de locomoção daqueles que dela não participarão.

A Administração Pública também tem o dever de manter bens de natureza religiosa quando eles integrarem o patrimônio cultural brasileiro, por determinação dos arts. 215 a 216-A da Lei Maior e das leis que os regulamentam.

Há uma controvérsia bem peculiar em torno da presença de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos. 

Costuma-se argumentar que a simples presença de símbolos religiosos no âmbito da Administração Pública geraria desconforto para aqueles que não compartilham a crença que eles eventualmente representam, assim como que esse fato violaria o comando veiculado pelo art. 19, I, da Constituição Federal.  Como, por exemplo, os crucifixos e imagens de personagens relevantes para o catolicismo.

O argumento da desagradabilidade é, com a devida vênia, integralmente irrelevante.  Uma sociedade plural pressupõe que se possa expressar pontos de vista e ideias que possam gerar o desconforto, a divergência e, por que não dizer, a indignação.  Toda religião, sem exceção, possui dogmas, admoestações e padrões morais que vão provocar a repulsa ou o desprezo de quem tem outra religião ou, até mesmo, de quem tem religião alguma.  Se palavras fundadas na fé são livres, o que dizer dos símbolos que atestam a sua profissão?

E, pelo que se saiba, crucifixos somente causam danos materiais a certas personagens do folclore de algumas regiões europeias, imortalizadas em obras da literatura e do cinema no campo do terror e do suspense...

Já quanto à norma veiculada pelo art. 19, I, da Lei Maior, a análise demanda maior cautela.

Parece razoável que se imponha aos servidores públicos e aos servidores das pessoas jurídicas de Direito Privado da Administração Indireta, o dever de não expressar verbalmente a sua fé religiosa quando no exercício de suas atribuições constitucionais e legais. 

Entretanto, as expressões consubstanciadas por meio do uso de vestuário ou acessório religioso devem ser analisadas caso a caso.

Afinal, uma coisa é um professor federal ministrar uma aula vestido com uma camisa que faça alusão clara e inequívoca à sua fé; outra, bem diferente, é ele manter em sua sala a imagem de uma personagem religiosa.  Deve-se impedir o primeiro caso e se tolerar o segundo, sob pena de se eliminar por completo a liberdade religiosa do referido servidor público.

Tais restrições, de modo algum, são cabíveis aos usuários dos serviços disponibilizados pela Administração Pública, ainda que se trate das chamadas relações de sujeição especial. 

Portanto, os alunos daquele professor federal poderão assistir suas aulas vestidos com camisas nas quais constem as imagens de personagens religiosas, tal como usar acessórios que indiquem sua fé.  Se emitirem suas opiniões religiosas no recinto acadêmico, elas deverão ser consideradas irrelevantes para a mensuração de seu desempenho.

Quanto à ostentação de símbolos religiosos em prédios públicos, deve-se analisar sua relevância para o patrimônio cultural brasileiro.  Caso o integrem, eles devem ser mantidos e respeitados, como reflexo da contribuição da religião em questão para a identidade, a ação, e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.  Do contrário, cabe à Administração Pública se abster de fixá-los, ou retirá-los, conforme a situação concreta.

Também é discutível a realização de obras públicas que compreendam monumentos de cunho religioso.  É evidente que aqueles já existentes em 5 de outubro de 1988, desde que integrantes do patrimônio cultural brasileiro, devem ser preservados pela Administração Pública.  Todavia, não há justificativa para que se edifiquem novos monumentos dessa natureza, desde a entrada em vigor da atual Constituição Federal.  Nem mesmo o incentivo ao turismo, previsto no art. 180 do texto constitucional, justificaria tais medidas.

A Administração Pública deve observar fielmente a norma constante do art. 19, I, da Constituição Federal, sem prejuízo dos princípios constitucionais que necessariamente orientam a sua atividade.  Mas isso não significa dizer que se deva sepultar completamente a liberdade religiosa em bens públicos de uso comum ou de uso especial.

A liberdade religiosa não é ilimitada.  Se uma dada religião pressupõe o esmagamento dos direitos individuais que compõem o sistema de direitos fundamentais instituído pela Constituição Federal, a Administração Pública terá legitimidade para intervir na atuação da organização religiosa.  Intervenção esta que deve ser feita na forma da lei, e apenas na medida em que ela se fizer adequada, necessária e proporcional para proteger os direitos individuais daqueles que não professam aquela convicção religiosa, ou para tutelar os direitos individuais indisponíveis de seus próprios crentes hipossuficientes.



Por Vladimir da Rocha França (RN)

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