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Limites à Reforma do Sistema de Governo no Direito Brasileiro

ANO 2016 NUM 174
Vladimir da Rocha França (RN)
Advogado. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Associado II do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


20/05/2016 | 4119 pessoas já leram esta coluna. | 11 usuário(s) ON-line nesta página

Desde a sua primeira Constituição republicana, o Brasil adotou o sistema de governo presidencialista.  Embora ele tenha desde então forte inspiração estadunidense, o presidencialismo brasileiro tem a sua própria história, sua própria evolução e suas próprias características. 

Fato solenemente ignorado por entusiastas da importação de modelos jurídicos europeus sem se levar em consideração a experiência constitucional brasileira.  Fato que, de certo modo, frustrou as possibilidades de aperfeiçoamento da monarquia constitucional parlamentarista que existia durante a vigência da Constituição Imperial de 1824, e que impede a sua restauração no Brasil do século XXI.

Na Constituição Federal vigente, estabeleceu-se o sistema presidencialista de governo.  Como se sabe, as funções constitucionais de Chefe de Estado e de Chefe de Governo estão concentradas nas mãos do Presidente da República, eleito democraticamente para o exercício de mandato fixado na própria Lei Maior, obtido por meio do voto direto, secreto, universal e periódico.  E, enquanto Chefe de Governo, compete-lhe a titularidade do Poder Executivo e, por conseguinte, a direção superior da Administração Pública, exercendo-a com o auxílio do Vice-presidente da República e dos Ministros de Estado.

Em princípio, o presidencialismo garantiria uma separação mais rígida das funções jurídicas do Estado (função legislativa, função administrativa e função jurisdicional), sem prejuízo da presença do mecanismos de freios e contrapesos.  Em contrapartida à posição do Presidente da República como principal dínamo do Estado e à estabilidade de seu mandato em face do Poder Legislativo, é-lhe imposta a responsabilidade político-administrativa pelos atos do Poder Executivo, apurada mediante processo especial – impeachment - conduzido pelo próprio Poder Legislativo.

Entretanto, o modo como as competências legislativas foram distribuídas na Constituição Federal vigente, bem como os requisitos instituídos para a nomeação dos Ministros de Estado, acabam dando ao nosso presidencialismo algumas características que elevam o protagonismo do Presidente da República na formulação e desenvolvimento de políticas públicas e na concretização das normas constitucionais.

Há um vasto conjunto de matérias que estão sujeitas à iniciativa legislativa privativa do Presidente da República.  Notadamente, aquelas que dizem respeito à Administração Pública e às Finanças Públicas, ambas indispensáveis para a efetivação de políticas públicas.

Além do mais, o Presidente da República têm à sua disposição a medida provisória, cujo processo legislativo deve ensejar inclusive o sobrestamento das demais deliberações do Congresso Nacional se este não a aprecia dentro do prazo constitucional.  As normas jurídicas veiculadas pela medida provisória incidem e são imediatamente aplicáveis desde sua publicação, exceto se instituírem ou majorarem alguns tributos.  A medida provisória vigora pelo prazo de sessenta dias, prorrogável por igual período, segundo o juízo de conveniência de seu emissor.

Se aprovada pelo Congresso Nacional, a medida provisória é convertida em lei ordinária.  Caso rejeitada expressa ou tacitamente pelo mesmo, cabe a este disciplinar as relações jurídicas instituídas durante a vigência desse ato legislativo.

Registre-se que o Presidente da República tem a competência discricionária para propor emendas à Constituição Federal.

Tudo isso, somado ao fato de que a pauta do Congresso Nacional também pode ficar sobrestada em virtude de veto presidencial ou pedido de urgência formulado pelo Chefe do Poder Executivo na tramitação de projeto de lei de sua iniciativa.

Nesse diapasão, o processo legislativo brasileiro é decisivamente influenciado pelo Presidente da República.  Influência maior do que se esperaria do Chefe do Poder Executivo na dinâmica presidencialista.

Outro aspecto relevantíssimo no presidencialismo brasileiro reside no fato de que o Chefe do Poder Executivo pode nomear Deputados Federais e Senadores para cargos de Ministros de Estado, sem que esses agentes públicos percam definitivamente os seus mandatos caso deles tomem posse.  E, caso sejam exonerados ou solicitem a sua exoneração, o parlamentar que foi Ministro de Estado retorna em toda sua plenitude ao exercício de seu mandato.  Origem, talvez, do conceito de presidencialismo de coalização, tão caro à Ciência Política no Brasil.

Muitos dessas peculiaridades do presidencialismo brasileiro são atribuídas ao fato de que o Poder Constituinte que deu origem à atual Constituição Federal quase determinou o sistema parlamentarista de governo.  O que justificaria, de certo modo, esse forte papel do Presidente da República no processo legislativo e a possibilidade de Deputados Federais e Senadores assumirem Ministérios de Estado com a faculdade de retornarem ao Congresso Nacional desembaraçadamente.

Recorde-se que no parlamentarismo, há a dissociação do Chefe de Estado do Chefe de Governo, tendo este que contar com a confiança do Poder Legislativo para se manter no cargo.  E, conforme a repartição constitucional de competências, o Chefe de Estado terá uma influência maior ou menor no processo legislativo, na Administração Pública e nas Finanças Públicas. 

Não se olvide que a Constituição Federal vigente prescreveu a realização de plebiscito para reexaminar o sistema e a forma de governo adotados pelo Poder Constituinte, facultando ao povo a sua substituição pelo parlamentarismo e pela monarquia em 1993.  De todo modo, a maioria do povo decidiu preservar o presidencialismo, bem como a forma republicana de governo naquele momento.  Não se tratará aqui da forma de governo na Constituição Federal, mas o que aqui se expõe lhe é aplicável no que naturalmente lhe couber.

Afinal, o que impediria uma emenda constitucional que substituísse ou quebrasse competências do Presidente da República para redistribuí-las em favor de um Gabinete de Ministros de Estado liderado por um Primeiro-Ministro?

Com efeito, o sistema de governo não se encontra expresso no art. 60, § 4º, da Constituição Federal, rol do que se convencionou chamar de “cláusulas pétreas”.  E, em tese, desde que respeitado esse elenco de limitações materiais à emenda constitucional, não haveria obstáculos à substituição do presidencialismo vigente por um modelo parlamentarista.

Em rigor, o plebiscito de 1993 sepultou definitivamente a possibilidade jurídica-constitucional de se substituir o presidencialismo pelo parlamentarismo no Brasil. 

O sistema de governo constitui matéria que integra a identidade de qualquer ordem constitucional, pois diz respeito ao modo como será estruturado o Poder Executivo e, por conseguinte, a própria Administração e Finanças Públicas.  Se decisivamente descaracterizado, há o rompimento definitivo da decisão consubstanciada pelo Poder Constituinte com a entrada em vigor da Constituição.  E, no caso brasileiro, o Poder Constituinte já determinou a oportunidade na qual o sistema de governo por ele instituído pudesse ser profundamente revisto em 1993.  E, esta se exauriu no plebiscito que foi realizado com amparo no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Logo, o sistema de governo não deixa de ser uma limitação material implícita à emenda constitucional, que não pode ser legitimamente substituído em sede de reforma do texto da Constituição Federal vigente.

Não se nega a necessidade da reforma do atual sistema constitucional de governo.  Mas esse caminho passa necessariamente pelo exame da História do Direito do Brasil e pela estrita observância da Constituição Federal em vigor.

É perfeitamente possível a reforma constitucional de aspectos jurídicos pertinentes ao presidencialismo brasileiro, tais como, dentre outros: (i) a duração do mandato do Presidente da República e a questão da reeleição; (ii) a iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo; (iii) a possibilidade de parlamentar preservar o seu mandato caso seja nomeado Ministro de Estado; e, (iv) o processo de impeachment do Presidente da República.

Ainda assim, o eventual produto de emendas destinadas a tais modificações no texto da Constituição Federal vigente, não poderia atingir a segurança jurídica, a soberania popular e o princípio democrático.  Não se admite, por exemplo, que se encurte o mandato de Presidente da República que se encontre em vigor, sob pena de se violar as garantias do ato jurídico perfeito e do voto direto, secreto, universal e periódico.

O que a Constituição Federal em vigor admite, enfim, é a reforma do sistema de governo para aperfeiçoá-lo em conformidade com as características político-jurídicas do modelo presidencialista e os princípios fundamentais do sistema do Direito Positivo. 

Talvez, a superação das crises atribuídas ao presidencialismo brasileiro se deva muito mais à retirada de institutos parlamentaristas deixados pelo Poder Constituinte no texto constitucional do que propriamente com a sua ilegítima substituição por um modelo parlamentarista. 

Se, com a devida vênia, for aprovada a implantação do sistema parlamentarista de governo no Brasil, afora as dificuldades de sua efetivação em face dos modelos constitucionais de federação e de partido político, haverá o rompimento definitivo da ordem jurídica vigente e sua substituição por outra, ainda que esta seja atribuída formalmente à atual Constituição Federal.



Por Vladimir da Rocha França (RN)

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