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Regime jurídico-administrativo, interesses públicos e direitos fundamentais

ANO 2016 NUM 260
Vladimir da Rocha França (RN)
Advogado. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Associado II do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


21/09/2016 | 5500 pessoas já leram esta coluna. | 6 usuário(s) ON-line nesta página

O regime jurídico-administrativo consiste no subsistema do sistema do Direito Positivo que disciplina a função administrativa.  Esta, por sua vez, compreende a atividade de expedição de normas jurídicas complementares à lei (ou excepcionalmente à própria Constituição), feita pelo Estado (ou por quem esteja no exercício de competências públicas), numa posição de autoridade, sujeita ao controle jurisdicional, que se destina à concretização do interesse público.

Tradicionalmente, entende-se que as normas jurídicas que compõem o regime jurídico-administrativo orbitam em torno de dois princípios fundamentais.  De um lado, tem-se o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado; do outro, o princípio da indisponibilidade do interesse público pela Administração.

O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado confere base às prerrogativas e privilégios que a lei confere à Administração para a melhor concretização do interesse público.  Cuida-se de princípio implícito do sistema do Direito Positivo brasileiro, identificável a partir do art. 1º, caput, o art. 3º, o art. 193, e o art. 170, caput, todos da Constituição Federal.

Entretanto, isso não representa o esmagamento do interesse privado.  Quando este se encontra revestido sobre o manto do direito subjetivo, assegura-se ao administrado todo um conjunto de proteções contra o arbítrio do Estado e a quebra da isonomia.  E, se se trata de direito fundamental individual, é perfeitamente possível que a supremacia do interesse público sobre o interesse privado determine a prevalência daquele sobre outro interesse privado.

Por sua vez, a indisponibilidade do interesse público pela Administração ampara os direitos do administrado em face do Estado, quando este exerce competências administrativas.  Também é princípio implícito, surpreendido ao se examinar as garantias fundamentais do administrado, constantes de preceitos como o art. 5º, caput, II, LIV e LV, § 1º e § 2º, e o art. 37, caput, e § 6º, ambos da Constituição Federal.

O que se deve entender por interesse público?  Interesse público consiste no interesse social positivado em norma jurídica.  Trata-se do interesse que o indivíduo possui enquanto membro da sociedade ou de um grupo social específico, num dado espaço e num dado tempo.  Enfim, consubstancia-se em interesse que indivíduo compartilha com os seus semelhantes no meio social, sob os auspícios do sistema do Direito Positivo.

Entretanto, o interesse público não é um monólito.  Não há um interesse público, mas sim uma variedade de interesses públicos, cuja extensão e intensidade são proporcionais ao grau de intervenção estatal que o sistema do Direito Positivo determina na ordem econômica ou na ordem social.

No caso brasileiro, em razão da natureza bastante analítica da Constituição Federal vigente, os interesses públicos se encontram expressa ou implicitamente positivados por meio de normas constitucionais.  Desafia-se aqui a identificação de um interesse público que não tenha referência direta ou indireta na Lei Maior.

Convém ainda anotar que dificilmente um interesse público deixa de estar associado a um direito fundamental.  Ao se desapropriar um terreno particular para a construção de um hospital público, procura-se atender o interesse na expansão e melhoria dos serviços que integram o Sistema Único de Saúde e, sem sombra de dúvida, dar concretização ao direito fundamental social do administrado à saúde pública. 

Há a concretização de interesse público que não tenha pertinência com a efetivação de direito fundamental?

Duas espécies básicas de interesses públicos podem identificadas: (i) os interesses difusos, aqueles que o indivíduo tem enquanto membro da sociedade (v. g., o art. 144, o art. 196, o art. 205, e o art. 225, todos da Constituição Federal); e, (ii) os interesses coletivos, aqueles que o indivíduo tem enquanto integrante de um grupo social constitucionalmente tipificado como merecedor de políticas públicas específicas (v. g., o art. 227 e o art. 231, ambos da Constituição Federal).

Recorde-se que a doutrina administrativista, há décadas, não trabalha mais com a identidade entre interesse público e interesse do Estado enquanto pessoa jurídica.  Ademais, também é pacífica a natureza instrumental das competências administrativas.  Por conseguinte, não se justifica a defesa de um muro intransponível entre o interesse público e o interesse difuso.

Tende a ocorrer o conflito entre interesses públicos, haja vista o crescimento das demandas por uma maior intervenção administrativa nas relações econômicas e sociais (v. g., Emenda Constitucional nº 65, de 13 de julho de 2010).  E, justamente em razão da indisponibilidade do interesse público pela Administração, esta tem o dever de harmonizá-los quando em rota de colisão.

Por fim, é imperativo destacar que o sistema do Direito Positivo, por meio da Constituição Federal, estabelece em prol de cada administrado, uma esfera de direitos intangível pelo Estado, cuja proteção justifica a própria existência de todos os poderes constituídos. 

Na expansão dos interesses públicos coletivos, é inevitável que se eleve o número de arestas entre eles e os direitos fundamentais individuais.  Naturalmente, as ações administrativas que passarão a ser demandadas para a concretização daqueles interesses pressupõem a intervenção na liberdade individual e na propriedade privada.

O mesmo ocorre com os interesses públicos coletivos anteriormente estabelecidos, que passam a disputar a preferência da Administração com os novos interesses públicos coletivos instituídos.

De todo modo, quando se afirma que atividade administrativa se destina a concretização do interesse público, não se pode negar que ela também visa à efetivação do direito fundamental.  O regime jurídico-administrativo constitui instrumento essencial para esse escopo máximo da Administração.



Por Vladimir da Rocha França (RN)

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