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Britto: PEC do Calote interessa a quem trata mal o dinheiro público

30/06/2008 | 4012 pessoas já leram esta notícia. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, espera que o Senado tenha "juízo político" e rejeite a proposta de criação da Contribuição Social para Saúde (CSS). Ele afirma que uma proposta nesse sentido deveria ser discutida no bojo da reforma tributária, que também tramita na Câmara dos Deputados.

Britto afirma ainda que a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 12, que altera as regras para pagamento dos precatórios - que foi aprovada dias atrás pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado -, irá prejudicar o cidadão, que não terá mais esperança de ver seus direitos garantidos. Segundo ele, é um instrumento "autoritário", que premia os maus administradores. "É uma anomalia constitucional muito grande".

Segue a entrevista concedida a repórter Ana Paula Siqueira, do Jornal de Brasília:

P- Se aprovadas as novas regras para o pagamento dos precatórios, quem serão os mais prejudicados?

R- Serão vários os prejudicados. O primeiro é o Poder Judiciário, porque terá perdido a sua razão de ser, que é a sentença. A sua decisão, que teria a finalidade constitucional de apaziguar os conflitos, será um mero instrumento de leilão. O segundo é o cidadão, que perderá qualquer esperança de ver seus créditos recebidos quando postula uma reparação contra o Estado. O Estado se vê à vontade para desrespeitar direitos, pois levar-se-á anos e anos para que o cidadão receba o ressarcimento pelo direito violado. Em terceiro, os democratas, pois o instrumento aprovado pela PEC 12 é extremamente autoritário e permite que o governante de plantão, municipal ou estadual, possa perseguir seus adversários com a ameaça de que, se não aderirem aos seus projetos, receberão o ressarcimento também com o passar dos anos. E quarto, perde o Direito, porque cria uma geração de acomodados, na lógica de que não vale a pena lutar contra o Estado.

P- A quem interessa essa proposta?

R- Essa proposta somente interessa àqueles que administraram mal o dinheiro público, que causaram lesão ao cidadão, obrigando-o a buscar justiça. A PEC 12 é efetivamente uma PEC pró-Estado e contra o cidadão, invertendo a lógica constitucional, já que é comum chamar a Constituição de "Carta Cidadã". Depois dela (PEC 12), poderemos chamar de "Carta Estatal".

P- Qual o maior problema legal com a mudança de regra para o pagamento dos precatórios?

R- O percentual destinado a pagamento é tão pequeno, tão diminuto, tão irrisório, que fará com que estados e municípios devedores levem décadas para que possam quitar os seus débitos. Segundo, aquele que não queira entrar na fila se submeterá a um regime injusto, que é o sistema do leilão. O Estado passará a leiloar o seu dever de pagar, confiando que a necessidade, a fome e a esperança do cidadão de receber o seu crédito permitirão que ele ceda seus direitos. Essa é uma anomalia constitucional muito grande porque premia quem pratica torpeza. O Estado não paga e é premiado por não pagar com a redução absurda dos valores devidos.

P- Então, podemos ver uma incoerência no fato de o governo querer aprovar regras que dificultam o pagamento de dívidas públicas mas, ao mesmo tempo, querer criar mais um imposto para pesar nas costas dos cidadãos, como é o caso da CSS?

R- Não se tem dúvida. Os governos têm melhorado sua arrecadação, têm aumentado o seu poder de cobrança, têm aumentado o número de impostos, que é carga tributária no Brasil. Mas não quer fazer trilhar caminho oposto, que é o de reconher o direito do cidadão ter ressarcido o seu crédito quando o Estado lhe é devedor. Democracia é via de mão dupla. Nesse caso, temos a democracia de mão única, a mão que beneficia o Estado.

P- Nesse caso, ainda estamos em uma democracia?

R- Eu acho que a PEC 12 é um dos maiores ataques ao estado democrático de direito. Primeiro porque se desrespeita o Poder Judicário, tirando a sua credibilidade. Segundo, protege o Estado contra o cidadão e afasta o cidadão da esperança de lutar por seus direitos quando do outro lado está o poderoso Leviatã.

P- Com relação a CSS, a OAB já sinalizou que poderá entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), caso seja aprovada no Senado. Qual a ilegalidade da proposta?

R- A OAB tem, nesta fase, se resumido a discutir a questão política da oportunidade, não entrando ainda no mérito da legalidade do imposto. A questão da conveniência política decorre de ser mais um imposto a aumentar a já enorme carga tributária brasileira, quando o Congresso tem à sua disposição a possibilidade de discussão na reforma tributária. Criar mais um tributo sem a rediscussão da reforma é repetir a lógica perversa dos governantes brasileiros de ficar resolvendo as crises sempre com aumento de imposto. Inicialmente, o imposto para saúde substituiria outros impostos. Depois, se transformou em temporário para, agora, se tornar eterno, sem que implique redução de outros impostos. Por isso, que o raciocínio de simples criação, sem rediscussão da carga tributária, é um raciocínio incorreto e repete esses erros históricos dos governantes brasileiros.

P- Muitos tributaristas afirmam que o governo tem condição de aprovar a Emenda 29 sem criar a CSS. A OAB pode ter algum posicionamento com relação a esse aspecto?

R- É visível a enorme carga tributária brasileira e as pessoas sentem o quanto pagam de imposto direto e indireto no Brasil. O melhor é discutir uma nova reforma tributária, uma nova visão dos tributos. Por exemplo, é melhor tributar as riquezas e as propriedades do que tributar as empresas que produzem e contribuem para o desenvolvimento. É preciso, portanto, inverter a lógica da arrecadação tributária brasileira. É por isso que a OAB aposta tanto e luta tanto para que se tenha uma reforma tributária mais lógica e distributiva.

P- Outro grave problema enfrentado nos últimos dias é com relação a presença do Exército no Morro da Providência, no Rio de Janeiro. Essa presença é necessária para o andamento das obras?

R- O Exército tem função constitucionalmente prevista. Não está na atividade do Exército o policiamento ostensivo. Por isso, a OAB entendeu a impossibilidade da permanencia do Exército naquele local e naquela forma, sob pena de ofender à Constituição. É diferente de quando o Exército constrói pontes e estradas, pois tem relação com a função do Exército de prevenção em caso de guerra. Mas, no Morro da Providência, a função do Exército é dar segurança e policiamento a um projeto de construção. Ali é uma área de conflito e a autorização teria que ser adequada, na forma da Constituição Federal. E não se pode negar que o governo do Rio de Janeiro não tem declarado publicamente a sua impossiblidade, ou incopetência, para fornecer a segurança pública. Se assim o fizesse, poderia solicitar, excepcionalmente, como diz a Constituição, a presença do Exército.

P- Como o senhor avalia o comportamento dos membros do Exército que entregaram os três jovens da comunidade a traficantes do Morro da Mineira?

R- A atividade desses militares não se confunde com o papel do Exército. O Exército é muito maior que o ato cometido por esses 11 militares. Mas o ato é extremamente grave e por isso recebeu a repulsa de toda a sociedade. Grave porque tratava de um crime. Depois, porque praticado por uma entidade que deveria garantir a segurança e não ela própria fornecer a insegurança. E terceiro, porque o Estado, representado naqueles 11 militares, negociou com o estado paralelo do crime - uma associação perversa, com finalidade cruel e incompatível com o estado democrático de direito.

P- E o que pode ser feito para acabar com o envolvimento de agentes públicos com o crime organizado?

R- Essa é uma tarefa que precisa de vários fatores unidos. Primeiro, acabar com a impunidade para aqueles que cometem crimes no exercício público. O servidor público deve servir ao público e não se servir do público. Quando se serve do bem público para fins criminosos e enriquecimento pessoal, a punição tem que ser severa e o afastamento tem que ser imediato.

P- Se por um lado a OAB defende a retirada do Exército do Morro da Providência, por outro defende o envio de tropas à Reserva Raposa Serra do Sol. Qual a diferença entre esses casos?

R- Na Reserva Raposa Serra do Sol está se discutindo a questão da segurança nacional. Por ser região de fronteira, o Exército não pode ser impedido de entrar. E também há a proteção de seres humanos protegidos pela União, que são os índios. Ali há uma atividade típica do Exército.

P- O que o senhor acha do fim do foro privilegiado?

R- A OAB tem uma posição muito clara com relação a essa matéria e entende que o foro é necessário para algumas funções. Mas, na forma como está sendo aplicado, tem servido para a impunidade, já que os órgãos que têm competência para processar e julgar as autoridades detentoras do foro especial não têm apresentado condições técnicas de trabalho. Por isso, a OAB anuncia a medida de manter o foro privilegiado para algumas pessoas, porém delegando para o juiz singular a tarefa de instruir o processo. Teríamos as duas coisas: o foro, que impediria as perseguições e incorreções, mas garantiríamos agilidade no julgamento. Mesclar os dois sentidos, como propõe a OAB, permitiria agilidade sem quebra da criação de institutos, que implicariam em anomalias democráticas.

Fonte OAB